Quando os portugueses e espanhóis chegaram, cá já estavam os carijós. Após quase dois séculos, africanos escravizados foram tirados de suas raízes e trazidos feito coisas para trabalhar no território que hoje é o estado de Santa Catarina. Alemães, italianos e outros europeus imigrantes mudaram-se para as planícies e vales um pouco depois. Na última década foi a vez de haitianos e sírios e, mais recentemente, nossos vizinhos venezuelanos. A principal semelhança entre esses ciclos de deslocamento em massa é a motivação em buscar condições melhores de vida — tirando dessa soma os povos africanos escravizados. A principal diferença, talvez, seja sobre as condições em que saíram de seus países de origem: muitos têm chegado à Santa Catarina em situação de refúgio, fugindo de guerras, violência, perseguição política e outras violações dos direitos humanos. A história — que se repete há séculos e também é a História do nosso Estado — é objeto de estudo e práticas realizadas por três projetos de extensão da UFSC: o Núcleo de Apoio a Imigrantes e Refugiados (NAIR/Eirenè), o Português como Língua de Acolhimento (PLAM/NUPLE) e a Clínica Intercultural (NEMPsiC).
Com jornalismo e ficção, o Documento Audiovisual “QUARENTA”, pra não esquecer, vai contar o que viveram e sentiram os moradores de Florianópolis e Região durante a ditadura militar, mais precisamente no fato conhecido como Novembrada que, no dia 30 de novembro, completa 40 anos. Saiba mais em https://www.catarse.me/quarenta
Segundo a 4ª edição da publicação Refúgio em Números, divulgada em julho deste ano pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) e pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), Santa Catarina foi o 4º estado da federação com mais solicitações de refúgio em 2018: foram 1.894 pedidos, o equivalente a 2% do total no país que, ao todo, recebeu mais de 80 mil solicitações. Dentre elas, 61.681 são de venezuelanos. Comparado ao ano anterior, o número mais que dobrou: em 2017 foram feitos 35 mil pedidos, sendo 17 mil de venezuelanos. No ano passado, 1.086 refugiados foram reconhecidos pelo Estado brasileiro, atingindo a marca de 11.231 pessoas vivendo no país nesta condição. Do total, sírios representam 36%, congoleses 15% e angolanos 9% dos refugiados.
Os papéis
Eirenè, em grego, significa paz. Na UFSC, é o nome do Centro de Pesquisas e Práticas Pós-coloniais e Decoloniais aplicadas às Relações Internacionais e ao Direito Internacional, coordenado pela professora Karine de Souza Silva. Um nome bastante simbólico, já que “vai na contracorrente das relações internacionais, que nasce tentando entender as causas da guerra”, aponta a professora. Desde 2014, o projeto de extensão desenvolvido pelo Eirenè, que começou atendendo na Pastoral do Imigrante e depois passou a ser realizado na sede do Centro de Referência no Acolhimento a Imigrantes e Refugiados (CRAI), já fez mais de 30 mil atendimentos a pessoas de 60 nacionalidades. Ou seja, representantes de um terço dos países reconhecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) passaram pelo projeto. A nacionalidade mais atendida é, desde 2015, a haitiana.
Os atendimentos consistem, sobretudo, em assessoria jurídica aos “imigrantes indocumentados”. “Uma vez que imigrar é um direito humano, não existem imigrantes ‘ilegais’, mas sim, que precisam regularizar sua situação, e é isso que os ajudamos a fazer”, ressalta a professora. Para além dos cerca de 800 atendimentos mensais, os 15 pesquisadores do Eirenè também trabalham na construção de uma rede com outras entidades que militam pelos imigrantes. Foi assim com os esforços coletivos entre UFSC, a Ação Social Arquidiocesana com a Pastoral do Migrante, Defensoria Pública da União e Grupo de Apoio aos Imigrantes e Refugiados em Florianópolis e região (Gairf) que, organizados em um grupo de trabalho junto à Comissão de Direitos Humanos na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc), conseguiu implementar o segundo CRAI do país em 2018, em Florianópolis. Após menos de dois anos de funcionamento, o Centro fechou as portas dia 20 de setembro, quando terminou o contrato com o governo do Estado. Hoje, o Nair/Irenè trabalha em conjunto também com a Polícia Rodoviária Federal e, no futuro, há a intenção de criar um museu para mostrar a importância da Universidade na questão da imigração e como ela vem cumprindo sua função social nesse sentido.
