Quem Marielle Franco representa?

Foto: Rosangela Bion de Assis, para Desacato.info

Por Luis Felipe Miguel.

O assassinato da vereadora Marielle Franco, do PSOL carioca, e de seu motorista, Anderson Pedro Gomes, gerou uma comoção nacional. Num país em que a convivência cotidiana com a violência colabora para anestesiar a reação a ela, o crime da noite do último dia 14 fugiu à regra. De norte a sul, multidões foram as ruas, de uma forma talvez inesperada. O assassinato de Marielle Franco se tornou um divisor de águas na conjuntura política.

Foi uma execução que não procurou disfarçar seu caráter, indicando a clara intenção de passar um recado a outras lideranças e ativistas que combatem a conexão entre forças repressivas e crime organizado no Brasil. Foi a morte de uma representante eleita, na segunda maior cidade do país, sinalizando o crescente descontrole da violência política aberta. Foi o silenciamento de uma das mais promissoras políticas da nova geração da esquerda, no momento em que se promove criminalização de todo esse espectro. Foi o assassinato de uma crítica e opositora da intervenção militar em curso no Rio de Janeiro, como numa demonstração de que a ameaça à reprodução da insegurança urbana não está na manobra pirotécnico-eleitoral de Temer, mas em pessoas que, como ela, apresentam diagnósticos mais complexos e mais conectados à questão de nossa dívida social. E foi a morte de uma mulher negra, periférica, lésbica – uma sobreposição de pertencimentos que apontam, sempre, para os grupos mais excluídos e agredidos da sociedade brasileira. Muitos simbolismos reunidos na mesma tragédia.

Quase imediatamente, a direita buscou esvaziar os sentidos da execução de Marielle Franco. O silêncio do candidato fascista à presidência é eloquente: espremido entre a sanha de seus seguidores fiéis, que veriam qualquer mínima demonstração de humanidade como “frouxidão”, e a necessidade de apaziguar aqueles que querem aderir à sua campanha mas continuar se sentindo civilizados, não tinha como se manifestar. Outros, no entanto, fizeram o trabalho sujo, espalhando mentiras sobre a vida da vereadora, afirmando que era merecida a morte de uma “defensora de bandidos” ou, como a Rede Globo, apagando toda a sua militância e usando-a para justificar as políticas que ela sempre combateu.

Um pequeno site de extrema-direita divulgou a informação, baseada em dados do TSE, de que a vereadora só conquistara 50 votos – dos mais de 46 mil que a elegeram – na Maré, sua base eleitoral, que passaria assim à posição de “pretensa” base eleitoral. Num trabalho cuidadoso, o cientista político Lucas Gelape demonstrou o erro de método e estimou, com maior precisão, que ela obteve 1.069 votos na Maré, aos quais se podem somar mais 1.579 no bairro vizinho, Bonsucesso.

Gelape mostra que Marielle Franco foi a quarta candidata mais votada na Maré, obtendo 3,2% dos votos locais. Numa eleição de votação pulverizada como costuma ser a eleição para vereador, não é algo desprezível. Mas cabe observar que os três candidatos mais votados, todos de partidos de direita, somaram 36,4% dos votos da Maré. Embora a votação de Marielle Franco nas regiões mais pobres da cidade não tenha sido inexpressiva, sua vitória dependeu do forte apoio obtido em bairros como Tijuca, Copacabana, Botafogo ou Laranjeiras, isto é, os bairros de classe média e classe média alta da Zona Sul carioca.

Nada disso invalida a reivindicação que a vereadora sempre fez de ser representante da Maré – como, aliás, Gelape também indica acertadamente. Afinal, uma liderança não é a expressão da mentalidade média de um grupo, mas quem o puxa para além desta mentalidade. Marielle Franco representava uma compreensão dos interesses dos moradores da Maré – e, de forma mais geral, da população pobre e preta da cidade do Rio de Janeiro – e dedicava seu mandato a isso, com valentia e dignidade.

Ainda assim, o mapa eleitoral induz a duas reflexões. A primeira é que ele indica o equívoco da leitura exclusivamente identitária da representação e da política. A cientista política inglesa Anne Phillips cunhou as fórmulas “política de presença” e “política de ideias”, lembrando que elas são dimensões concomitantes do processo representativo. Marielle Franco era uma presença poderosa – como mulher, como negra, como “cria da Maré”, como ela mesma dizia – numa política que sempre excluiu aqueles iguais a ela. Mas era também a expressão, igualmente poderosa, de ideias, de um projeto ético-político de esquerda, que reverberava para além de seu grupo de origem. Apagar essa segunda dimensão é não entender uma parte importante do significado de sua atuação como liderança política.

A segunda reflexão é sobre os motivos que fazem com que o discurso da esquerda tenha, numa cidade como o Rio de Janeiro, mas não só lá, tamanha dificuldade para penetrar na população mais pobre. Uma discussão complexa, que me abstenho de fazer aqui. Mas o mandato de Marielle Franco sinalizava uma esperança de começar a romper essa situação – afinal, era alguém que vinha das comunidades pobres e que dedicava a elas o melhor de suas forças. Um mandato que, embora conquistado com muitos votos da Zona Sul, era voltado para a favela e com ela mantinha interlocução densa e permanente. É por isso, também, que sua morte representa um revés tão sério para a luta popular, no Rio e no Brasil.

 

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A Boitempo acaba de lançar o novo livro de Luis Felipe MiguelDominação e resistência: desafios para uma política emancipatória.

A obra apresenta uma discussão sobre o sentido da democracia e sua relação com os padrões de dominação presentes na sociedade. A ordem democrática liberal não pode ser entendida como a efetiva realização dos valores que promete, pois a igualdade entre os cidadãos, a possibilidade de influenciar as decisões coletivas e a capacidade de desfrutar de direitos são sensíveis às múltiplas assimetrias que vigoram na sociedade. Porém, tampouco pode ser lida segundo a crítica convencional às “liberdades formais” e à “democracia burguesa”, que a apresenta como mera fachada desprovida de qualquer sentido real. Assim, a democracia não é um ponto de chegada, e sim um momento de um conflito que se manifesta como sendo entre aqueles que desejam domá-la, tornando-a compatível com uma reprodução incontestada das assimetrias sociais, e quem, ao contrário, pretende usá-la para aprofundar contradições e avançar no combate às desigualdades. Portanto, o conflito na democracia é um conflito também sobre o sentido da democracia, isto é, sobre quanto ela pode se realizar no mundo real como projeto emancipatório e quanto as instituições vigentes contribuem para promovê-la ou para refreá-la.

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Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. Autor, entre outros, de Democracia e representação: territórias em disputa (Editora Unesp, 2014), e, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). É um dos autores do livro de intervenção Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil. Seu livro mais recente é Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente às sextas.

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