A construção deste país se deu com sangue dos negros que foram sequestrados do continente africano e escravizados nesta terra. Todos seres humanos conhecem está história, principalmente nós negros/as que até hoje sofremos com o ranço dessa discriminação. Diante de tanta crueldade, alguns negros escravizados não aceitaram o tratamento desumano e se dispersaram em território brasileiro. Com medo de serem capturados procuravam lugares de difícil acesso para ali viver em liberdade, sem açoites e chibatadas.
Esses povos, bem antes de serem trazidos para o Brasil, viviam suas culturas, crenças, tradições e ancestralidade. Já nos navios negreiros eram separados de suas etnias pelos colonizadores. Mesmo assim estes não conseguiram apagar os saberes tradicionais. Ao se juntarem em pontos estratégicos, abrigaram outros fugidos da escravidão, formando grandes quilombos. Os mais conhecidos foram: Palmares, em Alagoas; Ambrosio, em Minas Gerais; e Campo Grande, entre Minas e São Paulo.
Bem antes da Constituição de 1988, os quilombolas já vinham se organizando para pressionar os governantes pela garantia de seus direitos, tanto nas regularizações territoriais como nas criações de políticas públicas que os contemplasse. A partir do estabelecimento dos artigos 215 e 216 da Constituição, foram garantidos os direitos de manifestações culturais de povos afro brasileiros e seus modos de viver e fazer.
Claro que muitos direitos ainda tinham que ser efetivados de fato mas, mesmo assim, tínhamos o que comemorar. Em 2003, foi criado o decreto 4.887, que deu visibilidade a estes povos tradicionais e suas localidades passaram a serem reconhecidas como comunidades remanescentes de quilombos. Foram a partir do decreto também que os quilombolas puderam se auto reconhece como tal. Esse decreto veio também regulamentar, delimitar e titularizar as terras que de fato já pertenciam aos quilombolas, ainda que muitas comunidades quilombolas existissem em seus respectivos territórios há mais de trezentos anos.
O PFL, atual DEM, entrou com a ação direta de inconstitucionalidade (ADI) n.3239 propondo a derrubada do decreto logo após sua criação. O julgamento estava marcado pelo STF para o dia 18 de outubro de 2017. O que estou querendo dizer é que, se o decreto 4.887/03 for derrubado, todas as comunidades quilombolas do país sofrem o retrocesso. Todos os direitos territoriais caem por terra, toda população tradicional tem alienadas suas identidades.
Diante dessa situação, faço aqui minhas indagações. Que país é esse que foi construído com sangue e suor da população negra e mesmo assim estes são privados de direitos? Que país é este onde governantes passeiam com malas, sacos, sacolas, meias, cuecas de dinheiros dos cofres públicos e essa ação não é julgada inconstitucional? Que país é esse que os povos negro/as quilombolas clamam pelos seus direitos à terra para plantar, colher e viver em coletividade, manifestando suas crenças e suas religiosidades, invocando suas ancestralidade, e estes direitos não negados? Que país é esse que grandes fazendeiros e latifundiários matam lideranças quilombolas em confrontos territoriais e os governantes fingem não ver? E por último, que tamanho vai ser a lista dos assassinatos de lideranças quilombolas após a derrubada do decreto 4.887/03? Será que os governantes estão preparados para assumirem essa fatura?
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil