Por Ana Luiza Basilio.
O decreto publicado na terça-feira 21 que regulamenta pontos da Lei da Migração, aprovada em maio, deve se tornar o centro de uma disputa judicial envolvendo as políticas públicas brasileiras para a imigração.
O texto, que reúne mais de 300 artigos, vem sendo duramente criticado por especialistas e organizações pela defesa dos direitos dos migrantes. Isso porque a regulamentação desvirtua o que estava previsto em lei e cria precedentes para um retrocesso no que diz respeito ao reconhecimento e regulamentação dos fluxos migratórios no Brasil.
A Defensoria Pública da União (DPU) encaminhou um documento pedindo a modificação de 47 pontos do decreto.
Para aprofundar a análise sobre o documento e entender de que maneira ele fragiliza a Lei da Migração, CartaCapital conversou com a professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, Deisy de Freitas Lima Ventura.
Carta Capital: A Lei da Migração foi aprovada em maio depois de sofrer alguns vetos pelo presidente Michel Temer. Como você avalia a legislação do ponto de vista dos direitos dos migrantes?
Deisy Ventura: A lei é inegavelmente um grande avanço. É óbvio que uma norma que teve unanimidade no Senado Federal em 2017 no contexto de polarização política que vivemos não é ideal do ponto de vista dos direitos dos migrantes. Mas podemos falar em avanços, sobretudo porque a legislação deixa de falar em estrangeiros, que era a expressão utilizada pelo Estatuto do Estrangeiro, reduz significativamente a discricionariedade do Estado brasileiro em relação a permanência dos imigrantes no Brasil, reconhece direitos antes não reconhecidos, melhora a sistemática de concessão de vistos e não proíbe a regularização migratória que era o grande problema do antigo Estatuto.
Além disso, traz uma forma dos migrantes entrarem regularmente no território nacional para buscar trabalho e regulariza a situação de muitos dos que já vivem aqui em condição migratória irregular. Ao promover uma chegada e estada digna a esses indivíduos, reduzimos as vulnerabilidades mais comuns, como a atuação de redes criminosas ou o recrutamento para trabalho em situações análogas à escravidão e situações de corrupção promovidas pelos próprios agentes do Estado que acabam por se aproveitar da ilegalidade para retirar bens e expor estes indivíduos a situações degradantes.
É evidente que os vetos impostos pela Presidência da República prejudicaram diversos dispositivos da Lei, mas ainda assim ela permanecia como um enorme progresso em relação ao Estatuto do Estrangeiro.
CC: A Lei, no entanto, entra em vigor com a publicação de um decreto que desvirtua sua regulamentação. Como avalia a situação?
DV: A regulamentação é um grande retrocesso. É contra a lei e fora da lei, regulamenta o que não estava previsto e inventa novas normas destrutivas dos direitos. Poucas vezes na minha carreira vi uma regulamentação tão ruim, flagrantemente ilegal. Acho que agora, infelizmente, veremos o início de uma ampla batalha judicial – a Defensoria Pública da União já tomou providências e diversas instituições sociais – para fazer com que se anule diversos dispositivos do decreto.
Outra possibilidade é o governo reconhecer o grave erro cometido não só do ponto de vista político, mas também técnico, que só evidencia que o regulamento foi feito por pessoas que não têm conhecimento algum sobre o fenômeno migratório.
Para se ter uma ideia da gravidade dos erros, o decreto faz referência à expressão “migrante clandestino”, de conotação pejorativa evidente, que reforça o estigma de migrantes em situação irregular, e que não só é repudiada mas há muito foi eliminada de todos os ordenamentos jurídicos. A regulamentação é uma vergonha do ponto de vista técnico e jurídico, além de um grave erro político no momento em que o Brasil deveria regularizar a questão migratória para a nossa própria segurança.
CC: Em que sentido a regularização da questão migratória traz segurança ao País?
DV: É um risco para a segurança do Brasil que a regularização migratória não seja encorajada, para que saibamos quem está aqui, fazendo o que, em que local. As pessoas que precisam de trabalho, ou que buscam por uma vida mais digna, se deslocam independente da situação migratória. Não reconhecer essa chegada a torna um fator que compromete a nossa segurança e a dessas pessoas.
A atitude tomada pelo governo Temer lembra muito a posição do governo Trump, essa regulamentação da lei de migração é uma espécie de Trump sem muro. Não me surpreenderia, aliás, a construção de um muro em breve se o governo tomar esse triste caminho que sinaliza no momento.
CC: Como avalia o processo da regulamentação da Lei? Houve participação social?
DV: Além do decreto ser deficiente e ilegal, a forma como foi feito é também lamentável. A lei foi construída com intensa participação social, com apoio de instituições que tem décadas de trabalho nesse campo no Brasil.
No entanto, durante o processo de regulamentação, não houve escuta. Tivemos um episódio lamentável, aliás, que foi a abertura de consulta pública para o texto dessa regulamentação. Nos mobilizamos e encaminhamos contribuições, mesmo diante o pouco tempo dado para a tarefa, e elas foram plenamente ignoradas. As manifestações foram em torno de praticamente todos os artigos da regulamentação, apontamos inclusive a ilegalidade de diversos mecanismos e o governo federal ignorou todo esse material.