As palavras
Para além das questões legais, os imigrantes e refugiados também enfrentam outras dificuldades ao chegar ao novo país. Segundo o estudo “Migrantes, Apátridas e Refugiados”, divulgado em 2015 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o idioma aparece empatado com documentação como os dois principais obstáculos para acessar direitos e serviços públicos, na percepção dos imigrantes que moram em Santa Catarina. Pensando nisso, o Núcleo de Pesquisa e Ensino de Português (NUPLE) começou a oferecer, a partir de 2015, o projeto de extensão Português como Língua de Acolhimento (PLAM), que desde então, com ajuda de voluntários, atendeu cerca de 210 imigrantes. Atualmente, a iniciativa conta com a colaboração voluntária de oito estudantes da UFSC que trabalham como assistentes de sala. Dois professores ministram aulas para as duas turmas de cerca de 30 alunos: uma para quem tem conhecimento da língua e outra para quem está iniciando. O projeto todo ocorre com o auxílio de apenas uma bolsa de extensão.
A iniciativa vai além do espaço físico da Universidade, inclusive abrangendo regiões onde não há campus da UFSC, conta a coordenadora Rosane Silveira. São João Batista, município da região da Grande Florianópolis de pouco mais de 35 mil habitantes e conhecido por sua produção industrial de couro e cerâmica, tem recebido muitos imigrantes pela oferta de trabalho nas fábricas. Por meio da intermediação de uma aluna do curso de Letras Português, que conhecia o projeto, os integrantes do PLAM organizaram, junto ao advogado Nelson Zunino Neto, que auxilia os imigrantes da região, uma formação para os professores aposentados voluntários de São João Batista. Agora essa iniciativa atende entre 50 e 100 imigrantes que vivem e trabalham na cidade. “A gente dá o pontapé inicial, mostra e explica como e o que a gente faz”, conta a professora Rosane, que também pontua outros dois locais de atuação do PLAM: em São José, na Escola de Educação Básica Presidente Juscelino Kubitschek, e na Escola de Educação Básica Padre Anchieta, no bairro Agronômica, em Florianópolis. Essa última com o intuito de ajudar 18 crianças imigrantes que não falam português.
Como o público-alvo do projeto circula muito pelo estado em busca de oportunidades de emprego, o atendimento é pensado para acolher essas especificidades. “Venha na próxima aula”, é a resposta-convite padrão a questionamentos como período de matrículas ou data de início das aulas. Os voluntários fazem o cadastro do estudante no mesmo dia em que ele começa a assistir as aulas que, elaboradas para começar e terminar no mesmo dia, abordam questões práticas da vida dos imigrantes. Instruções de como ser atendido no posto de saúde, como explicar sobre suas dores ao médico, nome das partes do corpo, documentos para fazer a carteirinha, entre outras funções da linguagem em necessidades cotidianas são exemplos dos temas das aulas.
Os sentimentos
As questões materiais são fundamentais para garantir que essas pessoas não sofram violação dos direitos humanos. Porém, questões menos objetivas do ponto de vista prático — e que atingem cada pessoa de uma maneira diferente — também são de extrema importância e precisam de atenção e cuidado. Pensando na saúde mental das pessoas que deixam sua terra natal para trás, o Núcleo de Estudos sobre Psicologia, Migrações e Culturas (NEMPsiC), há sete anos, desenvolve o projeto de extensão Clínica Intercultural. Ele se propõe a oferecer um espaço de escuta sensível e atende imigrantes e refugiados nas mais diversas condições: desde os que tenham sido expostos a situações extremas, como guerras, genocídios e torturas, até os que estão com outros problemas de saúde mental relacionados à aculturação e à adaptação na sociedade para qual ele imigrou. Esse público, muitas vezes, chega à Clínica apresentando sintomas severos de estresse psicológico ou estado de estresse pós-traumático.
Desde sua fundação, a Clínica Intercultural realizou mais de 1,5 mil atendimentos, para pessoas de dentro e de fora da comunidade acadêmica, de 25 nacionalidades diferentes. Entre os pacientes atendidos estão angolanos, colombianos, cabo-verdianos e haitianos. O projeto conta com, em média, 10 psicoterapeutas, entre alunos da graduação, pós-graduação, professores e psicólogos voluntários. Segundo a professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP/UFSC) e fundadora da Clínica, Lucienne Martins Borges, o público-alvo dos atendimentos são aquelas pessoas que migraram de seus países de maneira forçada, aquelas que “não estão buscando uma vida melhor, estão em busca de, em primeiro lugar, vida”. Essas histórias pré-migratórias, envolvendo, entre outros fatores, catástrofes, guerras, perseguição política e sexual, fazem com que o imigrante refugiado chegue com a sua identidade muito fragilizada. A professora Lucienne baseou o projeto a partir de uma experiência criada por ela e Jean-Bernard Pocreau, em 2000, na Université Laval, no Canadá. A política de acolhimento de lá prevê que, nos dez primeiros dias de chegada, seja oferecido atendimento psicoterapêutico aos imigrantes e refugiados. “A partir do momento em que não propomos uma efetiva política de acolhimento, causamos uma retraumatização dessa condição existencial”, afirma a professora. Os atendimentos ocorrem a médio e longo prazo e são propostos dentro da modalidade clínica chamada “coterapia intercultural”, na qual um grupo de terapeutas atende a um único paciente ou situação, ou seja, um casal, uma família, entre outras configurações.
