Quem escreve a História Trans?

Por Maria Léo Araruna.

1 Subjetividades Emolduradas

Minha vontade aqui, neste texto, é, primeiramente, trazer um brevíssimo histórico sobre teorias escritas por homens cisgêneros das ciências sobre a transexualidade e, então, constranger suas perspectivas patologizadoras com as narrativas e mobilizações realizadas pelas próprias pessoas trans, na atualidade.

Busco demonstrar, portanto, como os discursos feitos referentes à transexualidade são elementos muito importantes na constituição de um imaginário social sobre o que é ser um sujeito trans. Assim, considero que é a partir do embate entre diferentes vozes ? entre aquelas da autoridade médica, institucionalizada, e aquelas marginais, provenientes de nossos gritos ? que o entendimento sobre as possibilidades de ser travesti, mulher trans, homem trans e não binário é construído.

Entendo que traçar uma rápida reflexão sobre os argumentos patologizantes de nossa identidade é uma tarefa necessária, embora dolorida. Pois, tais narrativas que nos foram impostas sob um olhar cisgênero-masculino ? em termos de “transexualismo” ? ainda são potentes e capazes de perturbar e restringir a autodeterminação pelo nosso corpo e pelo nosso subjetivo. É importante compreendermos, por meio da história, os desvios e embates que realizamos para consagrar nossa pluralidade frente aos laudos e receitas que teimam em julgar e aferir legitimidade a nossa realidade no gênero.

Assim, aqui neste texto, decidi dar atenção a três escritos dos seguintes autores: Richard von Krafft-EbingDavid O. Cauldwell e Robert J. Stoller, os quais publicaram obras em 1886, 1949 e 1975, respectivamente, sobre experiências diagnosticadas como transexuais. Escolhi falar sobre esses pesquisadores, em específico, deixando muitos outros para trás, porque, além de serem reconhecidos nesse campo, é possível compreender uma ordem cronológica de suas obras e, também, porque é possível acompanhar através de seus relatos a evolução de uma sistematização sobre o que é o “transexualismo”.

É a partir do embate entre diferentes vozes que o entendimento sobre as possibilidades de ser travesti, mulher trans, homem trans e não binário é construído.

Esses homens, imbuídos em um sistema simbólico de conhecimento do mundo pautado pela dominação binarista e cis-heteronormativa, realizaram seus escritos promovendo descrições de subjetividades desviantes da norma por meio de uma análise ditada pelo estigma da anormalidade. A partir disso, observaremos como que o status de linguagem científica possui o poderio de estabelecer imaginários e, também, concepções materiais sobre sujeitos marginais.

O primeiro autor, Krafft-Ebing, no livro “Psycopathia Sexualis: as histórias de caso”, lança mão de suas interpretações provenientes de narrativas pessoais para estabelecer diagnósticos e anomalias. Esse livro é caracterizado pelo seu linguajar de difícil acesso, pois escrito em latim, e é criado exclusivamente para servir como manual para o trabalho de uma classe de cientistas. A obra não poderia ser disseminada, de forma alguma, pois se acreditava que seria capaz de corromper as pessoas que a lessem. Isso só demonstra a capacidade que corpos dominantes da estrutura social possuem em manusear os dispositivos necessários para criar significados e estigmas excludentes sobre grupos subalternos.

O autor realiza, nesse livro, uma longa lista com diversas terminologias as quais ele determina uma separação e diferenciação entre os casos analisados. É um verdadeiro glossário que normatiza experiências, a fim de buscar uma verdade específica capaz de encaixar histórias de dissidência. Isto é, com base em algumas alegações e em processos reguladores da subjetividade, uma vivência desviante poderia ser considerada transexual, homossexual, lésbica, andrógina ou, até mesmo, hermafrodita psíquica, por exemplo! E suas análises focadas em transexuais, em específico, são muito baseadas em uma “disfunção familiar” que o paciente pode ter se deparado, ou seja, há uma busca por doenças mentais e nervosas nos parentes para poder conceber um diagnóstico de anormalidade a essas pessoas.

