Quem choca o ovo?

Cada período histórico gera seu próprio movimento fascista, com características particulares e diferenças entre si, mas algumas essências em comum, que Eco chamou de ‘fascismo eterno’

Geralt por Pixabay

Por Marco Arenhart, para Desacato.info.

No início do século XX os socialistas italianos estavam muito otimistas. Com a conquista do voto universal era lógico que os trabalhadores da cidade e do campo logo estariam no poder, pelo voto de classe. De fato, nesta época, cerca de um terço das cidades já eram governadas por socialistas e se tornar a maioria seria uma questão de tempo. Mas os latifundiários italianos também compartilhavam desta previsão. Por isso, começaram a usar seus caminhões e carroças para circular pelas cidades maiores, recrutando desocupados e marginais. Com o caminhão cheio, se dirigiam às pequenas cidades governadas pelos socialistas, assassinavam o prefeito, espancavam e expulsavam os vereadores e ameaçavam os eleitores. Esta politica de terror, ignorada pelas autoridades, conteve o avanço da esquerda. Com o tempo estes grupos foram se organizando, adotaram as camisas negras como uniforme e, após a primeira guerra, adquiriram organicidade como o movimento fascista.

No começo dos anos 1930 grandes empresários alemães sabiam que o projeto nazista se destinava a destruir a democracia, mas como também seria a destruição dos sindicatos, fim da reforma agrária e dos poucos avanços sociais da República de Weimar, se empenhavam firmemente na arrecadação de fundos ilegais para financiamento das campanhas hitleristas. O investimento foi tão bom que, graças aos trabalhos forçados e incentivos do Estado nazista, os grandes impérios industriais e financeiros, poupados pelos tribunais de Nuremberg, constituem até hoje as grandes fortunas alemãs (Allianz, BMW, Porsche, Oetker e outros) (1).

Não cabe aqui o dilema de quem choca o quê. Não são os movimentos fascistas e nazistas que se servem de financiadores na classe dominante, mas o inverso. Ao longo da história são setores importantes das elites dominantes gestam os movimentos fascistas como instrumentos a serviços de seus interesses. Como definiu José Carlos Mariátegui: ‘Fascismo é a ação ilegal das classes conservadoras, temerosas que as ações judiciais dos Estados sejam insuficientes para defender a continuidade da sua existência’.

“Cada época tem seu fascismo”

Negar o direito à existência legal do nazismo e do fascismo (que infelizmente não abrangeu outros similares como o franquismo e o integralismo) é imperativo, pois mantém viva a memória histórica da tragédia provocada pelos movimentos, que têm como sua essência a destruição da democracia, a violência e o racismo. Mas, do ponto de vista político, não basta nos preocupar apenas aqueles que reivindicam estes movimentos históricos. Como dizia Umberto Eco, não existe fascismo, mas fascismos (2). Cada período histórico gera seu próprio movimento fascista, com características particulares e diferenças entre si, mas algumas essências em comum, que Eco chamou de ‘fascismo eterno’ (do arquétipo que propõe Eco, o bolsonarismo deve gabaritar os 14 critérios).

Mas quero ir um pouco além. Se o fascismo não possui propriamente uma ideologia, o ideário que lhe dá consistência é o liberalismo econômico, e, de forma mais nítida atualmente, o neoliberalismo (Mises era um defensor de Mussolini) (3). Para servir a esta ideologia, novas formas de fascismos são forjadas pelo poder econômico de setores mais reacionários do capital. Como os latifundiários italianos e os banqueiros e industriais alemães do início do século passado, hoje, os setores mais pujantes do capitalismo são as grandes empresas de tecnologia, as chamadas Big Techs (ou Plataformas de serviços digitais).

Certamente não podemos dizer que os executivos do Vale do Silício sejam adeptos de algum tipo de fascismo, assim como não eram a maioria dos industriais alemães sob o nazismo. São talvez apenas oportunistas que desejam impulsionar seus negócios, sem limites morais. Para isso dispõe de recursos excepcionais possibilitados pelas novas tecnologias.

Vivemos hoje uma era de capitalismo de plataforma, onde quase toda atividade econômica se constrói sobre plataformas digitais. Estas plataformas conferem um poder extraordinário a estas empresas, pela força dos algoritmos de controle e termos de uso que constituem um arcabouço legal próprio e indiferente às leis nacionais. Além disso, o processo de coleta de dados em volume descomunal e sua manipulação por inteligência artificial abre a possibilidade sem precedente de controle e domínio sobre todos os aspectos da sociedade (Capitalismo de vigilância).

Se os movimentos sociais e políticos começam a despertar para os riscos desa evolução, podemos imaginar que as Big Techs se articulam – ou na melhor das hipóteses, são coniventes- para criação de instrumentos, inclusive políticos, para a defesa de suas margens de lucro. Alguns desdobramentos recentes podes ser vistos como indicadores disso.

