Por Pedro Marin.
Pará-los, não pará-lo. Perceba o leitor o uso do plural. É que, apesar da insistência da imprensa e de grandes figuras da política em focalizar Bolsonaro como o grande desestabilizador da República, o presidente, como venho insistindo há muito tempo, não tem força, ele próprio, para dar sustentação às suas palavras. Quem tem é a redoma verde-oliva que o cerca, tão evidente, mas tão ignorada.
A redoma, os militares, organizados em verdadeiro partido extra-oficial – ilegal e traidor, é bom que se diga –, voltou a fazer aparições nestes dias. Depois da reserva das três Forças se pronunciar em defesa do minotauro-deputado Daniel Silveira, contra a punição decidida pelo STF, agora foi a vez da máxima instância da ativa, o ministro da Defesa, pronunciar-se contra o ministro Barroso.
A razão do pronunciamento foi uma fala do ministro do STF durante uma live para estudantes brasileiros na Alemanha, promovido pela Escola Hertie de Governança, de Berlim. Segundo Barroso, as Forças Armadas, “gentilmente convidadas para participar do processo [eleitoral], estão sendo orientadas para atacar o processo e desacreditá-lo”. É curioso que Barroso – precisamente o ministro que, à frente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), fez tão gentil convite para que os militares participassem dos processos de apuração eleitoral e uso das urnas eletrônicas –, tenha também afirmado que “Até agora o profissionalismo e o respeito à Constituição têm prevalecido (nas Forças Armadas).”
Precisamente a verdade dita pelo ministro do STF – que as Forças Armadas estão orientadas a atacar o processo eleitoral – foi tema da polêmica nota do ministério da Defesa, que chamou a fala de “irresponsável”: “constitui-se em ofensa grave a essas Instituições Nacionais Permanentes do Estado Brasileiro. Além disso, afeta a ética, a harmonia e o respeito entre as instituições”, diz. A mentira proferida pelo ministro – de que as Forças Armadas têm sido profissionais e respeitadoras da Constituição – foi ignorada pela nota, que, ela mesma, revela falsa a afirmação do ministro.
A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, reagiu à nota da Defesa dizendo que “não cabe aos militares tutelar a eleição”. É uma afirmação polêmica, não pelo seu conteúdo, que é correto, mas por vir de onde vem, já que não faz nem uma semana desde que Nelson Jobim foi conversar com militares para saber o que fariam se Lula for eleito em outubro. Segundo Jobim, “a impressão que fico, nessas conversas, é a de que as Forças Armadas são totalmente legalistas”. Se não cabe a eles tutelar o processo eleitoral, por que Jobim, emissário petista, os consulta? E se é obrigado a consultá-los, por que afirma que são “totalmente legalistas”? Se o fossem, não caberia consulta alguma.
Talvez a ministros, presidentes de partido e emissários políticos não seja conveniente dizer a verdade toda. Mas a este jornalista não só é conveniente, é necessário. É evidente que as Forças Armadas são o “ponto nodal”, como escreveu Mario Esteban Carranza, das crises que temos enfrentado. É evidente que o que se teme é, precisamente, que não sejam legalistas – temor este porque seus atos denunciam, precisamente, que não o são. Há a versão, um tanto difundida, de que todas estas ameaças, pronunciamentos e notas, seja sobre o deputado-minotauro, seja sobre as Forças Armadas, são só apelos retóricos, visando as eleições do fim do ano. Assim, caberia lidar com eles com o silêncio, ou com palavras que busquem não elevar o tom, não “esticar a corda” como os militares já avisaram antes.
Certamente trata-se de estratégia visando as eleições. A pergunta que se deve fazer é: e se não funcionar? E se Bolsonaro, apesar de todas as pirotecnias para as quais tem o apoio das Forças Armadas e do Partido Fardado, não for vencedor? E se, neste cenário, seus generais decidirem elevar as bravatas eleitorais a atos de força?
Olhemos ao mundo ao nosso redor. Na França, onde o neoliberal Emmanuel Macron acaba se se reeleger, houve duros protestos nas ruas de Paris. No ano passado, milhares de militares, incluindo 24 generais da reserva, lançaram um manifesto em uma publicação de extrema-direita, fazendo as bravatas que têm sido típicas da “classe militar” internacional. Foram punidos. E aqui?
