Por Fernando Evangelista.
Antes de entrar na velha Kombi árabe, ciente da encrenca em que estava me metendo, lembrei-me de uma frase do poeta alemão Friedrich Hölderlin, decorada para um teste de literatura na escola: “Lá onde está o perigo, cresce também o que salva”.
Somos nove pessoas espremidas dentro da Kombi. Nossa intenção é sair de Jerusalém, onde estamos hospedados, e ir para Ramallah, coração político dos territórios palestinos. Tudo seria simples, não fosse um detalhe: está em curso a operação militar Escudo Defensivo e todas as estradas, controladas por Israel, estão bloqueadas.
Ninguém pode entrar ou sair das cidades palestinas, ocupadas por tanques e soldados israelenses. O Exército impôs um toque de recolher e quem o desrespeitar será considerado “alvo legítimo” – ou seja, será morto.
As primeiras notícias das agências internacionais falam em violentos combates em Ramallah, Jenin e Belém. Palestinos denunciam massacres contra civis. O primeiro-ministro de Israel, Ariel Sharon, conhecido pelo simpático apelido de Carniceiro de Beirute, anuncia pela televisão o início de uma batalha implacável “contra a infraestrutura do terrorismo”.
O ministro da defesa de Israel, Benyamin Ben-Eliezer, convoca 20 mil reservistas e alerta que a ofensiva militar na Cisjordânia “será apenas o começo”. Sessenta tanques de guerra invadem Ramallah. Destes, vinte circundam e atacam o quartel-general da Autoridade Palestina. Yasser Arafat, refém em seu quartel, diz estar pronto para tornar-se mártir “pela paz e pela liberdade”.
A operação começou em 29 de março de 2002 e eu cheguei a Israel um dia antes. Na véspera de minha partida, Sérgio de Souza, meu querido chefe, editor da Caros Amigos, me disse: “Os ânimos estão calmos na Palestina nestes meses, mas do jeito que as coisas são e do modo como você é sortudo, é capaz de acontecer alguma coisa importante”. Bingo!
Na Kombi, exceto o motorista palestino e eu, são todos ativistas italianos, integrantes do Ya Basta!, grupo de defesa de direitos humanos. A presença de estrangeiros, acreditam os palestinos, poderá inibir as ações militares de Israel. Os militares israelenses não gostam desses europeus. Não gostam de Kombis palestinas. Não gostam de testemunhas. Em resumo: não éramos bem-vindos.
Sem a possibilidade de passarmos pela estrada principal, somos obrigados a percorrer um trajeto mais longo, contornando algumas colinas. Depois, se tudo desse certo, trocaríamos de veículo. Entre nós, as frases são nervosas, entrecortadas, quase sem sentido. As janelas da Kombi estão fechadas. Um senhor italiano, o mais velho de nós, arquiteto bonachão, fuma distraidamente. Partimos.
Lembro-me da reunião da noite anterior, quando se decidiu enviar um grupo de nove pessoas a Ramallah. Um palestino, preocupado com a segurança dos ativistas, alertara que o caminho a ser percorrido pela Kombi, caminho proibido e secundário, poderia estar minado e este seria o maior risco.
Outro palestino discordou e disse que o maior risco seria a Kombi ser localizada por helicópteros israelenses. “Se eles localizarem o veículo, podem disparar e acabou-se, aí vai tudo pelos ares, aí kaput”. Dito isso, os líderes do grupo perguntaram se havia alguém disposto a correr o risco. Nove cretinos levantaram as mãos. Duas mulheres e sete homens. Eu era um deles.
Agora, sentando no banco de trás da Kombi, na última fila, com a cabeça recostada no vidro, ao lado de um cara com pinta de surfista, tento não demonstrar meu súbito e incontrolável arrependimento. O surfista me olha e sorri. Eu escrevo repetidas vezes no meu bloquinho de anotações: kaput, kaput, kaput.
