The Intercept Brasil examinou as 850 emendas apresentadas por 82 deputados durante a discussão do projeto na comissão especial da Reforma Trabalhista. Dessas propostas de “aperfeiçoamento”, 292 (34,3%) foram integralmente redigidas em computadores de representantes da Confederação Nacional do Transporte (CNT), da Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF), da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e da Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística (NTC&Logística).
O deputado Rogério Marinho (PSDB-RN), relator da reforma na comissão especial formada em fevereiro para discutir a proposta do governo, decidiu incorporar 52,4% dessas emendas, total ou parcialmente, ao projeto substitutivo. Elas foram apresentadas por deputados do PMDB, PSDB, PP, PTB, SD, PSD, PR e PPS – todos da base do governo de Michel Temer. Reforçando o artificialismo das emendas, metade desses parlamentares que assinaram embaixo dos textos escritos por assessores das entidades sequer integrava a comissão especial, nem mesmo como suplente.
As propostas encampadas pelos deputados modificam a CLT e prejudicam os direitos dos trabalhadores. O texto original enviado pelo governo alterava sete artigos das leis. O substitutivo de Rogério Marinho, contando com as emendas, mexe em 104 artigos, entre modificações, exclusões e adições.
Não falta polêmica para meses de discussão qualificada. Mas o governo decidiu encerrar o debate e colocar logo o projeto para voto, em regime de urgência. Numa primeira tentativa, não conseguiu votos suficientes para acelerar a tramitação. Mas, no dia seguinte (19 de abril), num movimento incomum, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), manobrou e conseguiu aprovar a urgência. Por ser um projeto de lei, se aprovado pela Câmara, vai direto para avaliação do Senado.
O tom geral da reforma é que o que for negociado entre patrões e empregados passa a prevalecer sobre a lei. O texto original enviado pelo governo, no entanto, não deixava isso explícito. Falava que o acordado teria “força de lei”, mas as empresas conseguiram emplacar emenda para deixar essa força do negociado mais evidente. Com isso, a redação nesse ponto passou a ser que os acordos “têm prevalência sobre a lei”.
As emendas aceitas também preveem restrições a ações trabalhistas. Deputados encamparam pedidos das associações empresariais para que o empregado, quando entrar na Justiça, passe a determinar o valor exato de sua reclamação e que o benefício da Justiça gratuita somente seja concedido àqueles que apresentarem atestado de pobreza. Ainda no campo da negociação entre empregadores e empregados, apesar de o que for acordado ganhar peso sobre a lei, ele não pode ser incorporado ao contrato de trabalho. O objetivo é forçar novas negociações a cada dois anos.
Outro exemplo de vitória das empresas em suas negociações no Congresso foi a incorporação da redução em 2/3 do valor do adicional que é pago a trabalhadores que têm seus horários de almoço ou descanso reduzidos – embora o Tribunal Superior do Trabalho tenha definido, por meio de súmula, que o valor a ser pago pelas empresas deve corresponder ao triplo do tempo “comido” pela empresa.
As emendas aprovadas também eliminam a necessidade de comunicação ao Ministério do Trabalho sobre casos em que houver excesso de jornada. O argumento, escrito por representante da CNT e aceito por parlamentares, é que “o empregado poderá recorrer à Justiça do Trabalho independentemente de comunicação à autoridade competente”.
Relações de gratidão
O vínculo de gratidão de parlamentares que aceitaram assumir como suas as emendas preparadas por lobistas das entidades empresariais é verificável pela prestação de contas da última campanha. Julio Lopes (PP-RJ), Paes Landim (PTB-PI) e Ricardo Izar (PP-SP), que apresentaram sugestões da CNF na comissão, receberam doações de Itaú Unibanco, Bradesco, Santander, Safra, entre outras instituições financeiras. Desses, somente Landim participava da comissão especial, e ainda assim como suplente.
O potencial conflito de interesse também aparece de forma clara no caso de parte dos parlamentares que assinaram emendas da CNT. A começar por Diego Andrade (PSD-MG), que, além de ter recebido doações de empresas que dependem de logística adequada para o escoamento de suas produções, é sobrinho do presidente da entidade, o ex-senador Clésio Andrade. O deputado apresentou 22 emendas à Reforma Trabalhista. Todas elas, sem exceção, foram redigidas por um assessor legislativo da CNT. O deputado Renzo Braz (PP-MG) também chama a atenção. Todas as suas 19 emendas foram preparadas pelo mesmo assessor. Além de ser de família ligada ao transporte de cargas, sua campanha de 2014 foi bancada majoritariamente por empresas do setor de transportes.
