Texto e foto: Ana Carolina Dionísio (Cepagro).
Passava um pouco das 9h da manhã quando parte da equipe do Ponto de Cultura Engenhos de Farinha chegou ao Engenho do Ademir, uma casa de madeira com chão batido numa encosta de morro na comunidade da Costa do Macacu, em Garopaba. Ao entrar no engenho, deixaram pra trás a bela paisagem da Praia do Siriú para encontrar o café posto na mesa e o proprietário do local, Ademir Rosalino, pilotando o fogão a lenha na preparação do almoço. “Fazer comida pra 40, 50 pessoas não me preocupa. Mas é que aqui é casa de engenho, depois da farinhada a gente só amontoa tudo num canto, aí fica tudo bagunçado”, desculpa-se o agricultor de 57 anos. Junto com as famílias dos 8 irmãos e outras 2 de vizinhos, ele continua fazendo farinha no engenho – antes propriedade do seu pai e do seu tio – “só por farra”. Nessa brincadeira, na farinhada do ano passado foram processadas ali cerca de 25 toneladas de mandioca, que renderam 52 sacos de farinha, ou 2.340 kilos. “Aí quando termina a farinhada é aquele chororô. Até me ofereceram um engenho pra comprar, mas eu não quis. Prefiro vir aqui com eles”, conta a agricultora Alice Gonçalves Vieira, vizinha de Ademir e parceira imprescindível nas farinhadas.
Com a ajuda da família e dos vizinhos, Ademir conseguiu deixar o engenho organizado para o III Encontro da Rede de Engenhos Artesanais de Santa Catarina, que aconteceu ali no último domingo, 2 de abril, promovido pelo Ponto de Cultura com recursos do Prêmio de Boas Práticas em Salvaguarda do Patrimônio Imaterial, concedido pelo IPHAN ao Cepagro em 2015. O evento contou também com apoio do Projeto Misereor em Rede, articulado pelo Cepagro. Os coxos e o cevador foram acomodados próximos às paredes, os balaios e alqueires (caixas de madeira para medir o volume de farinha) empilhados num canto e as ferramentas acomodadas dentro do forno para ceder espaço a engenheiros e engenheiras da mandioca de Garopaba, Biguaçu, Imbituba, Palhoça e Florianópolis, além do Secretário de Turismo de Garopaba, membros do Movimento Slow Food e outros parceiros e entusiastas da iniciativa, como o historiador Francisco do Valle Pereira (NEA-UFSC) e a antropóloga Alessandra Schmitt (da ONG AMA-Garopaba). De acordo com a educadora Giselle Miotto, que colabora na articulação da Rede e ajudou na facilitação do evento, o Encontro tinha o objetivo de “fortalecer a Rede, que será a base para trabalhar a proposta de registro junto ao IPHAN mais adiante”, referindo-se à construção coletiva e participativa de um dossiê para chancelar os engenhos de farinha como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil.
Buscando esse fortalecimento da Rede, as atividades começaram com a engenheira agrônoma Flora Castellano, do Projeto Slow Food-UFSC-MDA, apresentando uma linha do tempo da Rede de Engenhos, cujos primórdios remontam aos trabalhos do Ponto de Cultura Engenhos de Farinha, projeto que entre 2010 e 2014 promoveu diversas ações de valorização do patrimônio agroalimentar e cultural representado pelos engenhos através do Programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura. Na sequência, a agricultora Catarina Gelsleuchter, proprietária de um engenho em Angelina (SC), falou sobre sua experiência na Rede Ecovida de Agroecologia, para trazer aos participantes um pouco do que é integrar um coletivo com esse caráter. “Me sinto outra pessoa, pois sabemos que não estamos sozinhos. Agora também falamos com mais orgulho que somos agricultores”, contou Catarina.
Se pensar os objetivos da Rede é fundamental para seu fortalecimento, refletir sobre as motivações das pessoas para vir ao próprio Encontro é um dos passos iniciais. A partir do que já havia sido apontado nos Encontros anteriores, a equipe do PdC sistematizou as motivações das pessoas, que serviu de ponto de partida para a reflexão do domingo. Tradição, paixão e resistência foram evocadas várias vezes, assim como os impasses vividos pelos engenheiros e engenheiras artesanais.