Recentemente o Twitter (agora X), do bilionário Elon Musk, modificou sua política de contas verificadas, conhecidas pelo selo azul. Anteriormente o selo era atribuído gratuitamente, para contas que cumprissem requisitos de confiabilidade e relevância. Agora o selo é atribuído somente por pagamento. O gráfico abaixo mostra que o efeito disso foi uma enorme ampliação das vozes da extrema-direita, aumentando 20 vezes sua proporção, em apenas duas semanas. A rapidez desta mudança cria a suspeita de que se trata de um movimento planejado e articulado.

Fontes: Central da Política @centralpolitcs 8:59 AM · 8 de mai de 2023
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/05/direita-tem-explosao-de-perfis-verificados-e-ganha-exposicao-no-twitter.shtml?utm_source=twitter&utm_medium=social&utm_campaign=twfolha

Esta política de monetizar a relevância dos atores em rede não é uma exclusividade da X, sendo estudada sua implantação pelas outras gigantes das redes sociais. O efeito amplificador do poder econômico sobre o debate social e político é difícil de estimar.

Muito se fala que os algoritmos das plataformas favorecem as posições extremistas de direita (4)(https://www.nexojornal.com.br/extra/2021/10/22/Twitter-admite-que-seus-algoritmos-favorecem-a-direita). A confirmação desta hipótese é dificultada pela grande opacidade destas empresas, que relutam em abrir o código de seus algoritmos. A pressão social e a aprovação de regulamentações legais, como a DSA da UE (5), tem gerado tímidos avanços com relação a transparência (6)(https://desinformante.com.br/meta-algoritmo/) , porém insuficientes para explicar a hegemonia da direita nas redes, que é facilmente verificado pelos projetos de monitoramento.

Esta força pode ser explicada parcialmente pelo uso de robôs, fazendas de trolls e uso de manipulações psicológicas e desinformação. No entanto, a resistência das plataformas em adotar sistemas abertos e transparentes dificulta cada vez mais o estabelecimento de um controle social e legal, tornando o mundo em rede terreno fértil para o crescimento de um novo tipo de fascismo digital. Um fascismo que se sustenta não em uma realidade concreta, mas em ignorância, irracionalidade, manipulação psicológica das frustrações e populismo rasteiro.

Podemos dizer portanto que a grande incubadora do fascismo de nosso tempo é a desinformação promovida pelas redes sociais. E devemos entender que a desinformação não tem a mesma natureza das formas tradicionais de mentiras e manipulações. Trata-se de um fenômeno qualitativamente diferente. A compreensão deste fenômeno da desinformação é a condição indispensável para construção de uma política de comunicação antifascista efetiva.

Um artigo publicado no portal *desinformante (7) propõe alguns elementos para este entendimento. Segundo o artigo o fenômeno da desinformação adquire este caráter globalizante por:

– reduzir a importância dos gatekeepers (mídia tradicional), eliminando o filtro do jornalismo profissional;

– a segmentação algorítmica da distribuição de informação, conectando produtores e consumidores com máxima precisão, de forma que a desinformação consolide bolhas e fortaleça o viés de confirmação;

– A distribuição de (des)informação sustentada pelo modelo de plataforma passa a atingir diretamente segmentos antes marginalizados pela grande mídia que direcionava para públicos genéricos, consolidando bolhas e criando protagonismos;

– ciclos de feedback muito rápidos, apoiadas por ferramentas de escuta social (“social listening”), que permitem análises qualitativas profundas e ajustes nas estratégias de comunicação.

Se queremos construir uma comunicação antifascista que efetivamente combata a desinformação e possibilite a construção de uma consciência social e politica que supere a “esquizofrenia estrutural” gerada pela sociedade em redes, como apontou Manuel Castells, não basta resgatar formas tradicionais. Precisamos entender em profundidade estes fenômenos. O Seminário de Comunicação Antifascista, promovido pelo Portal Desacato, é um esforço importante nesta direção.

Florianópolis, 14 de agosto de 2023

Marco Arenhart

(1) Jong,David de. Bilionários Nazistas: A tenebrosa história das dinastias mais ricas da Alemanha. Ed Objetiva. 2023.

(2) Eco, Umberto. Cinco escritos morais. O fascismo eterno. Ed. Record. 2000.

(3) Mascaro, Alysson. Critica do fascismo. Ed. Boitempo. 2022.

(4) https://www.nexojornal.com.br/extra/2021/10/22/Twitter-admite-que-seus-algoritmos-favorecem-a-direita

(5) https://www.theguardian.com/media/2022/dec/17/digital-services-act-inside-the-eus-ambitious-bid-to-clean-up-social-media

(6) https://desinformante.com.br/meta-algoritmo/

(7) https://desinformante.com.br/desinformacao-de-plataforma/

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