Regulamentação europeia de dados pessoais intensificaria uso político do WhatsApp, afirmam especialistas

Dificuldade em controlar uso político do aplicativo é tamanha que mesmo a Europa, que tem regulamentação maior sobre assunto, não saberia como lidar com fenômeno.

Imagem: REUTERS/Dado Ruvic

O WhatsApp foi um dos grandes protagonistas das eleições de 2018. O aplicativo, utilizado principalmente pela equipe e por apoiadores do candidato do Partido Social Liberal (PSL), Jair Bolsonaro, desbancou as vias tradicionais de propaganda política. Especialistas em mídias digitais ouvidos pela RFI analisaram como a Regulamentação Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD), assinada pela União Europeia em 2018, reagiria a um fenômeno desse tipo. Eles acreditam que o documento teria dado ainda mais abertura para o uso político do aplicativo de mensagens pessoais, se o fenômeno ocorresse no bloco europeu.

A complexidade da “campanha política no WhatsApp” é enorme e levará anos para que a questão seja estudada em detalhes. A ausência de uma legislação sobre o assunto pegou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de surpresa. Denúncias recentes acusam empresas de comprar pacotes de disparos em massa de mensagens contra o Partido dos Trabalhadores (PT) no aplicativo, o que seria uma prática ilegal. Mas, até então, tem sido difícil refletir em um enquadramento do WhatsApp durante o período eleitoral.

A dificuldade em controlar o uso político do aplicativo é tamanha que mesmo a Europa, que tem uma regularização maior sobre o assunto, não saberia como lidar com o fenômeno, de acordo com a análise de Francisco Brito Cruz, diretor do Interlab, laboratório de pesquisas em mídias digitais da Universidade de São Paulo (USP). “Não existe clareza em nenhum lugar do mundo para tutelar esse tipo de campanha”, afirma. “É muito difícil. Seria preciso quebrar a criptografia para controlar as mensagens que estão passando. Isso é violar a privacidade das pessoas e colocar em risco o sigilo das comunicações. Não existe um modelo de regulação para esse tipo de campanha”.

Essa é a mesma opinião do especialista francês Romain Rissoan, autor de diversos livros em marketing digital, para quem o contexto europeu daria ainda mais legitimidade à apropriação da plataforma de conversa online por um candidato ou por sua militância. “Tem coisas boas e ruins no regulamento da União Europeia. Não se trata de uma lista de regras a respeitar, mas uma imposição às empresas de executar ações para proteger os dados pessoais dos cidadãos”, diz Rissoan.

O regulamento veio depois do escândalo da Cambridge Analítica, onde houve uso não autorizado de dados de milhões de pessoas com fins políticos, algo que chocou a União Europeia. O RGPD chegou justamente para proteger as informações consideradas privadas, como mensagens de WhatsApp. Paradoxalmente, isso daria ainda mais proteção para as ações de grupos políticos no aplicativo, já que tudo o que eles produzem é considerado “dado pessoal” e, portanto, não pode ser acessado nem controlado, a não ser em caso de investigação criminal.

Não há solução milagre para o caso do WhatsApp

As soluções para tentar enquadrar a campanha política no WhatsApp são frágeis. Uma tentativa do Estado de vigiar as mensagens privadas poderia ser considerada antidemocrática, de acordo com Rissoan. “No caso de uma investigação policial, é compreensível. Mas quanto à política, não temos nenhum direito de saber para quem votam as pessoas”.

O pesquisador e professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Carlos D’andrea, lembra que o fato de as mensagens do WhatsApp serem consideradas do domínio privado é uma decisão comercial da empresa Facebook, que pode e deve ser revista, para dialogar com o contexto brasileiro. “É preciso criar uma maneira de controlar o fluxo de informações, sob o risco de cair num uso completamente irresponsável e misterioso, como se faz hoje em diferentes plataformas”, diz.

D’andrea também lembra que, ainda que a campanha para Bolsonaro tenha sido mais eficaz – devido a uma experiência de longa data na área –, outros partidos também utilizam ferramenta. “São usos que, ainda que não sejam tão eficientes quanto [os da equipe do PSL], podem ter as mesmas estratégias, só não conseguia a mesma capilaridade”.

“A única medida que se mostrou razoavelmente efetiva e que incomodou esse formato de fazer campanha foi o limite de encaminhamento de mensagens”, afirma Francisco Britto. Recentemente, o WhatsApp reduziu no Brasil a quantidade de pessoas para quem as mensagens poderiam ser encaminhadas, passando de 200 para 20.

Fake News: como se vacinar?

Quanto às “Fake News”, outro assunto recorrente das eleições de 2018, Romain Rissoan afirma que há pouco a ser feito e, de qualquer forma, isso escapa do domínio do RGPD, que trata apenas e estritamente da proteção de dados pessoais. “Como você quer que o Estado controle o que se passa no aplicativo? É um pouco como quando vemos cartazes colados na rua. Não sabemos quem os colou. Se você der de cara com vários cartazes de um partido colados num muro, como você vai provar que foram militantes desse mesmo partido que os colaram?”, questiona.

Francisco Brito Cruz lembra que, nas redes sociais tradicionais, o governo tem mais facilidade de controlar a propaganda eleitoral. “No Facebook, no Google, no YouTube, se você quer tutelar a propaganda eleitoral, você pede a remoção dela, tenta descobrir quem foi. Mas como falar em remoção num aplicativo de mensagem? No momento em que a mensagem é transmitida, a outra pessoa já recebeu”, afirma o pesquisador, lembrando que o WhatsApp desafia o sistema político atual.

O pesquisador da USP explica que, uma vez distribuída, uma notícia falsa dificilmente será contida. “A Justiça, nesse caso, é acionada somente para ser usada durante um debate. A ideia é mostrar ‘que o meu lado está certo e o outro está errado, porque a Justiça disse’. É muito mais para tentar usar isso num debate, do que para conter um fluxo informacional. Porque, em geral, quando a coisa chega na Justiça, ela já está nas redes”, diz.

Eleições de 2018 deixarão uma lição para o Brasil

Tanto Francisco Brito Cruz quanto Romain Rissoan concordam que é preciso levar em conta o contexto sócio-econômico dos países onde o WhatsApp faz sucesso, como o Brasil. “É importante comparar. Nos EUA, o WhatsApp não é muito usado, as pessoas usam o SMS. Além disso, é preciso levar em conta o jeito que o brasileiro usa a internet. O brasileiro se engaja muito nas redes sociais”, avalia.

Por fim, ele aponta que certos candidatos, como Jair Bolsonaro ou Cabo Daciolo, perceberam rápido como propor candidatura “à la brasileira”. “Henrique Meirelles fez uma campanha com muito investimento no Facebook, no Google, no YouTube e teve um desempenho pífio. Já o Cabo Daciolo, que é um ‘candidato meme’, teve um desempenho melhor, gastando R$ 700 reais na campanha dele”, afirma.

“Sem querer cair num determinismo tecnológico, acho que está claro que a dinâmica de circulação de informações através dos grupos de WhatsApp tem sido e será, independentemente do resultado das eleições, algo fundamental para compreender esse processo eleitoral de 2018 no Brasil”, conclui D’Andrea. “A lição que fica é a mesma da sociedade dos Estados Unidos. Antes da vitória de Donald Trump, já existia uma discussão em torno das fake news, que se intensificou depois. E até hoje há o debate político e governamental para se pensar as formas possíveis de se regular, de implementar formas de governança para essas plataformas”.

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