Por Guilherme Henrique, BBC.
A Independência do Brasil completa 200 anos em 2022. A data que marca o bicentenário em torno do 7 de Setembro, quando país deixou de ser colônia portuguesa, é cercada de discordâncias em torno de sua real importância para a nação que começava a se formar, assim como personagens ainda pouco explorados nos livros didáticos.
Esses dois temas estão relacionados à história de Maria Quitéria de Jesus (1792-1853), que se vestiu de homem, com a alcunha de ‘soldado Medeiros’, para participar das lutas independentistas em seu estado, a Bahia, contra as tropas portuguesas resistentes às mudanças regimentais na política brasileira daquele período.
Primeira mulher a integrar as Forças Armadas, Maria Quitéria foi condecorada por D. Pedro 1º como heroína, exaltada pelo Exército a partir da década de 1950 e rosto emblemático na luta de organizações femininas pela anistia durante a Ditadura Militar brasileira (1964-1985).
Para entender a história de Maria Quitéria e sua entrada nas lutas independentistas, é preciso contextualizar o 7 de Setembro. A data, que marca o grito de D. Pedro 1º às margens do rio Ipiranga, não representa o que aconteceu de fato no Brasil, segundo alguns pesquisadores. O escritor Laurentino Gomes, no livro 1822, diz o seguinte:
“As demais províncias ou ainda estavam sob controle das tropas portuguesas, caso da Bahia, ou discordavam da ideia de trocar a tutela até então exercida por Lisboa pelo poder centralizado no Rio de Janeiro, caso de Pernambuco, que reivindicava maior autonomia regional”, diz a obra.
Patrícia Valim, professora de História da Universidade Federal da Bahia (UFBA), corrobora essa versão. “O 7 de Setembro é a nossa primeira grande derrota enquanto país, ou na formação de um, porque é uma data fruto de um acordo feito em São Paulo. Muito diferente do que houve na Bahia e do contexto no qual a Maria Quitéria está inserida”, afirma.
As lutas na Bahia se intensificaram em fevereiro de 1822, quando tropas portuguesas e soldados brasileiros travaram conflitos em torno do comando da província da Bahia, na contenda entre o português Luís Madeira de Melo e o brasileiro Manuel Pedro de Freitas Guimarães.
As disputas perduraram até julho de 1823, quando os portugueses se renderam. Nesse meio tempo, há a figura de Maria Quitéria, cuja presença na guerra de independência não foi nada simples.
Contrariando a família
Maria Quitéria nasceu em São José das Itapororocas, antiga Freguesia de Nossa Senhora do Porto da Cachoeira, atual município de Feira de Santana. Seu pai era o lavrador Gonçalo Alves de Almeida, e a mãe era Quitéria Maria de Jesus.
Boa parte do que se sabe sobre a trajetória de Maria Quitéria está em biografias escritas na década de 1950, quando comemorações em torno de seu centenário se avolumaram. O livro de Pereira Reis Junior, de 1953, é um exemplo.
Esses relatos partem de registros de jornais da época e também da escritora britânica Maria Graham, que escreveu um livro sobre sua viagem ao Brasil entre 1821 e 1823, intitulado Journal of a Voyage to Brazil, de 1824.
A partir daí, é possível saber que a mãe de Maria Quitéria teria falecido quando a filha ainda era criança, e que o pai casara-se uma porção de vezes nos anos seguintes.
O patriarca era proprietário da Fazenda Serra da Agulha, onde plantava algodão, criava cabeças de gado e detinha duas dezenas de negros escravizados. “Eles não eram ricos, mas também não tinham dificuldade”, afirma Valim, da UFBA.
Maria Quitéria cresceu sendo criada por madrastas e pouco afeita aos trabalhos de casa, condição inerente às mulheres daquele período. “A família queria que ela bordasse, mas ela se recusava. Maria Quitéria gostava de montar a cavalo, cavalgar. Também manejava armas de caça, como espingarda, algo fora dos padrões”, conta a historiadora.
O Soldado Medeiros
Maria Quitéria soube da guerra quando emissários de uma Junta Provisória instalada para governar a Bahia em meio às disputas com Portugal chegaram ao Recôncavo Baiano à procura de homens para participar da luta armada a favor da independência do Estado.
Ao saber da notícia, Maria Quitéria tentou convencer seu pai a deixar que ela participasse da guerra, mas o pedido foi prontamente recusado. Então, Quitéria foi à casa de uma das irmãs, Teresa, e pegou a roupa de seu cunhado, José Cordeiro de Medeiros, além de cortar os cabelos. Nascia, então, o “Soldado Medeiros”.
A versão corrente entre os biógrafos é que Maria Quitéria teria se apresentado ao Batalhão Nº 3 de Caçadores do Exército Pacificador como filho de seu cunhado, já que usava vestimenta masculina. A mentira deu certo.