Uma das emendas idênticas apresentadas pelos dois deputados mineiros, mas não acatadas pelo relator, previa que, por exemplo, se um motorista perdesse sua habilitação, ele pudesse ser demitido por justa causa pela empresa que o tivesse contratado. Da mesma forma que os colegas “amigos” da CNF, Diego Andrade e Renzo Braz também não estavam entre os 74 integrantes da comissão especial da Reforma Trabalhista.
Lobby informal
No dia a dia do Congresso, lobistas circulam livremente entre gabinetes de deputados e senadores, quase sempre com o rótulo de “assessor legislativo”, gerente de “relações governamentais” ou “relações institucionais” de associações que reúnem grandes empresas – ou, por vezes, representando diretamente uma empresa específica.
A legislação atual impede que eles apresentem emendas diretamente, embora isso seja feito de maneira clandestina, como revela o levantamento do The Intercept Brasil.
No regimento da Câmara, a determinação é que as emendas sejam apresentadas somente por parlamentares. No mesmo documento, o artigo 125 dá poderes ao presidente da Câmara para recusar emendas “formuladas de modo inconveniente” ou que “contrarie prescrição regimental”. Não há notícia de que o mecanismo tenha sido usado em algum momento para barrar emendas preparadas por agentes privados.
Advogados consultados pelo The Intercept Brasil divergem sobre a existência de crime a priori na produção de emendas por agentes privados.
“No caso do parlamentar, existe uma injeção ainda maior de dolo e é evidente o crime de corrupção passiva, justamente ao usar informações produzidas por uma entidade privada na esfera pública”, afirma Rafael Faria, professor de Processo Penal na Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro.
Segundo Faria, os parlamentares deveriam produzir emendas e suas justificativas por meio dos seus assessores contratados para trabalhar nos seus gabinetes, pagos com dinheiro público para exercer esse papel de assessoramento técnico e jurídico.
“Existe uma vantagem indevida, não sabemos qual é ainda, mas isso somente uma investigação poderá revelar. Mas que há, não tem dúvida. Não importa se o deputado não recebeu dinheiro de doações declaradas, é necessário que ele respeite as regras de compliance. Não trazer pareceres privados para a área pública”, argumenta.
“Mais uma vez verificamos que processo legislativo pode enganar ou esconder interesse escusos da sociedade.
“Mais uma vez verificamos que processo legislativo pode enganar ou esconder interesse escusos da sociedade. Identificada uma vantagem eventual, futura ou apenas prometida aos deputados, podemos então ter o crime de corrupção”, afirma.
O senador Romero Jucá (PMDB-RR) apresentou, no ano passado, uma PEC (47/2016) com apoio do governo para regulamentar o lobby no país. No campo legislativo, sua proposta prevê que lobistas possam apresentar emendas a projetos em tramitação no Congresso. A tramitação está parada no Senado, aguardando designação de relator na Comissão de Constituição e Justiça.
Criação e clonagme
Há os casos que seriam naturais na atividade parlamentar, em que assessores do gabinete do deputado ou mesmo consultores legislativos da Câmara são os “donos” do arquivo. Mas em 113 deles o autor era um funcionário de uma das quatro entidades empresariais citadas na reportagem. Esses mesmos textos e justificativas foram clonados, inclusive mantendo eventuais erros de português, por outros parlamentares (veja aqui um exemplo, envolvendo os deputados Rômulo Gouveia (PSD-PB) e Major Olímpio (SD-SP).
Em alguns casos, o dispositivo a ser modificado na CLT era alterado, mas a justificativa permanecia exatamente a mesma. Na maioria das reproduções, o autor constava como “P_4189”, indicando o terminal de algum servidor do Congresso. Ou seja, um terminal específico serviu como “copiadora” de emendas originalmente redigidas pelas associações e que acabaram sendo apresentadas por diferentes deputados.
O parlamentar que mais assinou emendas apresentadas por associações foi Major Olímpio, candidato a prefeito de São Paulo nas últimas eleições e deputado do Solidariedade – partido fundado e presidido pelo sindicalista Paulo Pereira da Silva, o Paulinho da Força, que é justamente um dos principais opositores da reforma. Com discurso geralmente pró-trabalhadores, Olímpio, no último dia 24, postou em seu Facebook um chamado para sua base eleitoral:
Na Reforma Trabalhista, Major Olímpio apresentou 31 emendas – 28 delas escritas pelas entidades empresariais.
Mas nem tudo envolvia apenas associações empresariais. Há casos de deputados que defenderam emendas de interesse dos trabalhadores, mas preparadas também por entidades externas que atuam na defesa desses interesses. Ao menos 22 emendas foram redigidas pelo presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho, Angelo Fabiano Farias da Costa. Elas foram encampadas por parlamentares do PT, PC do B, Rede e PDT, que têm posições majoritariamente contrárias ao governo Temer.