O segundo autor, Cauldwell, no livro “Psycopathia Transexualis”, perpetua a noção da disfunção no desenvolvimento das pessoas transexuais e acrescenta a possibilidade de uma predisposição genética hereditária. Esse autor é muito conhecido por se aprofundar nos estudos sobre a transexualidade, mas assim o faz de forma extremamente patologizadora. Impregnado por uma visão contextualizada sobre a construção do gênero pela biologia e por uma natureza que diz a verdade sobre o que um corpo deve ser, o pesquisador classifica as pessoas transexuais como psicologicamente deficientes, pois elas falhariam em maturar seu status biológico e sexual dado, de maneira apropriada. Isso nos possibilita perceber que aqueles que não encontram abrigo sob uma norma que naturaliza o gênero a partir de características biológicas acabam sendo abarcados por teorias cisnormativas que os subjuga.

Por fim, o terceiro autor, Stoller, no seu livro “A Experiência Transexual”, se debruça sobre o fenômeno transexual tentando encontrar os fatores originários para essa condição. É importante atentar-se para o fato de que a simples busca por um marco causador da transexualidade já propõe uma incapacidade em conceber tais sujeitos como múltiplos, plurais e possuidores de diferentes trajetórias de vida. Preocupar-se com a origem de uma experiência no gênero é simplesmente tentar objetivar e emoldurar caminhos contraditórios, muitas vezes turvos e também interseccionais, que a subjetividade de uma pessoa pode percorrer para a compreensão de si. E isso acontece especialmente quando vidas à margem da norma são localizadas e exploradas pelo olhar hegemônico que submete tudo aquilo que é diverso e dissidente.

Ainda pautado em uma concepção de gênero baseada no sexismo biológico, Stoller categoriza homens trans como transexuais femininos e mulheres trans como transexuais masculinos. E insiste em tratar essa experiência como uma farsa, uma mentira; acreditando existir uma verdade legítima por trás desse disfarce da transexualidade.

A simples busca por um marco causador da transexualidade já propõe uma incapacidade em conceber tais sujeitos como múltiplos, plurais e possuidores de diferentes trajetórias de vida

Além disso, ele se dispõe, em suas narrativas, de estereótipos de gênero para analisar as vivências e processos de sociabilidade de pessoas trans. Para os homens transexuais, por exemplo, ele diagnostica a probabilidade de uma mãe depressiva e ausente, um quadro psíquico que, segundo ele, pode ter obrigado a criança a se afastar da feminilidade, masculinizando-se. Essa culpabilidade na responsabilidade da mulher em repassar os traços do feminino adiante para um crescimento considerado normal da criança é só mais uma demonstração da necessidade de se afirmar papeis sexuais tradicionais dentro da família heterossexual. E, no caso das mulheres transexuais, ele acredita que a possibilidade de “mudança de sexo” só poderia ser total e real se o nível de feminilidade dessas pessoas fosse bastante expressivo; o que apresenta, novamente, a necessidade de se ressaltar a estereotipia para poder classificar uma pessoa.

Stoller é um dos principais cientistas que, ao estudarem a transexualidade, acredita que a melhor solução para essa questão seria providenciar a “transformação sexual” do paciente. Mas, para que isso pudesse ser feito seria necessário ter certeza que se encontrou um “transexual verdadeiro”, e esta veracidade seria medida a partir de conceitos bem assentados e firmados sobre o que deve ser um homem ou uma mulher na sociedade. Por fim, o pesquisador também acredita que há possibilidades de reverter as crianças que poderiam vir a apresentar tal laudo. Esse processo de tratamento seria feito junto com a família, principalmente com as mães, e Stoller afirma que induzir uma masculinidade ou feminilidade adequada na criança é a melhor solução para um desenvolvimento fora da anormalidade e que um quadro melhor a se chegar seria torná-la, no mínimo, um homossexual. Isso ressalta bem o temor que se tem de uma experiência corporal-subjetiva dissidente dentro das amarras de gênero e como este é fator fundante de reconhecimento, identificação, existência e pertencimento das pessoas na sociedade.