Os três projetos compõem a Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM) na UFSC, uma iniciativa do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e do Comitê Nacional para Refugiados, órgão ligado à Secretaria Nacional de Justiça, certificando e apoiando iniciativas que trabalham diretamente com os refugiados. A CSVM abrange os três eixos das instituições públicas federais, que são garantidos na Constituição por meio do artigo 207. São eles: pesquisa, ensino e extensão. Aqui na UFSC, a CSVM ganha mais potência na área de extensão, como avalia Karine, coordenadora do Èirene e também da Cátedra na UFSC: “Eu trabalho com essa noção de que extensão é uma forma de a universidade atravessar a rua e do mundo invadir a universidade, ou seja, é a promoção de um encontro não hierarquizado com a diferença”. A Cátedra é uma homenagem ao brasileiro Sérgio Vieira de Mello, que dedicou 34 anos de sua carreira ao trabalho com refugiados nas Nações Unidas, como funcionário do ACNUR. Ele foi morto em um atentado a bomba contra a sede da ONU no Iraque, em 2003, junto com outras 21 pessoas.
O contingenciamento do orçamento da UFSC, assim como os cortes de bolsas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) já afetaram as atividades dos projetos de extensão. Enquanto pesquisadores do Èirene perderam bolsas de pesquisa, o PLAM teve uma aula cancelada porque o bloco B do Centro de Comunicação e Expressão (CCE/UFSC) não pôde abrir no sábado, dia da aula. Devido à revisão de contratos e redução do quadro de funcionários, o prédio ficou sem porteiro aos sábados, inviabilizando outros cursos de línguas que ocorrem nesse dia. Integrantes da Clínica Intercultural também perderam bolsas PIBIC, dificultando a permanência no projeto.
As pessoas
Há um ano e nove meses no Brasil, Wilgens Moises se comunica num tom calmo e usa todas as palavras em português. Nascido no sul do Haiti, no Caribe, o estudante e professor de Matemática de 24 anos deixou emprego, família, amigos e país pra trás em busca de melhores condições de vida. Veio parar no Brasil, onde a namorada — hoje esposa e, em breve, mãe de seu primeiro filho — tem uma tia que os acolheu na chegada. Os seis meses seguintes, desde o janeiro de 2018 que aqui chegaram, foram os mais difíceis, pois Wilgens não conseguia trabalho. “Quando cheguei aqui eu não sabia nada em português. As pessoas falavam e eu não entendia. O português é bem diferente da nossa língua, que é o crioulo, e falamos francês também”, explica.
Por meio de um amigo que participava das aulas do projeto Português como Língua de Acolhimento da UFSC, Wilgens, três meses após sua chegada, começou a aprender nosso idioma. Hoje ele trabalha em um restaurante e comemora o fato de conseguir pagar o aluguel e as demais contas da família. “Agora tenho que trabalhar mais, é mais difícil sobreviver com um filho. Vou trabalhar mais para conseguir uma melhor vida”, conta o futuro pai.
Quando questionado sobre do que tem saudades, Wilgens não precisa pensar pra responder: “De tudo. Porque é minha terra, sabe? Tenho saudade da minha família. Do meu pai, da minha mãe, irmã, irmãos. Eu já me acostumei viver aqui, mas tenho muita saudade do meu país.” Apesar disso, os planos são de continuar no Brasil. “Pensamos em ficar aqui, aqui somos mais felizes e tudo é mais tranquilo, estamos em paz”, declara.
SERVIÇO
Núcleo de Apoio a Imigrantes e Refugiados (NAIR/Eirenè)
Atendimentos, que antes eram realizados na sede do CRAI, passaram a ser feitos pelos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) dos bairros e pela Defensoria Pública da União (DPU). Contato através do e-mail .
Português como Língua de Acolhimento (PLAM/NUPLE)
Aulas aos sábados de manhã, no Centro de Comunicação e Expressão (CCE/UFSC). Para participar da aula basta estar às 9h no local e falar com os voluntários. Contato através do e-mail .
Clínica Intercultural (NEMPsiC)
Os atendimentos ocorrem no Serviço de Atenção Psicológica (SAPSI), localizado no 2° andar do Bloco D do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH/UFSC). Agendamentos devem ser feitos através do e-mail ou pelo telefone (48) 3721-8571.