Nos Estados Unidos, houve o caso da invasão ao Capitólio, quando Trump foi derrotado. Não creio que possa haver golpes no centro dirigente do império, precisamente porque de império se trata, e a burocracia imperial, consciente de quanta riqueza está em jogo na estabilidade ou instabilidade de seus sistema político, nunca permitiria tal coisa. Mas e se aqui houvesse uma “invasão ao Capitólio”? De que forma se comportaria a burocracia, especialmente a armada, destes lados?
Olhemos mais perto ainda. Na Colômbia, onde o ex-guerrilheiro Gustavo Petro ameaça quebrar o monopólio de extrema-direita que, com o apoio sempre íntimo do imperialismo, tem prevalecido no país, o chefe do Exército acaba de fazer suas próprias bravatas. A Bolívia, por Deus! Ali tivemos exemplo evidente, claríssimo, de que a afirmação de que “golpes militares são coisa do passado” já deveria ser considerada coisa arcaica.
O próprio Bolsonaro, em dito “ato cívico pela liberdade da expressão” ontem (27), com pesada participação de parlamentares das bancadas da bala e evangélica, relembrou do caso boliviano, onde a falsa acusação de “fraude eleitoral”, com o apoio da Organização dos Estados Americanos, soou o alarme para que grupos filofascistas saíssem às ruas, com a parceria de policiais amotinados, atacando militantes e dirigentes ligados ao MAS, elevando a tensão até o ponto em que o comandante em chefe das Forças Armadas, Williams Kaliman, pôde atuar como soberano de facto, solicitando a Evo Morales sua renúncia. Poderia relembrar uma série de eventos citados cotidianamente nesta revista: a pressão militar no Peru, no Chile, no Equador, em El Salvador, etc.
É evidente que não se deve não jogar lenha na fogueira discursiva que, visando as eleições, Bolsonaro e seus generais incendeiam com palavras. Mas apagá-la, e garantir que ela não se torne incêndio literal, depende de manter organizada e mobilizada a classe trabalhadora, consciente dos perigos e pronta, tanto quanto se possa, a respondê-los. Fala este articulista de armas? Se fosse este o caso, não constituiria escândalo nenhum, haja em vista que até pastores-ministros andam com um ferro nestes dias, a disparar estupidamente em balcões de companhias aéreas.
Nestes tempos perigosos, em que todos consultam militares mas poucos os enfrentam com palavras, vale retomar alguns trechos da live do ministro Barroso: “É preciso ter atenção para esse retrocesso cucaracha de voltar à tradição latino-americana de botar Exército envolvido com política […] Cortes constitucionais não têm condições de ganhar briga se lutarem sozinhas. Precisam de sociedade civil. Onde enfrentaram sozinhas, as supremas cortes perderam.”
Não só as cortes dependem, para impedir qualquer desvario golpista, do que o ministro chama de “sociedade civil” – isto é, a classe trabalhadora, classe majoritária de qualquer “sociedade”. Os que imaginam possível qualquer conciliação com o Partido Fardado, não vale observar como o ministro denuncia que os militares, mesmo “gentilmente convidados” a participarem do processo eleitoral, são “orientados” para desacreditá-lo? Os que imaginam uma resistência institucional, não deixam eles de notar como setores importantes do Congresso se alinham abertamente aos discursos golpistas, tal como se demonstrou ontem? Não basta o aprendizado de 2016, do qual o STF mesmo é suspeito, sendo ele também alvo de ameaça, agora confessa, do então comandante do Exército? E os ditos liberais, os empresários, o que fariam hoje? Ora, bastará olhar não só ao impeachment, mas também à eleição de Bolsonaro: onde estavam? Diz tudo a velha frase: “entre os desaparecidos da ditadura militar não há liberais”.
É correto não morder o anzol polemista de Bolsonaro e dos militares. Mas isso não basta. A palavra é coisa útil aos magistrados, aos candidatos, aos jornalistas. Quanto aos militares, como mesmo Barroso reconhece quando fala do “desfile de tanques” na Praça dos Três Poderes, as ferramentas são outras. Deixar que seja somente deles a decisão de usá-las ou não pode custar muito caro: tão estúpido quanto cair no jogo de discursos piromaníacos de Bolsonaro é essa brincadeira infantil e inconsequente de buscar solução em conversas com militares ou na profissão de fé institucional.
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