Por Michele de Mello, para Brasil de Fato.
A vitória de Lula da Silva e o retorno do Partido dos Trabalhadores (PT) ao poder gera expectativa sobre mudanças na política exterior do Brasil. Com o golpe de Estado de 2016, a política externa deu um giro de 180º, distanciando-se das relações com os países vizinhos, priorizando atender os interesses de Washington. O primeiro sinal foi o voto pela exclusão da Venezuela do Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a entrada no Grupo de Lima, em 2017, sob a gestão de Michel Temer e do ministro Aloysio Nunes.
A chegada de Bolsonaro ao poder representou a clara ruptura da tradição da diplomacia brasileira, que de forma geral se definia por autonomia e uma certa neutralidade pragmática. Com Ernesto Araújo e Carlos França, o Brasil apoiou a ativação do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) contra a Venezuela; absteu-se na votação da resolução contra o bloqueio econômico aplicado contra Cuba nas assemleias gerais da ONU; desferiu ataques xenofóbicos à China, principal sócio comercial do Brasil; e rompeu com alianças regionais, como a União das Nações Sul-americanas (Unasul) e a Comunidade de Estado Latino-americanos e Caribenhos (Celac).
Os dois primeiros mandatos de Lula foram marcados por uma atenção especial à política exterior. Durante passagem pela COP-27, no Egito, em novembro, Lula citou diversas vezes que “o mundo estava com saudades do Brasil” e destacou a importância que será “reconstruir” a imagem do país frente à comunidade internacional.
Por isso, a indicação de Mauro Vieira, anunciada por Lula no dia 9 de dezembro, pode indicar mudanças nos rumos da diplomacia brasileira.
Nas suas primeiras declarações, Mauro Vieira confirmou a retomada de relações diplomáticas com a Venezuela a partir de 1º de janeiro, assim como o retorno a mecanismos de integração regional, como a União das Nações Sul-Americanas (Unasul) e a Comunidade do Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac).
“Teremos uma volta a esses organismos, mas com olhar novo, porque o mundo mudou. Será olhar novo, construtivo, com solidariedade, visando sempre a colaboração entre países em desenvolvimento”, disse.
Para a professora de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC Paulista, Tatiana Berringer, o novo governo petista deve liderar uma nova etapa de integração com a América Latina predominantemente governada pela esquerda.
“A grande estratégia é conseguir coordenar uma política de integração produtiva”, disse. “São governos mais frágeis, mas mais numerosos do que o ciclo da chamada onda rosa. São mais frágeis pelos aspectos econômicos, mas também pelas limitações políticas. Temos um conjunto de vitórias, mas também de desafios e limites. A sinergia entre eles poderá potencializar e tirar da inércia”.
A atual embaixadora do Brasil na Romênia, Maria Laura Rocha, será a próxima secretária-geral do Itamaraty, o cargo mais alto da carreira diplomática. “A embaixadora não precisa de apresentações. É uma diplomata experimentadíssima e já foi chefe de gabinete de ministros. Foi embaixadora da Unesco e da FAO”, declarou Vieira.
Carreira diplomática
Com mais de 40 anos de carreira diplomática, Mauro Luiz Iecker Vieira é considerado um dos funcionários mais experientes do Itamaraty. Atua como embaixador na Croácia desde 2016, mas antes já chefiou a equipe diplomática brasileira na Argentina, nos Estados Unidos e nas Nações Unidas.
Entre 1982 e 1985, Vieira serviu na Missão do Brasil junto à Associação Latino-Americana de Integração (Aladi) em Montevidéu, Uruguai. Nos anos 90, trabalhou na embaixada do Brasil na Cidade do México e em Paris.
Já com início do primeiro mandato de Lula, Mauro Vieira assumiu a embaixada da Argentina de 2004 a 2010, saindo de Buenos Aires para Washington, onde chefiou a missão diplomática brasileira até 2015, quando foi nomeado chanceler pela presidenta Dilma Rousseff.
Seu mandato foi interrompido já em maio de 2016, com o golpe e a ascensão de Temer. Em seguida, o Senado aprovou sua nomeação como membro permanente da equipe da ONU em Genebra.
Conflito com bolsonarismo
Além de ter perdido o cargo após a destituição de Dilma, Vieira chegou a ser questionado dentro do Itamaraty durante a gestão bolsonarista.
Em novembro de 2020, o então embaixador foi alvo de uma sindicância durante a gestão de Ernesto Araújo. Agora à frente do Ministério, Vieira terá como abrir os arquivos para verificar a atividade política dos seu antecessores. Entre os episódios mais polêmicos está a suspensão das relações diplomáticas com a Venezuela, que levou ao fechamento da embaixada em Caracas. Também há indícios de conivência do Itamaraty com os ataques de opositores à embaixada venezuelana em Brasília.
Ernesto Araújo e Jair Bolsonaro endossaram a postura de Washington e passaram a reconhecer o ex-deputado Juan Guaidó como autoridade legítima da Venezuela, apoiando a abertura de uma embaixada paralela, abrindo brechas para a emissão de documentos sem qualquer lastro legal.
María Teresa Belandria chegou a fazer campanha para Bolsonaro em 2022, aparecendo ao lado de Michelle Bolsonaro para tentar diminuir o impacto das declarações do ex-capitão sobre adolescentes imigrantes venezuelanas em Brasília.
Outro caso suspeito foi a viagem de Ernesto Araújo a Israel, em março de 2021, sob a justificativa de que iria negociar a compra de um spray nasal contra o vírus sars-cov2. No entanto, à época da viagem, o medicamento ainda estava sendo testado pelos laboratórios israelenses. A viagem oficial custou R$ 88,2 mil aos cofres públicos e não resultou em nenhum novo acordo.
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Ainda sobre a gestão da pandemia, a compra de cloroquina dos Estados Unidos também é um capítulo obscuro da gestão bolsonarista.
Outra herança maldita da gestão de Bolsonaro é uma dívida de R$ 5,5 bilhões aos organismos multilaterais. O Brasil corre o risco de perder o direito a voto na Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), em janeiro de 2023, se não pagar sua contribuição financeira ao organismo. O Brasil é o maior produtor de alimentos do mundo e presidiu a FAO entre 2012 e 2019 com José Graziano da Silva, tornando-se referência mundial em programas de combate à fome.
Operador x político?
O Brasil deixou de ser um ator relevante na geopolítica global para tornar-se um verdaeiro pária internacional.
O GT de Relações Exteriores, chefiado pelo ex-ministro Celso Amorim, realizou reuniões com organizações populares de luta pela terra, movimento negro e indígena para redefinir a lista de prioridades para a diplomacia brasileira.
A indicação de Vieira para a pasta teria sido chancelada por Amorim. “É um nome de confiança de Celso Amorim, mas devemos olhar pra coalizão política de governo. Amorim deve assumir a secretaria especial da presidência e isso deve representar a volta da política externa altiva e ativa num contexto muito mais complexo”, analisa Berringer.
Em seu discurso de posse como ministro de Dilma, em 2015, Viera citou o amigo como alguém com quem ele aprendeu a admirar a maneira como expressam seu “compromisso inalienável” com o Brasil.
Edição: Arturo Hartmann