Diante de tudo isso que foi apresentado, ao se conhecer um pouco dessa história e dessas narrativas sobre a patologização dos sujeitos trans, podemos compreender alguns dos passos que asseguraram a presença da transexualidade como uma doença, no mundo, até hoje. Então, é com todo esse conhecimento adquirido, a partir de todo esse processo histórico que trouxe, que seremos capazes de enfrentar nossas guerrilhas cotidianas e, também, institucionais.

2 Rupturas com a patologização das indentidades trans

Infelizmente, a presença da transexualidade como patologia no Código Internacional de Doenças (CID) ainda está muito conectada com o asseguramento de alguns de nossos direitos, seja aqui no Brasil ou em vários outros países. Para retificarmos nosso nome e sexo nos nossos documentos e termos acesso à saúde para realizarmos nossa transição de gênero, por exemplo, somos obrigadas/os a possuirmos laudos psicológicos e psiquiátricos proferidos por “especialistas” para atestarem nossa própria identidade.

Entretanto, mudanças nesse cenário se aproximam.

Desde 2016, vem sendo realizado um processo de revisão do Código Internacional de Doenças (CID) promovido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) que será efetivado em maio de 2018, em uma Assembleia Mundial de Saúde. Dentro das propostas de revisão feita por grupos multidisciplinares de especialistas, está o “transexualismo”, categoria pertencente ao capítulo de “Transtornos Mentais e Comportamentais”.

A ideia da propositura, então, é reconceitualizar a categoria “transexualismo” para “Incongruência de Gênero na Adolescência e Vida Adulta”, remanejá-la para um novo capítulo chamado “Condições Relacionadas à Saúde Sexual” e retirar quaisquer terminologias e critérios que sejam estigmatizantes e patologizantes. Essas mudanças, tanto na linguagem quanto no capítulo, são importantes para trazer novas perspectivas e características à transexualidade, pois se remove definições que asseguram um imaginário de doença e incapacidade a essas pessoas.

É de extrema importância ter em mente que a transexualidade ainda continua presente no CID, ela não está sendo retirada, assim como foi a homossexualidade. A luta aqui é para uma revisão dos elementos discursivos que constituem a transexualidade, é uma ruptura com os estigmas e com toda uma história de tutela e silenciamento de nossas vozes sobre o que é ser uma pessoa trans. Mas, há um motivo para a manutenção da transexualidade no rol classificatório do CID e isso se deve a políticas de diversos países, como o Brasil, que exigem de pessoas trans a obrigatoriedade de serem portadoras de um código CID para terem acesso a direitos no campo da saúde e do jurídico.

3 Nossas vozes, outras possibilidades

Por fim, acredito ser importante pautar aqui que todo esse processo de mudança nas definições do Código Internacional de Doença (CID) sobre o que é uma pessoa trans se deve a uma disputa muito maior e anterior. Pois, foi em meio a uma luta antiga e incansável de organizações nacionais e internacionais que defendem os direitos de pessoas trans que estratégias discursivas foram construídas, a fim de fissurar toda uma narrativa transfóbica patologizante que se estabelece entre profissionais do mundo da Saúde e, também, do Direito.

Sendo assim, é importante compreendermos que nossa vivência nas margens do gênero faz com que também integremos as disputas de produção de sentido do mundo. Portanto, é preciso que sejamos eco de todo esse esforço histórico em constituir, no imaginário social, novas possibilidades de ser sujeito trans. É preciso persistir no silenciamento de uma voz cisnormativa patologizadora que nos conduz e nos aprisiona até hoje e afirmarmos, enfim, uma gramática toda nossa que nos mostre plural e diverso.

Sim, estamos nesse caminho ? entre passos e pegadas já trilhados e entre criatividades e esperanças compartilhadas. Somos multidão.

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