Entrevista com Silvia Viana.
Os reality shows seriam impensáveis “até trinta anos atrás, quando o capitalismo tomava por justificativa o ‘bem-estar’ que produzia”, assinala a socióloga.
Confira a entrevista.
“Os reality shows são mal-estar enlatado para consumo, e isso só é possível em uma estrutura social que já não se preocupa com autolegitimação alguma”. A reflexão é de Silvia Viana, autora do livro Rituais de sofrimento, que será lançado pela Boitempo Editorial no dia 6 de fevereiro em São Paulo, a partir das 19h no Espaço Serralheria (Lapa). Para ela, a popularidade desses programas está diretamente relacionada à reprodução da “forma de dominação típica do capitalismo de acumulação flexível, dominação essa que ainda não foi superada”.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, Silvia compara os processos do programa à estrutura capitalista, onde “devemos ser ‘fortes’ para ‘superar as dificuldades’ (por mais imbecis e esdrúxulas que sejam) e, por fim, ‘sobrevivermos’”. E conclui: “O assustador é que essa mesma estrutura organiza nossa existência no atual modo de produção: trabalhamos para arrumar mais trabalho, para não sermos demitidos, para sobrevivermos… E se retirarmos essa fantasia que organiza nossa existência, o que resta é o ‘Truman Show’: o tédio insuportável da vida desprovida de sentido”.
Silvia Viana é graduada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP, mestre e doutora em Sociologia pela mesma universidade.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O elemento sofrimento pode justificar o sucesso de programas de reality shows?
Silva Viana – Se você quer dizer com isso que os telespectadores gostam de assistir a esses programas porque são sádicos, eu responderia que não. Pelo contrário, a noção de que somos todos perversos é o falso discurso dos próprios programas. Quando Pedro Bial afirma, em tom irônico, que o telespectador, em sua “imensa bondade”, deve votar na forma de tormento mais adequada aos participantes (na prova da “garagem”, de 2010), é isso o que ele sugere, mas não é verdade. De fato, nos anestesiamos como uma forma de defesa, para fugirmos do sofrimento, gerado em nós, pela imagem da dor alheia. Nossa sociedade exige que sejamos “fortes”, que não nos deixemos abalar, que “superemos os desafios” (por mais estúpidos e sem sentido que sejam). Mas, acima de tudo, exige que participemos, seja lá do que for, ininterruptamente. Para que possamos cumprir essa ordem social precisamos nos distanciar de nossa própria compaixão. É isso o que os telespectadores fazem: acima de tudo, eles participam, seja lá no que for, seja lá como for.
IHU On-Line – O que os faz permanecer no ar por tanto tempo?
Silva Viana – Se você pensar bem, não é tanto tempo assim. Os reality shows surgiram no início da década de 1990. Eles permanecem ainda hoje por reproduzirem a forma de dominação típica do capitalismo de acumulação flexível, dominação essa que ainda não foi superada. Imagino que esse formato televisivo seria impensável até trinta anos atrás, quando o capitalismo tomava por justificativa o “bem-estar” que produzia. Os reality showssão mal-estar enlatado para consumo, e isso só é possível em uma estrutura social que já não se preocupa com autolegitimação alguma. O capitalismo hoje já não promete nada, nem mesmo o prêmio de consolação da época anterior: segurança e conforto. O horizonte máximo que se apresenta é: “trabalhe, trabalhe muito, pois, talvez assim, você possa continuar tendo mais trabalho até o fim de sua vida”. Isso não é promessa, é ameaça, e é o máximo de garantia que nosso mundo oferece. Mesmo que os reality shows deixem de atrair o público, o importante é que esse sistema que os gera desapareça.
IHU On-Line – O que compõe a “engrenagem do sofrimento”?