Um dos principais é quanto às restrições sanitárias sofridas pela farinha de mandioca produzida artesanalmente, o que inclusive barra a certificação orgânica desses produtos. Para obter um selo “Orgânico Brasil” do Ministério da Agricultura, os engenhos teriam que enquadrar-se nos parâmetros de agroindústrias normais, com adequações na infra-estrutura e processos produtivos. “Nem temos interesse em ter essa certificação oficial, pois isso descaracterizaria o nosso produto”, afirma Catarina Gelsleuchter. Na lógica sanitarista, os saberes tradicionais de forneiro artesanal do seu marido, Celso Gelsleuchter, por exemplo, pouca importância teriam. Marlene Borges, da Associação Comunitária Rural de
Imbituba (ACORDI), pondera que “a rigidez sanitária chega a alguns absurdos, principalmente quanto a edificação. Mas a questão sanitária é importante. Às vezes são pequenos pontos que podemos nos orientar para regularizar o produto. Não dá pra fugir do
problema, tem que enfrentar. Mas não é porque uma construção é rústica que não tem higiene”. Luiz Farias, também da ACORDI, concorda: “Não importa se o Engenho é de tábua ou não, tem que estar limpo”. Para José Antônio Furtado, o Zezinho, proprietário de um engenho na Garopaba e membro da Rede Ecovida de Agroecologia, “o importante é a certificação na roça, da matéria-prima”. Joaquim Pereira de Souza, o Biluca, dono de um engenho e alambique de cachaça também no Macacu, concorda com Zezinho: “Olham pra azulejo, pra fábrica, pra o que é moderno, mas não pra matéria prima. O conjunto da obra é que é importante, se tem veneno na roça de mandioca ou não, por exemplo”.
Neste sentido, as iniciativas do Movimento Slow Food em construir as Fortalezas do Alimento – projetos que visam conservar um produto ou sua técnica de produção tradicional em risco de extinção – pode ser uma alternativa para certificar a farinha de mandioca artesanal sem implicar na descaracterização do seu processo produtivo. “É o reconhecimento de produtos que não
necessariamente se enquadram nos padrões sanitários”, explicou Flora Castellano. A regularização ou certificação da farinha de mandioca toca em outro ponto bastante discutido no encontro: a comercialização dos produtos dos engenhos. Divididos em grupos temáticos, os participantes debateram estratégias de fortalecimento deste eixo, assim como o turismo, a questão fundiária e a educação e cultura.
No âmbito da comercialização, a alimentação escolar foi considerada como um canal importante para escoar os produtos dos engenhos, como sugerido pelo Secretário de Turismo de Garopaba, Jackson Sena. Outros temas, como a formação de preço em rede, a possibilidade de um selo territorial ou de qualidade ligada à tradicionalidade e o criação de circuitos culturais-gastronômicos também foram levantados. De acordo com os participantes, a demanda por farinha de mandioca artesanal está em alta: “Estão procurando demais”, avalia Biluca.
No caso dos engenhos, a comercialização vai de mãos dadas com o turismo. “O turista que visita os engenhos também pode ser uma avaliador dos produtos, se criamos esse laço de amizade com os clientes”, considerou Catarina Gelsleuchter. A partir do exemplo da Rota da Baleia Franca, no litoral sul do estado, e da Acolhida na Colônia, nas Encostas da Serra, os e as participantes ressaltaram a importância de que este turismo seja de base cultural e comunitária, o que pode demandar uma preparação e capacitação dos engenhos para receber o público. Se por um lado temos exemplos de engenhos valorizados por suas edificações e patrimônio material, como o Casarão e Engenho dos Andrade, em Florianópolis, por outro o saber-fazer que envolve os engenhos em atividade – da escolha das variedades de mandioca e a influência destas na qualidade da farinha ao ponto da torra no forno – também pode constituir um atrativo cultural.
Um dos temas mais delicados e com mais especificidades na discussão é quanto à questão fundiária, com uma diversidade de situações abarcando os engenhos da Rede, conforme foi sintetizado pelo facilitador Alexandre Pires Lage, da equipe do PdC (foto). A ACORDI, por exemplo, encontra-se em uma área comunal que há anos vem resistindo a especulação imobiliária e a mega-projetos de “desenvolvimento” que buscam expropriar as terras dxs agricultorxs e trazem pesados impactos socioambientais para todo território. Já os engenhos da Ilha de Santa Catarina sofrem com a falta de terras para o cultivo de mandioca, pois as áreas rurais deixaram de ser consideradas no novo Plano Diretor. Para construir estratégias de atuação nesses contextos, os participantes tiraram como encaminhamento realizar um estudo sobre os Planos Diretores dos municípios e também buscar assessoria jurídica para ter esclarecimentos sobre seus direitos.
Como tema transversal a todos estão a Educação e a Cultura, como apontou a facilitadora Manuela Braganholo, também da equipe PdC Engenhos de Farinha. Nessa ponte entre escola e engenhos, tanto a alimentação escolar pode ser um canal de escoamento para os derivados da mandioca, quanto os próprios engenhos configuram espaços de aprendizagem. Atividades práticas para colocar as mãos na massa e na terra, produção de cartilhas e livros de receitas e um mapeamento dos mestres de engenho foram algumas das ações apontadas para fortalecer este eixo no âmbito da Rede.
Os recursos do Prêmio do IPHAN que vinham financiando os eventos já estão terminando, sendo suficientes para mais um encontro da Rede, que acontecerá na propriedade da família Gelsleuchter, em Angelina (SC), no final de maio ou início de junho. Mesmo sem a garantia de apoio financeiro, os/as membros da Rede continuam motivadxs a continuar encontrando-se para fortalecer seus nós e laços, mostrando na prática como os engenhos são movidos por paixão e resistência.
Mandioca neles!