“Ela assumiu a identidade masculina com muita propriedade. Apesar de ser iletrada, ela tinha um conhecimento militar de montaria, tiro ao alvo, que fazia diferença naquele contexto de conflito. Eram habilidades irrecusáveis pelos militares brasileiros”, diz Valim.
Pouco tempo depois do sumiço da filha, Gonçalo, o pai, é informado pela irmã de que Maria Quitéria decidira se juntar às tropas disfarçada. Gonçalo vai à cidade de Cachoeira, encontra a filha e informa o major José Antônio Silva Castro de que o soldado Medeiros, na verdade, era uma mulher. “O pai pediu que ela voltasse imediatamente, sob pena de ser amaldiçoada, mas ela não retornou”, conta Valim.
O major permitiu que Maria Quitéria continuasse no Batalhão, já que possuía habilidades destacáveis com armas de fogo. Ela tinha 30 anos na época. Em março de 1823, um registro de Portaria do Governo Provisório da Vila de Cachoeira mostra que o Major pediu ao Inspetor dos Fardamentos, Montarias e Misteres do Exército que enviasse “saiotes, e uma espada” para que ela fosse devidamente fardada como mulher.
Registros apontam a participação de Maria Quitéria em ao menos três combates. Enquanto a independência era gritada em São Paulo por D. Pedro 1º, os conflitos cresciam na Bahia. Maria Quitéria participou do primeiro deles em outubro de 1822, na região da Pituba. Depois, em fevereiro do ano seguinte, em Itapuã. Nesse período, ela foi promovida a 1º cadete.
Em abril de 1823, Maria Quitéria comandou um grupo de mulheres civis que se uniram para lutar contra os portugueses na Barra do Paraguaçu, no litoral do Recôncavo. A resistência vitoriosa foi fundamental para garantir não só a independência baiana, mas também para alçar a figura de Quitéria como heroína da pátria.
Os conflitos seguiram até 2 de julho, quando os últimos portugueses que ainda resistiam decidiram abdicar do combate. A data é celebrada como o dia da independência da Bahia até hoje. “Essa celebração marca uma oposição ao 7 de Setembro e a história criada em São Paulo. História mantida até hoje, com o que é contada no Museu Paulista e centraliza a narrativa em torno da independência”, ressalta Valim.
Com o fim da guerra, Maria Quitéria vai ao Rio de Janeiro em agosto de 1823 para ser recebida por D. Pedro 1º. Ela foi condecorada com a insígnia de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro, medalha criada como símbolo do poder imperial como forma de homenagear brasileiros ou estrangeiros que tenham lutado pela independência do país.
O debate sobre as representações
É na visita ao Rio que Quitéria conhece Maria Graham. A escritora britânica descreve Quitéria como “iletrada, mas viva” e que “tem a inteligência clara e a percepção aguda”. A lista de elogios à militar brasileira segue, com a avaliação de que “se a educassem, viria a ser uma personalidade notável”.
É também a partir do encontro com a escritora que a discussão em torno da compleição física de Quitéria começa a ser travada. Seu primeiro retrato foi feito pelo pintor inglês Augustus Earle (1793-1838), a pedido de Graham, em 1823. A tela está exposta na Biblioteca Nacional da Austrália, junto de parte do acervo do pintor.
“É um retrato cujo rosto não apresenta aspectos muito femininos. É mais quadrado, sem muitas nuances que demonstrem ser uma mulher. Na verdade, é bem similar à figura masculina”, afirma Nathan Gomes, mestrando em História do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP).
A pesquisa de Gomes investiga como a imagem de Quitéria foi mudando ao longo dos anos. No segundo retrato, de 1824, feito pelo também inglês Edward Finden (1791-1857), a militar brasileira aparece de corpo inteiro, com vestimenta militar e uma paisagem que tenta reproduzir o Brasil à época, com um pando de fundo idílico.
Finden não estava no Rio de Janeiro, diferentemente de Earle. Gomes acredita que o segundo retrato tenha surgido a partir do que ele chama de “elementos não-originais”. “Existem semelhanças, mas com diferenças. A insígnia não era a utilizada no Brasil, assim como o fardamento e a arma, que é um modelo inglês”, diz o pesquisador.
Ele também acredita que o retrato de Finden, publicado no livro de Graham sobre sua viagem ao Brasil, tenha sido “construído por várias mãos”, incluindo as da própria escritora e também dos editores da obra.
O último retrato, de 1920, feito pelo italiano Domenico Failutti, está exposto no Museu Paulista. A obra foi encomendada pelo intelectual Affonso Taunay (1876-1958), que reorientou o museu na década de 1920 para torná-lo símbolo da Independência. No retrato, Quitéria aparece ainda mais feminina, com busto saliente, as maçãs do rosto mais avolumadas e a boca delineada.
