Quatro casos demonstram na prática a relação entre grilagem e desmatamento no Matopiba

Pesquisa aponta violações na região do Matopiba, que estão fazendo o cerrado sumir e ameaçam comunidades tradicionais

A cerca: agronegócio invade e se apropria ilegalmente de terras no território de Melancias (PI) – Foto: Débora Assumpção

Por Nara Lacerda.

A partir da metade da década de 1980, uma vasta região do Cerrado do Brasil, que se estende pelos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, passou a atrair massivamente o agronegócio brasileiro.

De lá para cá, o Matopiba –  como é chamada a área hoje – foi tomado por um movimento de alargamento das fronteiras agrícolas, que modifica radicalmente a paisagem e a vida de comunidades originárias consistentemente e faz uso da grilagem.

Como resultado de décadas de expansão, a perda de vegetação nativa dos últimos 20 foi superior a tudo o que foi registrado nos 500 anos anteriores. A maior parte do que foi devastado é usada para produção de soja, milho e algodão.

Entre 1985 e 2020, o prejuízo ao cerrado como um todo chegou a 26,5 milhões de hectares e 99% da destruição tem origem na agropecuária. Pelo menos metade desse estrago aconteceu no Matopiba.

Da violência contra populações tradicionais à poluição excessiva na região portuária da capital maranhense São Luís, as consequências trágicas não se limitam ao dano ambiental e chegam a todos. O cenário é potencializado pela falta de atenção do poder público e pelo desmonte em órgãos de fiscalização ambiental, fatores que estimulam a invasão de terras públicas por grileiros e especuladores.

Para avaliar e registrar o estrago que a grilagem causa de perto, a Associação de Advogados/as de Trabalhadores Rurais (AATR), junto com a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado. percorreu os quatro estados do Matopiba e levantou casos de violações que são um retrato da situação geral.

O material foi reunido no relatório Na fronteira da (i)legalidade: Desmatamento e grilagem no MATOPIBAum vasto material com levantamento de uma série de irregularidades e uma leitura social, política e jurídica das situações encontradas.

“Nós estudamos um caso em cada estado. Um caso que fosse representativo, pelas suas características, de tantas outras situações e que reunisse esses elementos que são típicos dessa dinâmica de expansão da fronteira”, afirma Maurício Correia, coordenador da AATR.

Segundo Maurício, esse avanço ocorre em ritmo acelerado e envolve fundos estrangeiros, especulação e alteração de leis e normas para facilitar a legalização grilagem, “demonstramos essa relação que existe entre o desmatamento e a grilagem. Um não funciona sem o outro”.

Travessia do Mirador – Maranhão

No centro-sul maranhense, mais de 78 comunidades de agricultura familiar aguardam, há 40 anos, o cumprimento de uma decisão judicial, que destina a área para reforma agrária e regularização fundiária.Em 1978, a justiça estadual reconheceu a região como terra pública, em resposta a uma ação do próprio governo do Maranhão.

São famílias agroextrativistas, que praticam a criação tradicional de gado, cultivam as milenares roças de toco e vivem nos vales e rios, em meio às chapadas da Travessia do Mirador. O conhecimento de gerações permite soberania alimentar e geração de renda. A farinha de mandioca produzida na região, por exemplo tem importância significativa para o abastecimento de municípios vizinhos.

Além de não cumprir a decisão judicial, o estado criou um parque no local na década de 1980. A área de preservação ambiental não permite a presença das comunidades. Ameaçadas de uma lado pela administração do parque, elas sofrem também com o avanço de grandes propriedades no entorno da unidade.

A grilagem é um problema histórico na região e não encontra resistência para se proliferar. Segundo observa a AATR, não há mobilização do poder público para conter o avanço, que chega até mesmo ao parque. Não está explícito quais são os limites da unidade e o Incra vem permitindo o registro de propriedades privadas no Sigef ou Sistema Nacional de Certificação de Imóveis (SNCI) sobre a área.

Para as famílias que estão no local há séculos, o tratamento é outro. Consideradas invasoras em seu próprio território, elas são tratadas com violência pela gestão local e vivem sob ameaça, “sob a justificativa de proteção ambiental”, alerta a análise da AATR.

Entre as empresas do agronegócio que exploram a região, estão grandes empreendimentos sobre os quais pesam denúncias de trabalho escravo e compra ilegal de terras por estrangeiros. Ao leste do parque, a maior parte do desmatamento é causada por um grande produtor paranaense dono de um subsidiária ao grupo japonês Mitsubishi.

“Enquanto os comunitários são tratados como invasores e infratores, o agronegócio é tido como parceiro e aliado da preservação ambiental. Mesmo com o amplo desmatamento nas chapadas no entorno do parque e na porção leste desafetada, sobretudo para dar lugar a monocultivos de soja”.

Gleba Tauá – Tocantins

É também o avanço da monocultura da soja e da pecuária que ameaça as terras públicas da Gleba Tauá, onde vivem diversas comunidades tradicionais e camponesas. A região foi arrecadada e registrada em nome da União desde 1984, mas nunca deixou de ser palco de graves conflitos com origem na grilagem.

Localizada no município de Barra do Ouro, nordeste de Tocantins, a Gleba Tauá está em meio a uma área em que a expansão agrícola é observada fortemente. O agronegócio conta com suporte e financiamento governamental desde a década de 1990 para seguir com avanço.

Nas últimas três décadas, uma mesma família de grandes proprietários ocupa o território dessas populações usando artifícios legais, brechas jurídicas e abusando da condescendência do poder público. Até o ano 2000, a devastação ambiental tirou do mapa mais de 4,5 mil hectares de Cerrado.