Qual a razão de se fazer uma consulta, então? Houve uma pressa muito grande para adotar essa regulamentação que contradiz, por exemplo, processos como da Argentina, que é um país que tem uma lei de referência em matéria de migração. Lá o processo de regulamentação durou quatro, cinco anos, o que só mostra que o nosso regulamento é anti democrático.
CC: Quais são as principais distorções do decreto em relação a Lei e como elas prejudicam os direitos da população migratória?
DV: A que mais me chocou foi a referência ao clandestino. Como o Estado ousa chamar um migrante de clandestino, quando a lei que esse decreto deveria regulamentar é de proteção e promoção dos direitos dos migrantes? Como pode o Estado ser autor dessa estigmatização? Nenhum ser humano é clandestino, ilegal, ou irregular. Isso deixa evidente que o governo não possui cultura sobre temas migratórios, não acompanha o debate internacional e ignora o que a doutrina acumulou ao longo de décadas.
Em segundo lugar, a possibilidade que a lei daria a essas pessoas de virem licitamente ao Brasil para procurar trabalho, hipótese também eliminada pelo regulamento. O texto distorce o objetivo da lei e diz que para se beneficiar do visto para procurar trabalho, o migrante precisa apresentar um contrato de trabalho. Quem tem condições de migrar apresentando um contrato de trabalho?
Outro aspecto extremamente importante da Lei era a possibilidade de não conceder visto e nem autorização de residência por ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal, e o decreto deveria regulamentar, dizer o que é um ato contrário a esses princípios. O texto não diz e ao não dizer deixa aberta a discricionaridade do poder Executivo para recusar visto e autorização de pessoas que, segundo eles, são consideradas indesejadas.Gera para o Estado a possibilidade de negar o visto ou autorização por uma fundamentação muito ampla.
Ainda há o fato de que diversos vistos passaram a depender de deferimento prévio pelo Ministério do Trabalho, que não tem o papel de fazer seleção de migrantes. Isso é um retrocesso que antecede a época da ditadura militar, retoma o Estado Novo. Isso foi colocado na regulamentação, sem nenhum amparo na lei.
CC: Há outros pontos?
DV: Outro ponto é que a Lei de Migração diz claramente que não pode haver prisão por razões migratórias e o regulamento prevê justamente o contrário, a prisão do deportado. Também foram inseridas normas não previstas na lei relativas a matéria sanitária, absolutamente equivocadas, que atribui à autoridade de controle de fronteira a possibilidade de aplicar normas sanitárias que não tem nada a ver com migração. Quando a gente tem uma emergência sanitária de qualquer tipo, as normas adotadas são aplicadas a todos os viajantes e não só aos migrantes. É também uma norma discriminatória, que procura associar o estrangeiro a doenças, como no período ditatorial.
Por fim, o decreto ainda joga para regulação posterior dispositivos fundamentais da lei como o visto para ajuda humanitária, atrasando toda a atuação do Brasil em matéria de política migratória. Não exitaria em dizer que o regulamento é uma catástrofe.
CC: Qual a demanda migratória no Brasil?
DV: Do ponto de vista migratório, o Brasil é um país irrelevante, tem uma pressão migratória pífia. As estimativas mais conhecidas apontam 1,5 milhão de migrantes e refugiados no país. Agora, o que isso significa para uma população de mais de 200 milhões de habitantes?
O Brasil não pode se dizer alvo de uma pressão migratória, nem é destino preferencial de fluxo migratório e muito menos de refúgio: 84% dos refugiados do mundo estão em países em desenvolvimento e o Brasil não aparece entre os mais procurados.
Há contingentes de quase 2 milhões de migrantes que vão para a Turquia, Jordânia, Irã.
Então, o que as pessoas precisam entender é o Brasil não está sendo invadido nem ameaçado e que a pequena pressão migratória existente pode ser resolvida com competência, sendo um dos principais indicativos nesse sentido um regulamento decente que facilite o desenho de políticas migratórias.
Estivemos perto de ser uma referência no assunto quando aprovamos a lei que tratava da perspectiva dos direitos humanos, apesar dos vetos.
CC: Como vê a política migratória brasileira no contexto das políticas migratórias internacionais que restringem a entrada de migrantes?
DV: Países que realmente têm a presença de migrantes desenvolveram ao longo da história diversas formas de tocar esses fluxos migratórios. Hoje vemos um grande retrocesso nos EUA e Europa associado a governos conservadores que tentam fazer do migrante um bode expiatório da crise econômica e do mal estar social.
Infelizmente esse tipo de atuação política nefasta, da qual deriva os grandes crimes contra a humanidade, tem grande acolhida política em alguns Estados devido a enorme ignorância existente entre alguns setores da população.
Mesmo entre aqueles que tem acesso a educação há a convicção errônea de que se perde direitos e condições de vida melhores em função da presença dos migrantes. Em relação a Europa e EUA existe de fato um paradigma bastante restritivo de política migratória. Acho que a situação dessas regiões em relação ao Brasil é absolutamente diferente, até porque os fluxos não são comparáveis.
No entanto, seria realmente lamentável se copiássemos o que eles têm de pior.
Fonte: Carta Capital