Por Fabio Pontes.
Rio Branco (AC) – Quatro agricultores, entre eles, Nemes Machado de Oliveira, 53 anos, foram mortos com tiros nas costas e na cabeça e dezenas de pessoas foram expulsas de suas casas, em mais um conflito agrário na Amazônia brasileira. Desta vez, o caso aconteceu na madrugada de sábado (30) no seringal São Domingos, no município de Lábrea, no sul do Amazonas (distante a 703 quilômetros de Manaus).
O acesso à região é por um ramal de 50 quilômetros que começa na rodovia BR-364, estrada que interliga os estados do Acre e Rondônia.
Os outros três homens assassinados ainda não foram identificados pela Polícia Militar do Amazonas, que está investigando uma ação de jagunços no seringal devido ao conflito fundiário envolvendo grileiros. Não há informação sobre quem são os autores das mortes. O Comando de Policiamento do Interior da PM confirmou as mortes nesta segunda-feira (1º.).
A região do sul de Lábrea, onde ocorreu o conflito, é conhecida como “faroeste amazônico”, devido ao histórico de violência na disputa por terras que resulta em assassinatos e ameaças às famílias de sem-terra, além de grilagem, exploração ilegal de madeira e desmatamentos.
De acordo com os relatos de moradores do seringal São Domingos, na região há até uma lista de pessoas marcadas para morrer.
Testemunhas (que pediram para não revelar os nomes devido a insegurança no local) disseram à reportagem que, ainda durante a madrugada do último sábado (30), ao menos seis homens armados e encapuzados começaram uma ação violenta contra as famílias do seringal São Domingos.
O primeiro corpo encontrado foi o de Nemes Machado de Oliveira, já identificado pela polícia. Os corpos dos outros três homens foram dados como desaparecidos no domingo (31). Então, moradores fizeram buscas na região de floresta que fica no entorno do Seringal São Domingos e encontraram as outras três vítimas do conflito.
Uma das vítimas, o agricultor Nemes Machado de Oliveira, era casado e pai de três filhos. Morador do município de Acrelândia, no Acre, ele comprou uma área de terra para investir na criação de animais e na agricultura, justamente no seringal, localizado no sul de Lábrea.
Outra pessoa só não foi morta porque conseguiu escapar dos tiros, pulando num açude, escondendo-se numa área de mata por mais de duas horas, conforme disse uma testemunha. A mulher, grávida, e os filhos foram obrigados a deixar a casa, apenas com a roupa do corpo, tendo que caminhar, por quilômetros, até chegar às margens da rodovia.
A grande maioria das famílias que reside no seringal São Domingos é oriunda de Acrelândia (distante 110 km de Rio Branco). Elas viram nos preços baixos das propriedades rurais, vendidas na vizinha Lábrea, uma oportunidade para “realizar o sonho de ter um pedaço de terra”, como eles próprios relatam.
Cenário do massacre
A reportagem da Amazônia Real conversou com algumas das pessoas que vivenciaram o momento de pânico no seringal São Domingos. Uma mulher, que prefere não ter o nome revelado, disse que ela, os filhos e a nora “só não morreram pela misericórdia de Deus”.
Durante a entrevista, ela deu detalhes do ataque dos jagunços: “Fomos humilhados, saímos de lá debaixo de arma, pessoas fortemente armadas. Nós saímos [vivos] porque nos humilhamos. O que falavam para nós a todo momento é que eles estavam lá para matar”, afirmou ela.
Sidney Miguel Andrade, 40 anos, é um dos últimos moradores do ramal da Torre, que corta o seringal. Os jagunços chegaram à sua casa. Eles agiram com a mesma violência e o obrigaram – junto com a família – a deixar tudo para trás e ir embora.
“Deixei minhas 75 cabeças de gado e toda a minha plantação. Só saímos com as roupas que estávamos usando. Toda a nossa vida, todo o fruto de nosso trabalho foi perdido assim”, disse ele. De acordo com Sidney, os homens chegaram a se apresentar como policiais, dizendo que a ordem era expulsar os ocupantes do terreno.
“O cenário que a gente viu era de tristeza, de partir o coração. Os barracos de nossos amigos pegando fogo; nossas motos destruídas. Não sobrou nada”, completou Sidney. De acordo com ele, os homens faziam fotos dos moradores, dizendo que, se eles ali fossem vistos novamente, “não teriam uma segunda chance”.
Samuel Gonçalves, 46 anos, foi um dos primeiros a se deparar com o grupo armado. Ele estava cortando estacas para cercar sua propriedade, às margens do ramal, quando foi abordado. Com as armas em punho, os jagunços deram ordens para que ele fosse embora dali.
“De longe, eu só via a fumaça saindo da casa do pessoal. Minha única reação foi subir na minha moto e escapar com vida. Eles estavam dispostos a tudo”, afirmou Samuel. Ele ainda disse ter sido a primeira pessoa a chegar à Acrelândia e comunicar o ocorrido à polícia.
Impasse territorial
Apesar de o seringal São Domingos estar localizado no Amazonas, as famílias foram pedir ajuda às polícias de Rondônia e do Acre, devido à a distância com a sede do município de Lábrea, são cerca de 500 quilômetros. A entrada do ramal que dá acesso ao seringal fica no distrito de Nova Califórnia, pertencente a Porto Velho (RO).