O surfista puxa papo, quer saber de onde sou, o que faço. Chama-se Aram Cunego e parece um bom sujeito, curioso e culto. É um italiano do Norte, estudante universitário, apaixonado por América Latina, Tom Jobim, Chico Buarque, Eduardo Galeano, Mercedes Sosa. A conversa parece fora de contexto, e realmente é, mas ajuda a despistar o medo.
Alguns quilômetros depois, a Kombi pára e nós seguimos a pé a trilha que contorna a colina – uma estrada de barro, inclinada, sem nenhuma casa ou vivalma por perto. À direita, uma grande extensão de terra plana, com árvores esparsas. Do outro lado da trilha está a nossa nova Kombi, que na verdade parece mais velha do que a primeira.
Entramos em Ramallah por volta do meio-dia, uma hora depois da saída de Jerusalém. O trajeto, normalmente, leva 15 minutos. As ruas da cidade estão completamente desertas, muitos prédios estão com a fachada destruída. Postes de luz caídos no meio da estrada e carros destroçados por tanques do Exército israelense dificultam a nossa passagem. Tudo parece ter sido abandonado às pressas. É um cenário impressionante.
– Que coisa! – diz Aram, o surfista italiano, olhando pela janela da Kombi.
– Que coisa – eu repito.
E então, quando o pior parece ter passado, quando nosso hotel improvisado parece finalmente próximo, surge – bem no meio do caminho – um tanque de guerra do Exército israelense. Nunca tinha visto tanques em ação, só em filmes americanos. O que fazer quando se encontra um tanque no meio do caminho?
O motorista freia bruscamente, dá ré e, sem ver o que está atrás, acelera e acelera e…. eu tento escrever alguma coisa no bloquinho, mas não consigo. Leio o que está na folha: kaput, kaput, kaput. Por que tive a má ideia de me meter nisto?
Ainda de ré, o motorista desvia de uma rotatória e entra numa rua mais larga, provavelmente uma avenida e, sem desacelerar, gira o volante, mudando o sentido. O tanque pesado, porém rápido, vem atrás, sem trégua. A Kombi, cada vez mais instável, derrapa pelas ruas da cidade.
De repente, como numa peça de Artaud, toca o telefone do arquiteto bonachão, velho fumante. Ele é o único de nós com telefone por satélite. “Sim, querida, está tudo ótimo, tudo super tranquilo, mas agora não posso falar com você porque tem um tanque me perseguindo, depois a gente se fala. Te amo. Não esquece da comida do gato”.
“Que coisa”, eu penso. Dois dias depois, eu também receberia um telefonema deste tipo, num momento tão ruim quanto este. Sempre em alta velocidade, depois de muitas curvas e esquinas, atalhos e descampados, conseguimos despistar o monstrengo de aço e chegamos incólumes ao hotel. O surfista Aram e eu voltamos a falar sobre América Latina.
Em Ramallah, esperava encontrar palestinos destemidos e raivosos, empunhando cimitarras e kalashnikovs, mas vi, principalmente, muita tristeza, cansaço e pobreza. Metade dos palestinos da Cisjordânia vive com menos de dois dólares por dia e 60 por cento estão desempregados. A situação é ainda pior em Gaza.
O mais impressionante, porém, ainda estava por vir e viria nas 48 horas seguintes. Aram e eu continuamos conversando e, entre outras coisas, descobri que ele não era surfista, apesar das evidências em contrário.
Durante a madrugada, observando da janela do hotel os clarões das bombas que explodiam nas ruas próximas, voltei a pensar na frase de Hölderlin: “Lá onde está o perigo, cresce também o que salva”.
(Continua na próxima terça-feira…)
Fernando Evangelista é jornalista, diretor da Doc Dois Filmes. Cobriu três guerras no Oriente Médio e conflitos na Europa e América do Sul. Mantém a coluna Revoltas Cotidianas, publicada toda terça-feira. Ilustração visual do texto por Juliana Kroeger com fotos de Matt Corner.
É muito bom ler textos sobre a Palestina escritos por latinoamericanos. E mais ainda, que conhecem de perto o que acontece por lá. Obrigada, Fernando!