A área impactada dobrou de tamanho até 2010, chegando a 9.561 hectares. Em 2020, mais de 12,3 mil hectares estavam desmatados, 60% do total do território. No lugar da diversidade do bioma, grandes extensões de devastação e plantações de soja ocupam a paisagem.

“Em 2020 quase não há grandes extensões de cerrado preservadas e as poucas porções que ainda têm cerrado em pé são aquelas que estão sob controle das comunidades  tradicionais, onde está delimitada a parte que sobrou do território tradicional, após as expulsões”, observa o relatório.

O documento ressalta a organização das comunidades locais para reverter o estrago e lutar pelo direito à terra, “na Tauá, assim como nos outros casos analisados, as comunidades tradicionais assumem um papel de contenção ao desmatamento. O cerrado integra a vida das comunidades tradicionais como parte fundamental, é base da reprodução social, econômica, cultural e conforma a própria identidade das comunidades cerradeiras”.

Bacia do Corrente – Bahia

“Fazendas fantasmas” e “grilagem verde” são termos que permeiam o cotidiano de comunidades vaqueiras, que há mais de um século criam rebanhos livres em terras de uso comum e respeitando o tempo da biodiversidade local na Bahia.

A técnica chamada de fechos de pasto está presente em quatro territórios observados pela pesquisa, Porcos-Guará-Pombas, Capão do Modesto, Cupim e Vereda da Felicidade. Nesse locais, as comunidades são guiadas pelas mudanças naturais do cerrado ao longo do ano para conduzir as criações.

É também o relógio da terra e do curso das águas que determina o que plantar, quando semear e colher e como todo esse processo pode ser feito sem nenhum tipo de devastação. O modo de vida tradicional é ameaçado pela grilagem e por disputas por território e recursos hídricos há décadas.

O relatório destaca que, partir das décadas de 1960 e 1970, “os esquemas de grilagem seguiram um padrão usual de “inventar nos inventários”, realizando a conversão de supostas posses de terras em registro de propriedade particular por meio da aquisição de direitos possessórios com pretensa origem em ações de inventário e formais de partilha (herança)”.

Sem políticas de identificação, delimitação e destinação constitucional das terras públicas, o governo do estado impulsionou a prática. A falta de fiscalização por parte dos Cartórios de Registro de Imóveis e a concessão indiscriminada de autorização de supressão vegetal e outorgas hídricas completaram a equação.

Há denúncias de corrupção e tráfico de influência nos processos, que beneficiam empresa do ramo imobiliário. As “fazendas fantasmas” são espaço para especulação imobiliário e facilitam o acesso a crédito subsidiado pelo governo e a empréstimos bancários.

O território também é alvo da chamada “grilagem verde”, apropriação ilegal de terras com bioma preservado que são registradas como reserva legal de outros imóveis e usadas irregularmente para recebimento de créditos de carbono.

“A área desmatada na Bacia do Corrente entre 2001 e 2020 (880.721 ha) é maior que toda a vegetação derrubada até antes do ano 2000 (639.520 ha)”, aponta o relatório. O documento também cita processos de devastação para exploração e armazenamento de recursos hídricos.

Território Tradicional de Melancias – Piauí

A “grilagem verde”  também ameaça comunidades do território piauiense de Melancias. A apropriação ilegal das chapadas, o desmatamento e a contaminação da água crescem, enquanto o poder público facilita a invasão da iniciativa privada.

Família ribeirinhas e brejeiras habitam o local desde o século XIX. Inicialmente, os grupos se formaram a partir da fuga de negros escravizados, que encontraram refúgio na região. A seca de 1932 levou à migração sertaneja e há quem tenha chegado ao território para exercer o garimpo, praticado por um breve período.

O relatório narra que as comunidades desenvolveram “modos de fazer, criar e viver que possibilitaram uma cultura própria, interligada aos ciclos do “verão” (seca) e “inverno” (chuvas) característicos do Cerrado.”

Para garantir o sustento elas plantam grãos e raízes e criam gado em pastagens naturais. O que sobra é comercializado em feiras de cidades próximas e gera renda para as famílias. Hoje, os modos de vida desses grupos estão cada vez mais prejudicados pela grilagem.

O que era espaço para o extrativismo e o manejo sustentável de rebanhos, cada vez mais cede lugar à grandes plantações de soja e para a especulação A iniciativa privada ocupa ilegalmente chapadas e baixões e a população tradicional fica cada vez mais “espremida” nas proximidades dos cursos d’água.

Ainda na década de 1970, o governo do estado iniciou um processo massivo de transferência terras devolutas públicas para indivíduos e empresas privada, a maior parte do Sul do Brasil. Esses grupos compraram milhares de hectares por “preços irrisórios” e foram beneficiados por ações judiciais de demarcação de terras que excluíram as comunidades tradicionais.

“São 30 anos de reivindicações de demarcação e titulação do território, mas apenas em janeiro de 2020 o Instituto de Terras do Piauí (Interpi) abriu procedimento com essa finalidade. Este período de omissão foi suficiente para que empresas e indivíduos se utilizassem de títulos viciados para a inserção de imóveis inexistentes ou com fronteiras alteradas nos cadastros digitais auto declaratórios”.

Maurício destaca o papel das populações que ocupam os territórios na preservação. “Nós chegamos a mais de 1,2 milhão de hectares protegidos pelas comunidades tradicionais somente nesses quatro casos. Nós encontramos 492 mil hectares grilados. São números muito significativos”, conta.

A solução, segundo ele, passa pelo reconhecimento da legitimidade dos territórios e “por uma melhor concertação entre esses órgãos, que têm sido sabotados em suas atividades de fiscalização”. finaliza o especialista.

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