Em artigo, Rachel Barros, educadora da FASE no RJ, diz que é preciso criar um discurso que não seja apenas combativo e de denúncia, mas que dispute a compreensão e a crença da população em relação a violência urbana instaurada na cidade
Por Rachel Barros.¹
Por que aceitamos, sem protestos que comovam toda a sociedade, o assassinato de enorme parcela da população? Por que legitimamos práticas de extermínio com símbolos de uma política de segurança eficaz? Essas são algumas das questões que nos faz refletir sobre os dias de barbárie que estamos vivendo.
Ato na Fiocruz contra a violência em Manguinhos. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Refletir criticamente sobre violência urbana e as ações de segurança pública no Rio de Janeiro significa apontar para processos cíclicos, especialmente quando essa discussão se faz no mês de abril. Em 2016, este mesmo mês foi marcado por inúmeros casos de homicídios durante ações policiais, a ponto de ser chamado por alguns de “abril sangrento”. Um ano depois, abril de 2017, são incontáveis os homicídios veiculados por diversos canais de comunicação comercial, movimentos sociais e de comunicação livre.
Em 2016, percebemos que o pano de fundo para a existência desse cenário violento foi a higienização e controle da cidade por ser um período que antecedia os Jogos Olímpicos – recolhimento de moradores de ruas, intensificação das operações policiais em favelas, remoções forçadas em várias partes da cidade e o auxílio das forças armadas para reforçar o controle militarizado. Na esteira desses acontecimentos, a tão anunciada falência do programa de pacificação – que não levou à sério como proposta política a estratégia da proximidade e da ausência de letalidade –, a retomada das incursões violentas e o aumento nos casos de chacinas nas favelas e periferias.
Contudo, alguns aspectos precisam ganhar centralidade nas análises que fazemos sobre essa conjuntura, pois eles modificam a maneira como enxergamos o problema e buscamos soluções. Nesse sentido, queremos relembrar dois casos marcantes ocorridos neste mês de abril: o assassinato a queima roupa dos jovens Alexandre Santos Albuquerque e Julio Cesar Ferreira de Jesus, e o assassinato de Maria Eduarda Alves Ferreira, todos mortos por policiais militares do 41º batalhão da Polícia Militar, situado em Irajá, zona norte do Rio de Janeiro.
O primeiro aspecto é a legitimidade da barbárie. As atitudes de apatia e aceitação são construídas a partir dos constantes episódios de tiroteios e incursões policiais truculentas, que estigmatizam as favelas como locais onde nasce a violência. Por sua vez, a mídia comercial utiliza palavras como “guerra”, “ordem”, “paz”, e adjetivos como “marginais”, “traficantes”, “bandidos” que reforçam a imagem pejorativa desses locais e de seus moradores, que desta forma podem ser lidos como mal a ser extirpado².
Territórios marginais
A criminalização de determinados espaços da cidade é recorrente, porém mais antiga é razão da sua existência: a escravização de mulheres e homens negros, arrancados de sua terra natal, desumanizados e tratados como coisas. O Brasil foi o último país no mundo a abolir a escravidão, e posteriormente adotou as teses eugenistas que viam no homem branco europeu o padrão civilizatório, e foram incorporadas à política pública de branqueamento adotada no país. O período escravagista e as políticas de branqueamento se conectam diretamente com a frase “bandido bom é bandido morto” e com as justificativas adotadas para aceitar a existência de batalhões policiais como o 41º BPM, que atualizam a função de desumanizar corpos negros.
Mantemos um padrão de mortes violentas pautado por um histórico de construção do negro como “inimigo interno” da sua própria sociedade, tanto é assim que se uma pessoa negra não estiver associada a uma categoria valorizada socialmente – trabalhador, estudante, filhos de pais que trabalham – sua vida ganha automaticamente justificativa para ser exterminada. Caso os jovens Alexandre e Julio, assassinados pelos policiais Fábio Barros Dias e David Centeno, fossem identificados publicamente como trabalhadores ou de estudantes, suas mortes certamente gerariam alguma comoção social.