Silva Viana – Usei o termo “engrenagem de fazer sofrer” para caracterizar o funcionamento de nossa sociedade. Em termos bastante sintéticos, a máquina funciona da seguinte forma: o capitalismo contemporâneo nos leva a crer que vivemos em permanente escassez (como se não houvesse trabalho ou riqueza para todos). Para que conquistemos nossa cota de migalhas, precisamos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para nos mantermos produzindo. Isso significa um sacrifício sem fim, em termos de trabalho exaustivo, mas também em termos de nossa subjetividade, de nossas crenças, de nossas relações sociais, de nosso tempo etc. Por si só, esse sacrifício já é gerador de um imenso sofrimento físico e psíquico. Mas não é apenas isso: estamos já acostumados a ouvir a ladainha segundo a qual “ser um vencedor” significa “vencer a concorrência”, significa passar por cima dos outros. Bem, como não somos uma sociedade de psicopatas, esse “passar por cima dos outros” exige que nos libertemos de nossa compaixão. É precisamente isso o que a propaganda do mundo sugere quando afirma incessantemente que “devemos ser fortes”.
Para nos resguardarmos de toda essa dor e não enlouquecermos, criamos mecanismos psíquicos de defesa, como se nos anestesiássemos a nós mesmos. Assim, somos capazes de suportar cada vez mais sofrimento e assim o sofrimento se torna cada vez mais aceitável. Um exemplo: quando um participante de reality show é obrigado a votar em uma pessoa com a qual têm convivido diariamente, porque “só pode haver um vencedor”, isso gera mal estar. Por isso ele cria mecanismos de defesa que fazem esse trabalho sujo se tornar suportável, daí aquelas repetições de frases feitas: “isso é um jogo, tenho que jogar”, “nós temos menos afinidade”, “gosto dele, mas, infelizmente, algum dia todos teremos que voltar para casa” etc. Não são frases de hipócritas, como se costuma pensá-las, são frases que geram alívio para a realização do trabalho sujo que lhes foi confiado: a eliminação dos outros.
IHU On-Line – Como aparece o príncipio violento do BBB? Em que situações aparece o caráter cruel do jogo?
Silva Viana – Ora, esse princípio é o que mais se divulga! O site da emissora pergunta: “Quer ver o participante sofrer?”, o apresentador diz que aquilo “não é uma colônia de férias”, o diretor afirma que o BBB “é um jogo cruel”, os telespectadores dizem querer ver “sangue”, o narrador da propaganda de “A Fazenda” afirma que “o cerco se fecha, o medo aumenta…”, o participante compara sua situação com a das vítimas de Jigsaw do filme “Jogos Mortais”. Logo após ter sido eliminado mediante a sessão de tortura que ficou conhecida como “quarto branco”, o participante teve que ouvir a seguinte pergunta de Pedro Bial: “Tem gente que vendo lá de casa diz assim: ‘Ah! Mas é só um quarto branco, o que tem de mais?’. Conta pra gente a barra que é”. A humilhação e o sofrimento estão lá para quem quiser ver, em rede nacional, sublinhados por setas de neon. O problema não é que a brutalidade seja um princípio oculto que, para ser visto, necessite de uma análise aprofundada. O problema é outro: como é possível que essa violência banal e despropositada seja explicitada com tamanho desvelo e, ainda assim, as pessoas tomem parte nisso?
IHU On-Line – Por que você afirma que “nenhum contrato assinado pelos participantes de reality shows poderia ser válido em qualquer lugar no qual a democracia e os direitos humanos vigoram”?
Silva Viana – Em teoria vivemos em um Estado de Direito, seu princípio é o de que há direitos fundamentais que são inalienáveis, ou seja, não podemos abrir mão deles, mesmo que assim desejemos. O princípio da inalienabilidade foi formulado justamente para que não haja servidão voluntária, ou seja, uma pessoa não pode abrir mão de seu direito de ir e vir em troca de um prêmio, do mesmo modo, não pode abdicar de sua dignidade por fama. Por mais que os participantes afirmem que seu confinamento seja de sua livre e espontânea vontade (afirmação que, por sinal, deve ser questionada, já que em outros momentos afirmam que necessitam estar lá), isso não poderia acontecer em um verdadeiro Estado de Direito. Além disso, é da lógica dos programas que as pessoas sejam surpreendidas por formas variadas de tortura e humilhação; isso significa que, ainda que fosse aceitável a alienação desses direitos (sabe-se lá com que justificativa), os participantes não poderiam optar por passar pelo que ainda não sabem que ocorrerá. Como os participantes poderiam afirmar que aceitaram livremente ir a um “quarto branco”, e passar por uma sessão enlouquecedora de privação de sentidos, se eles não sabiam que lá seriam atirados?
