No Brasil, entre 2015 e 2022, houve um aumento de 50% nos registros de violência contra mulheres lésbicas, de acordo com o Sistema Nacional de Agravos de Notificação (Sinan). O número de ocorrências atingiu 3.478 no período. É o que mostra o levantamento “Violência contra mulheres lésbicas: perfil dos registros de atendimento”, feito pelas pesquisadoras Kamilla Dantas Matias e Camila Rocha Firmino, com apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).
Segundo a advogada trans e lésbica Amanda Souto, que também é presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero do Conselho Federal da OAB (CFOAB), isso não significa que aumentou a violência em si. Em entrevista especial ao Terra NÓS, no Dia da Visibilidade Lésbica, celebrado em 29 de agosto, ela declara que o número pode ter relação com a melhora nos registros dessas violências.
“Hoje, por exemplo, temos várias delegacias especializadas no atendimento à população LGBTI+ no Brasil e o Anuário de Segurança Pública registra esse aumento de violência, inclusive violência sexual nos últimos anos. Mas, quando você compara Estados que não tinham essas delegacias especializadas e passaram a tê-las, os números aumentam muito de um ano para o outro”, explica.
“O fato de ter equipes [médicas e da polícia] especializadas que não vão revitimizar as pessoas e, sim, tratá-las com dignidade, buscando seus direitos ali no atendimento, faz com que a população se sinta mais confiante e esses registros sejam feitos de maneira mais adequada também.”
Muito a ser feito
De acordo com a comunicadora Kim Freitas, 29 anos, o Estado ainda precisa trabalhar muito para ajudar vítimas de lesbofobia, como aquelas que não sabem como proceder em casos de violência.
“Às vezes, mulheres lésbicas não identificam algo como uma violência e a lesbofobia vem de muitas maneiras, principalmente quando a gente está falando sobre lésbicas que não são femininas”, afirma Kim, que é uma delas.
O aspecto mais marcante na minha vida é o fato da minha lesbianidade estar atrelada à minha desfeminilidade. Sou uma sapatona não feminina e a sociedade lê isso da maneira mais pejorativa possível.
Por causa disso, ela já sofreu diversos episódios de lesbofobia: na escola, passeando pela orla de Salvador, na Bahia, e até em casa.
“Durante muitos anos, eu ouvi do meu pai coisas como ‘eu tenho nojo de lésbicas que parecem sargento’”. Ela, no entanto, não denunciou nenhuma das violências que sofreu por ser mais nova na época, não ter independência nem rede de apoio ou boa orientação.
A residência é o local de maior ocorrência de violência contra lésbicas, sendo 62,14%, enquanto as vias públicas ficam em segundo lugar, com 21,14%, seguido de “outros” (6,84%) e bares (4,32%), segundo o estudo mencionado no início da reportagem.
“Quando a gente fala, por exemplo, de violência doméstica ou violência familiar, muitas vezes, existe uma série de fatores que dificultam que a mulher saia daquele ciclo de violência. Então, é necessário que sejam criadas políticas públicas para que a mulher não fique dependente de outra pessoa naquele ambiente, e que a sociedade entenda que todos esses tipos de violência não devem ser tolerados”, alerta Amanda Souto.
Tipos de violência
De acordo com o levantamento, a violência física é a mais frequente nos casos contra mulheres lésbicas, representando 52,7% dos registros. Em seguida, aparece a violência psicológica/moral (25,5%) e depois e violência sexual (14,8%). A violência sexual contra lésbicas aumentou 6% ao longo dos anos.
E, em relação aos registros de violência sexual contra essas mulheres, 74,5% são de casos de estupro, seguidos de 19,5% de assédio sexual e 2,1% de exploração sexual.
Para a advogada, muitos casos de estupro são cometidos por pessoas que querem “corrigir” a orientação sexual da mulher, conhecido como estupro corretivo. “Essa violência está muito presente na vida da população lésbica brasileira”, ressalta.
Maioria negra
Além disso, a maior frequência de registros se encontra na faixa etária de 20 a 24 anos (19,2%), seguida pela faixa etária de 25 a 29 anos (16,3% dos registros) e de 15 a 19 anos (14,6%). Um outro ponto a ser destacado é que, na maioria dos registros, as vítimas são negras, representando 56% (sendo 44,9% mulheres pardas e 11,5% mulheres pretas).
Já o meio de agressão mais frequente foi a força corporal, representando 53,5%. Em seguida, foi a ameaça, com 18,7%, e em terceiro lugar, o meio de agressão usado foi por objeto perfuro-cortante (8,4%).
Caso Ana Caroline
Um dos casos mais recentes e assustadores de violência contra mulheres lésbicas é o de Ana Caroline, 21 anos, encontrada morta em 10 de dezembro de 2023 em Maranhãozinho, cidade a 232 km de São Luís. De acordo com a Polícia Militar do Maranhão (PM-MA), ela teve a pele do rosto, couro cabeludo, olhos e orelhas retirados.
Oito meses após o crime, ainda não se sabe o que motivou o assassinato de Ana, que não tinha histórico de violência ou crimes. Em janeiro deste ano, a Polícia Civil prendeu um suspeito de envolvimento na morte dela. Identificado como Elizeu Carvalho de Castro, ele aparece em um vídeo e faz o mesmo caminho que a jovem por uma rua. O suspeito negou participação no assassinato.
A polícia, que trabalha para entender a motivação, não descarta a possibilidade da morte ter sido motivada por ódio, devido ao fato de Ana Caroline ser lésbica. Em 30 de julho, teve a primeira audiência de instrução e julgamento de Elizeu Castro. A morte da jovem também causou protestos em diversos estados do Brasil.
“Crimes de ódio contra a população de LGBTI+, geralmente, possuem um requinte de crueldade muito forte e, muitas vezes, são crimes muito brutais, principalmente quando a gente fala de assassinatos”, afirma Amanda Souto.
“Nós precisamos trabalhar para que sejam aprovadas leis específicas que tratem com seriedade a violência contra pessoas LGBTI+.”
Mulheres lésbicas vítimas de violência podem denunciar o crime em delegacias comuns ou especializadas, além de também poder registrar um boletim de ocorrência de forma online.
“Se você souber de alguma mulher que esteja nessa situação de violência, as autoridades devem ser acionadas, seja pelo 180 (Central de Atendimento à Mulher) ou, se for um caso mais urgente, o 190 (polícia). E dependendo da situação, se houver alguma violação de direitos humanos, também o Disque 100 (Direitos Humanos)”, indica a advogada.