O segundo aspecto importante a ser destacado são as práticas seletivas adotadas pelo sistema de justiça brasileiro. O assassinato dos jovens citados ajuda a identificar como tais práticas ocorrem. Os policiais foram filmados executando os dois jovens em Acari, zona norte da cidade, e foram presos em flagrante no dia 30 de março. No dia 07 de abril, ficou comprovado que uma das balas encontradas no corpo da jovem Maria Eduarda partiu da arma do policial Fabio. Mesmo diante dessas provas criminais, no dia 19 de abril, o juiz do 3º Tribunal do Júri, Alexandre Abrahão Dias Teixeira, revogou a prisão dos policiais e usou para sua justificativa três argumentos: os policiais não prejudicaram a investigação do caso, não desfizeram a cena do crime e por ter considerado na sua decisão a “voz das ruas”. Nas suas palavras: “Meditei muito sobre cada detalhe deste procedimento. Olhei, por horas, todo o acervo a ele atrelado. Ponderei especialmente sobre a voz das ruas”. Em fevereiro deste ano, este mesmo juiz arquivou o processo que também envolvia o policial Fabio na morte de dois homens, assassinados com um tiro de fuzil pelas costas, por “falta de justa causa”.
Essa sequência de fatos aponta práticas policiais e jurídicas que se retroalimentam: o argumento utilizado pelo Juiz Alexandre Abrahão anula provas concretas de crimes hediondos, e baseia sua decisão num suposto “clamor” popular. Seu argumento, portanto reforça a mesma ideia que legitima historicamente o assassinato de vidas negras. O 41º Batalhão é o que mais mata o que tem mais casos de balas perdidas, e, no entanto seus policiais continuam sendo absolvidos de crimes por um sistema de justiça que discrimina pela cor e silencia diante de práticas genocidas.
Racismo institucional
O arquivamento de processos diante de provas concretas e a legitimação de práticas como auto de resistência nos mostram a existência de um forte racismo institucionaldentro dos órgãos de justiça, que no fim das contas determinam se uma morte será crime ou não e se a prática da Polícia Militar será condenada ou tolerada.
Racismo. Práticas de extermínio. Atos jurídicos discricionários que legitimam práticas policiais de execução. Argumentos que clamam pelo uso excessivo da força. Racismo institucional. Nesse ciclo retroalimentado cotidianamente, não parece haver espaço para rompimentos, visto que o diálogo institucional com órgãos de defesa de direitos tem resultado em pouquíssimos avanços. A condenação de Rafael Braga a 11 anos de prisão, o único homem negro preso durante as manifestações 2013 pelo porte de uma garrafa de pinho sol, é o exemplo mais explícito e revoltante das práticas discriminatórias, tanto da polícia quanto da justiça. É chegada a hora de avaliar quais outras ações devem ser adotadas para mudar essa correlação de forças.
Vivemos tempos em que a descrença nas instituições torna viável a presença soluções ortodoxas e conservadores, e não à toa são nestes momentos que as práticas violentas se ampliam em programas televisivos sobre violência na hora do almoço; páginas de parlamentares e policiais em redes sociais onde tratam a morte de negros com prêmios de um bom serviço de proteção social; doses cotidianas de incursões policiais em nome da suposta “guerra ao tráfico” que só nasce na favela. Não conseguiremos transformações se o discurso da população continuar a ser baseado nesses fatos, sem reflexões críticas sobre as causas. Acredito que além denunciar e visibilizar as práticas institucionais que mantêm negros e pobres num lugar de subalternidade e violação, a dimensão de outro discurso ideológico precisa estar em nossas práticas.
As organizações sociais, os movimentos populares, os órgãos de defesa de direitos devem criar um discurso que não seja apenas combativo e de denúncia, mas que dispute a compreensão e a crença da população. Precisamos demonstrar como a corrupção policial é um passo importante para a entrada de armas de guerra nas favelas. Além disso, temos que debater os exemplos bem sucedidos de países que descriminalizaram as drogas e diminuíram os níveis de violência urbana e demonstrar como o racismo aparece nas instituições e como elas determinam a forma como participamos (ou não) das cidades.
Essa não é uma tarefa fácil, tampouco acredito que tenhamos resultados de curto prazo. Mas precisamos ganhar mais braços e mentes para lutar. E para isso, nossas pautas precisam ser disseminadas nas falas e nas práticas. Só assim teremos mais força para o enfrentamento desta guerra, que se alimenta das ideias e discursos para dar continuidade a barbárie que vivenciamos todos os dias.
[1] Educadora do programa da FASE no Rio de Janeiro.
[2] Em 1920, as primeiras análises travam as favelas como “mal contagioso” e “lepra estética”. De acordo com Valladares (2005) são essas primeiras imagens que apresentam a favela como o oposto do restante da cidade, construída racionalmente.
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Fonte: Fase.