IHU On-Line – Em que você se baseia ao defender que os reality shows indicam que “vivemos em um estado de exceção permanente, pulverizado e onipresente”?
Silva Viana – No que eu afirmei na resposta anterior. Esses programas assumem o papel de pequenos soberanos e se arrogam o direito total sobre a imagem e os corpos daqueles que lá estão aprisionados. Isso ficou muito claro no caso do suposto estupro que ocorreu na edição passada do BBB. A produção não apenas protelou a entrada do poder público na “casa”, como realizou, ela mesma, um interrogatório com os envolvidos no caso antes mesmo que a polícia tivesse contato com eles. Além disso, muito do conteúdo dessa investigação privada foi divulgado como parte do show. Por fim, a produção eliminou sumariamente o suposto criminoso, sem que uma investigação pública tivesse sequer sido iniciada. O poder de uma empresa privada – a Rede Globo, mas não apenas ela, também a Record, o SBT, aBandeirantes e todos os demais produtores desse tipo de mercadoria – de torturar a seu bel prazer, de controlar a alimentação dos “confinados” (inclusive como forma de punição), de submetê-los a escracho público, de expor seus corpos etc, é um poder de exceção que, pelo jeito, tornou-se regra. E não é regra apenas na indústria cultural. Quando a empresa de telemarketing controla os horários de ida ao banheiro de seus funcionários, através de um “check in” em suas estações de trabalho, está fazendo exatamente a mesma coisa.
IHU On-Line – Qual a inspiração que a obra 1984, de George Orwell, exerce sobre o formato de reality shows que são feitos pelo mundo?
Silva Viana – Para além do uso cínico do termo “big brother”, que já é uma declaração explícita da brutalidade do que é transmitido, creio que pouca. Costuma-se associar os reality shows com essa obra devido à vigilância permanente dos confinados. Contudo, a vigilância é fator secundário, importam mesmo os rituais que dão forma ao que será vigiado. Imaginemos que uma emissora realizasse um programa como o Truman Show (Filme de Peter Weir, de 1998), ou seja, que a vida cotidiana de uma pessoa comum fosse transmitida ininterruptamente: o beijo matinal na esposa, a ida de carro ao trabalho, a realização do trabalho diante do computador, a volta ao lar… Fica chato até de contar! Esse programa seria um fracasso estrondoso.
Os reality shows deslocam a vida cotidiana dos participantes, seja mediante o isolamento físico, seja por alguma “transformação radical” em sua vida (como em realities de “transformação” ou de “consultoria”), em todos os casos, impondo-lhes alguma forma de “desafio”. É esse “desafio”, na forma da seleção ou de provas brutais, ou de ambas, aquilo o que gera o interesse na vigilância. Apesar da variedade dos tormentos aplicados, a estrutura narrativa final é apenas uma: devemos ser “fortes” para “superar as dificuldades” (por mais imbecis e esdrúxulas que sejam) e, por fim, “sobrevivermos”. O produto só se torna vendável quando conformado por essa narrativa. O assustador é que essa mesma estrutura organiza nossa existência no atual modo de produção: trabalhamos para arrumar mais trabalho, para não sermos demitidos, para sobrevivermos… E se retirarmos essa fantasia que organiza nossa existência, o que resta é o “Truman Show”: o tédio insuportável da vida desprovida de sentido.
(Ecodebate, 25/01/2013) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]