Também há emendas cujo autor original, nos metadados dos arquivos, consta como TST – presumidamente o Tribunal Superior do Trabalho, inclusive considerando o conteúdo das emendas. Nesse caso, foram 11 emendas com essa autoria, todas apresentadas pela deputada Gorete Pereira (PR-CE) e com conteúdo restritivo aos atuais direitos previstos na CLT. O presidente do TST, ministro Ives Gandra Martins Filho, é um dos entusiastas da tese do “negociado acima do legislado” e já foi apontado como artífice da Reforma Trabalhista apresentada pelo governo Temer.
As lições da Lava Jato
Os delatores revelaram em seus depoimentos aos procuradores que a relação corrupta construída com parlamentares envolvia, entre outros aspectos, a apresentação de emendas como contrapartida ao apoio financeiro já dado previamente ou como condição para colaborações financeiras futuras. É a promessa que, na avaliação da Procuradoria-Geral da República, caracteriza o crime de corrupção nos casos da Lava Jato. Um dos casos mais explícitos nesse sentido foi o de Romero Jucá, que apresentou quatro emendas preparadas pela Odebrecht à Medida Provisória 255 para que a petroquímica do grupo fosse beneficiada com redução de impostos.
Uma planilha organizada por Benedicto Júnior, outro delator, e apresentada ao Ministério Público detalhava montantes repassados a dezenas de políticos. Em um dos campos dessa planilha estava discriminado o motivo dos pagamentos. Uma das categorias apontadas no documento era “disposição para apresentar emendas/defender projetos no interesse da Companhia”. Um desses políticos, um deputado de codinome “Cintinho”, era Mauro Lopes (PMDB-MG), que agora aparece entre os parlamentares que se mostraram dispostos a assinar emendas de entidades privadas. No caso de Lopes, foram 24 assinaturas em documentos preparados previamente pela CNT e também pela associação das empresas de transporte de cargas.
O sigilo sobre as delações foi derrubado em 12 de abril. Na sequência, a imprensa, incluindo o The Intercept Brasil, publicou diversas reportagens sobre esse troca-troca promíscuo entre parlamentares e empresas privadas para a defesa de interesses comerciais no Congresso. A exposição dessa relação no mínimo controversa não impediu, contudo, que a CNF, a confederação dos banqueiros, usasse uma funcionária para entregar, no dia 19 de abril, no gabinete do deputado Antônio Bulhões (PRB-SP), ao menos seis emendas para serem assinadas e apresentadas por ele contra pontos do relatório da reforma.
“Sugestões pertinentes”
Major Olímpio, recordista de emendas apresentadas a partir das associações, afirma que sua função, como parlamentar, é “manifestar o anseio de todos os setores da sociedade”. “Apresentei emendas à reforma trabalhista, conforme meu entendimento sobre o projeto e outras conforme eu fui procurado e convencido da necessidade que o teor fosse colocado em debate”, escreveu o parlamentar, em nota.
Diego Andrade (PSD-MG), que apresentou somente emendas escritas pela Confederação Nacional do Transporte, disse que “as sugestões que acho pertinente, seja de projetos ou emendas, faço sempre uma análise jurídica e técnica, e apresento com convicção”. Acrescentou que “nosso gabinete continuará aberto a sugestões diversas, mas antes de apresentá-las sempre farei uma análise do mérito e nossa equipe uma análise técnica e jurídica”.
Rômulo Gouveia (PSD-PB) negou “veementemente” que “emendas, por mim apresentadas, foram elaboradas fora do meu gabinete”. Segundo ele, todas as suas emendas foram “discutidas e analisadas por minha assessoria técnica” e “confeccionadas no meu gabinete no dia 22 de março”. Contudo, no exemplo citado na reportagem, emenda idêntica apresentada por Major Olímpio foi protocolada cinco dias antes.
Gorete Pereira (PR-CE) nega que tenha apresentado emendas de autoria das entidades. Diz que, se elas estão coincidindo na redação, “eu não sei responder [a razão]”. “Respondo por todas que representei por achar que são importantes para a modernidade do Brasil”, disse.
Renzo Braz (PP-MG) e Paes Landim (PTB-PI), também citados diretamente nesta reportagem, não retornaram o contato até a publicação. Procuradas, nenhuma das entidades empresariais citadas comentou o teor da reportagem até o momento da publicação. Caso se manifestem, seus posicionamentos serão devidamente registrados.
Foto em destaque: Plenário da Câmara discute e vota novo requerimento de urgência para reforma trabalhista (19 de abril)
Colaboração: Bruno Pavan, Jéssica Sbardelotto e Rodrigo Menegat