A Polícia Militar de Rondônia afirmou que nada poderia fazer, por não ter autorização para atuar no território do Amazonas. O mesmo foi alegado pela PM do Acre, ao dizer que não existe um termo de cooperação com o governo amazonense neste sentido.
O sargento aposentado Humbertino Costa, morador de Acrelândia, foi a única autoridade a estar no local, quando da chegada da primeira vítima. A tarefa era resgatar o corpo de Nemes Machado, que havia ficado no seringal, pois a Polícia Civil do Acre também afirmou não estar autorizada a operar em Lábrea.
Após ser enrolado numa lona e colocado na carroceria de uma picape, o corpo de Nemes foi levado para o Instituto Médico Legal (IML) de Rio Branco, no Acre. O enterro aconteceu no fim da manhã desta segunda-feira (1º.), em Acrelândia.
Na delegacia da Polícia Civil da cidade, os moradores registraram os boletins de ocorrência denunciando as quatro mortes e as violência sofridos no seringal pelos jagunços. Contudo, os moradores foram comunicadas pelas autoridades policiais do Acre que nada poderiam fazer, porque os crimes ocorreram na jurisdição do estado do Amazonas.
Os moradores do seringal São Sebastião afirmam que, a partir de 2014, passaram a comprar as propriedades de pessoas que já ocupavam em lotes de terras. Recentemente, descobriram que a propriedade pertence a União, e que os documentos de posse eram falsos, isto é, que as terras públicas tinham sido griladas.
A região é bastante cobiçada por madeireiros e fazendeiros, interessados em ampliar as áreas de pasto. Os acreanos que moram na área são pequenos e médios produtores, com as fazendas medindo de 100 a 400 hectares. Estima-se que, ao menos, 160 famílias morem dentro do Seringal São Domingos.
“Faroeste amazônico”
A região do sul do Amazonas, divisa com os estados do Acre e Rondônia, onde ocorreu o conflito no seringal São Domingos, tem um histórico de ameaças e mortes de trabalhadores rurais sem-terra. Há a exploração de terras públicos por grileiros, invasão de assentamentos por madeireiros e fazendeiros e acampamentos de sem-terra com intuito de ser beneficiado com a reforma agrária, além de muito desmatamento ilegal e queimadas.
A primeira morte com repercussão nacional e internacional na região foi a do agricultor familiar e dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do Sul de Lábrea, Gedeão Rodrigues da Silva, assassinado em 2006. Ele foi morto com um tiro no peito, em uma emboscada próxima ao acampamento, na gleba Iquiri, onde vivia com a família. Em 2007, o Incra implantou um projeto, no qual o sindicalista foi homenageado: o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Gedeão. Nesse projeto foram assentadas 164 famílias consideradas aptas a serem beneficiadas com terra e créditos da reforma agrária.
A origem dos conflitos, em áreas de pressão, está na ocupação ilegal da terra por grileiros, geralmente fazendeiros, que invadem as terras que são públicas. Eles entram em conflito com agricultores que não encontram alternativa econômica nos centros urbanos e que procuram sustento com ações de reforma agrária. O resultado é um alto índice de desmatamento e violência no campo, sem que haja uma atuação efetiva do poder público e de órgãos fundiários.
Em 2011, o agricultor Adelino Ramos, o Dinho, foi assassinado em Vista Alegre do Abunã, em Rondônia. Dinho, que era sobrevivente do Massacre de Corumbiara (1995), e morava no Projeto de Assentamento Florestal Curuquetê, em Lábrea. Ele já vinha recebendo ameaças há vários meses, após denunciar ações de madeireiros ilegais à polícia e ao Incra.
No ano seguinte, em 2012, foi morta a trabalhadora rural Dinhana Nink, de 27 anos, com um tiro de espingarda no rosto, na frente de um dos filhos, em Nova Califórnia (RO). Nink morava no Projeto de Desenvolvimento Sustentável Gedeão, em Lábrea (distante 703 quilômetros de Manaus), município amazonense que fica na divisa com Rondônia e Acre. Segundo a CPT, ela era alvo de ameaças porque fazia denúncias sobre extração ilegal de madeira no local.
Também nesse ano de 2012, a agricultora Nilcilene Lima precisou fugir do Projeto de Desenvolvimento Sustentável Gedeão, após constantes ameaças de morte que vinha sofrendo, desde 2009, por denunciar a presença de grileiros e madeireiros ilegais na região. Ela abandonou casa e plantação, mesmo estando com a proteção da Força Nacional de Segurança.
Até o dia 27 de março deste ano, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) tinha registrado, no Brasil, 49 massacres no campo, com 230 vítimas, no período de 1985 a 2019.
Nesta estatística está a morte da coordenadora regional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Dilma Ferreira Silva, no assentamento Salvador Allende, em Baião, no nordeste do Pará, ocorrido no período da noite do dia 22 e madrugada do dia 23 de março. Se as investigações confirmarem o conflito agrário como motivo do assassinato de Dilma será a primeira morte do ano de 2019 na Amazônia, segundo a CPT.
Diante da intensificação dos conflitos no país, a CPT criou a página especial Massacres no Campo, com dados de 1985 até os dias atuais. (Colaborou Elaíze Farias e Kátia Brasil)