Gomes afirma que tem deslocado sua pesquisa à questão étnica e o tom da pele de Maria Quitéria, com receio de propor um debate que não aconteceu quando os quadros foram pintados. A imagem de 1920 mostra a militar fenotipicamente mais próxima de negros e indígenas. Já os retratos do século anterior mostram-na caucasiana, com traços europeus. “Ao olhar a recepção do quadro de 1920 na imprensa, não houve contenda sobre o tom da pele da Maria Quitéria. Não há registro de isso ser uma preocupação do Failutti. Talvez essa seja a tentativa de propor uma discussão em torno do tom da pele dela que tem mais a ver com a ótica dos nossos tempos”, afirma.
Valim, da UFBA, diz que a discussão em torno da imagem de Quitéria é importante, já que envolve a narrativa em torno da independência do Brasil.
“Esse retrato, apesar de estar exposto no Museu Paulista, tenciona o 7 de Setembro enquanto uma ideia europeia e paulista de Independência. As lutas do Nordeste tiveram negros, indígenas, gente de todo tipo, mas esses fenótipos não aparecem”, analisa.
Os relatos biográficos apontam que Maria Quitéria morreu sozinha, em sua cidade natal e em condições financeiras delicadas. Ela se casou e teve uma filha, cujo paradeiro é desconhecido. Seu pai nunca a perdoou por ter participado da guerra, apesar de ela ter sido tratada como heroína em seu retorno das lutas independentistas.
Em 1953, data que marcou o centenário de morte de Quitéria, seu nome foi trazido à baila em uma série de homenagens dentro das Forças Armadas. Em junho daquele ano, Getúlio Vargas bancou a construção de uma estátua de bronze em Salvador, com cerca de 1,60 m de altura, localizada ainda hoje no Largo da Soledade, no centro histórico da capital baiana.
No início de 1954, o Exército criou a Comenda Maria Quitéria, uma medalha em homenagem ao seu centenário. Alguns pesquisadores apontam o fato de que, a partir daquele momento, Quitéria foi alçada ao papel de mito dentro da corporação.
“Talvez um dos pontos mais interessantes seja o fato de a narrativa produzida pelas Forças Armadas construir Maria Quitéria como a personificação dessa mistura que caracteriza a fundação brasileira: filha de português, com características indígenas e nascida no interior do Brasil”, diz um trecho da pesquisa de Raphael Pavão, mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), que analisa a trajetória da militar na caserna.
Para Giovana Zucatto, mestra em sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e cuja pesquisa analisa a inserção de mulheres nas Forças Armadas, a trajetória de Maria Quitéria, e suas respectivas homenagens, não impactaram a presença de mulheres entre os militares.
“Ela é uma figura que ocupa uma certa mitologia no que diz respeito à incorporação de mulheres nas Forças Armadas. Ela é utilizada como símbolo. As mulheres só voltam ao combate na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e como enfermeiras. A entrada das mulheres nas Forças Armadas só foi oficializada na década de 1980. Não tivemos mulheres na Guerra do Paraguai (1864-1870), por exemplo”, analisa.
Atualmente, quase 34 mil mulheres integram as Forças Armadas, segundo dados do Ministério da Defesa divulgados em março do ano passado. A parcela feminina representa menos de 10% do contingente militar total do país (em torno de 350 mil). Apesar do avanço nos últimos dois anos, a pesquisadora afirma que o cenário ainda não é inclusivo.
“Poucas mulheres chegaram à posição de general no Brasil, a maioria delas com atuação na área da saúde. São posições que não têm influência política nas decisões das Forças”, complementa Zucatto.
Em 1996, o Exército homenageou Maria Quitéria como Patrono da corporação, ao lado de figuras como Duque de Caxias (1803-1880) e Marechal Rondon (1865-1958). Ela se tornou patrono do Quadro Complementar de Oficiais.
“Foi algo influenciado pelo processo de redemocratização e a entrada de mulheres no Exército, que acontece a partir de 1992. É importante, mas não deixa de ser simbólico que ela seja homenageada em um quadro de apoio”, pondera a pesquisadora.
Para além do legado nas Forças Armadas, a figura de Maria Quitéria se espraiou por outros setores. Durante a ditadura militar, o nome da combatente foi utilizado para nomear o boletim informativo do Movimento Feminino pela Anistia de São Paulo, criado em 1975 e liderado pela advogada e ativista Maria Therezinha Zerbini (1928-2015).
Depois, na década de 1980, o nome da baiana foi utilizado pelo partido Partido Comunista do Brasil (PCdoB) para dar nome a uma editora criada em Salvador.
“Certamente o legado dela foi mais polissêmico do que as Forças Armadas gostariam. Há uma disputa em torno da memória da Maria Quitéria para além dos limites do Exército”, comenta Nathan Gomes.
De acordo com Patrícia Valim, essa contraposição é saudável e condiz com a sua trajetória.
“Maria Quitéria está em todos os lugares. Há uma popularização dessa história, da personagem, com traços brasileiros, quase uma indígena quase negra. Esse é um resgate importante. Ela deveria ser a nossa Frida Khalo (1907-1954)”, finaliza.