Quatorze toneladas cabem em dois andares. Por Gustavo Veiga.

Por Gustavo Veiga.

Quatorze toneladas de bombas não são iguais a quatorze toneladas de pedras, embora pesem o mesmo. Os primeiros foram disparados em 16 de junho de 1955 contra uma população civil indefesa na Plaza de Mayo. No dia 18 de dezembro de 2017, as quatorze toneladas foram transformadas em entulho. Foram lançadas por militantes no Congresso que buscavam aprovar a lei de Mobilidade dos Aposentados elaborada pelo governo de Mauricio Macri. Coincidências e diferenças entre dois acontecimentos separados por 62 anos que a direita sempre manipulou.

A coincidência é notável. Na figura que define os acontecimentos e na unidade de medida do que foi lançado em Buenos Aires com 62 anos de diferença. Onde não há acordo possível é na dimensão de dois episódios históricos que revelam situações e atores opostos. Quatorze toneladas de bombas não são iguais a quatorze toneladas de pedras, embora pesem o mesmo. As bombas foram lançadas em 16 de junho de 1955 sobre uma população civil indefesa. Uma quinta-feira, um dia de semana. Pilotos golpistas em voos baixos da aviação naval e do Gloster Meteor da Aeronáutica realizaram a sangrenta tarefa. Eram os últimos meses de Perón na segunda presidência. O governo cairia em meados de setembro.

  A tragédia das quatorze toneladas de explosivos que caíram do céu está documentada numa investigação coletiva promovida pelo Estado. O seu objectivo, embora tardio, era recordar e homenagear as vítimas. Uma primeira versão foi publicada em 2010 e o Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos reviu e ampliou o trabalho em 2015. Em ambos os casos, a decisão política de Néstor e Cristina Kirchner foi fundamental. Através da Lei 26.564, foi necessário fazer reparações aos familiares dos 309 assassinados e dos mais de mil feridos que podem ter sobrevivido.

  O texto em seu prólogo diz: “O bombardeio de uma cidade aberta pelas forças armadas do próprio país é um ato de terrorismo que tem poucos precedentes na história mundial, ocorrendo no calor de guerras civis muito sangrentas que devastaram essas nações”.

  Guernica é o primeiro exemplo comparável que surge. Em 26 de abril de 1937, aviões da Legião Condor alemã pulverizaram a pequena cidade basca. Mas nesse caso eram pilotos do Terceiro Reich sem identificação com a colaboração de colegas italianos do regime fascista de Mussolini.

  Até a sua morte, Franco atribuiu esse crime ao governo da República. Ele aprendeu a mentir tão bem quanto Goebbels. A diferença entre esse ataque e o perpetrado em Buenos Aires é que a aeronave não era do mesmo país das vítimas que receberam as bombas. Nem o é hoje em Gaza e no Líbano, onde os F-35 e F-15 fornecidos pelos EUA a Israel mataram quase 42 mil palestinos em Gaza e 2.350 cidadãos no Líbano, sem contar, em ambos os casos, os feridos e desaparecidos.

  O livro Bombardeio de 16 de junho de 1955 documenta com textos e fotografias o massacre cometido por aviões que tinham escrito em sua fuselagem o símbolo de Cristo conquista. De suas 245 páginas sai a cifra de quatorze toneladas de explosivos, assim como o cálculo de mais de cem bombas lançadas no centro de Buenos Aires em um raio que incluía “entre as avenidas Leandro N. Alem e Madero, do Ministério de do Exército (Edifício Libertador) e da Casa Rosada, no sudeste, à Secretaria de Comunicações (Correio Central) e ao Ministério da Marinha, no noroeste.”

  A direita argentina, hoje imitada pela extrema-direita liderada por Milei, sempre busca significantes para se abrigar ou contar sua própria versão da história. A palavra liberdade é seu signo linguístico favorito. Liberdade vazia distorcida na boca de um governo libertário que oprime sobretudo os aposentados e os estudantes.

   “Libertadora” foi o nome escolhido pelos comandos militares e civis de 1955 para definir a sua identidade política misturadora. Rodolfo Walsh a chamou de Fusiladora após as execuções clandestinas nos lixões José León Suárez. “Bombardeadora” foi definida por Carlos Gogo Morete – um dos pesquisadores do livro publicado em 2015 – durante recente entrevista com alunos do curso de Comunicação da UBA.

  Há uma linha de continuidade política entre aquele sangrento golpe de Estado contra Perón, a ditadura genocida de 76 e o ??governo neofascista de La Libertad Avanza que também bastardiza a palavra com que Aramburu e Rojas se definiram. O documento histórico citado prova isso. Ele ressalta que o almirante Aníbal Olivieri, rendendo-se às tropas leais, pediu clemência, intimidado pela possibilidade de uma multidão de trabalhadores invadir o Ministério da Marinha. Seus três assistentes seriam, vinte e um anos depois, golpistas com altos cargos no autoproclamado Processo de Reorganização Nacional. Os capitães de fragata Emilio Eduardo Massera, Oscar Montes e Horacio Mayorga. O primeiro membro do Conselho liderado por Videla, o segundo chanceler e o último dos envolvidos no massacre de Trelew.

  A sequência da história se estende até hoje. Guillermo Francos, atual Ministro do Interior, é filho de Raúl Francos, o marinheiro que bombardeou os tanques de combustível do porto de Mar del Plata do navio de cruzeiro 9 de Julio em 19 de setembro de 1955. Um dia depois, Perón iniciou seu exílio em uma canhoneira paraguaia.

  As quatorze toneladas de bombas lançadas sobre uma população indefesa com a desculpa de matar o líder do Justicialismo nunca existiram na visão de mundo dos golpistas. O fato tornou-se invisível nas instituições de ensino nas décadas seguintes. Tal como o franquismo na sua versão negacionista quando se refere à destruição de Guernica, num panfleto da Marinha em operações, os rebeldes Rojas e Aramburu intitulavam: “Responsabilidade de Perón e da CGT no massacre da Praça de Maio”.

  62 anos depois daquele ataque ao coração da república, em 18 de dezembro de 2017, as quatorze toneladas de bombas foram transformadas em pedras. O número apareceu ressignificado na dialética de confronto da direita, quando naquele dia o Congresso procurou aprovar a lei de Mobilidade dos Aposentados desenhada pelo governo de Mauricio Macri. Informações oficiais afirmavam que “catorze toneladas de pedras” foram atiradas contra as forças de segurança. Repetido com frequência, tornou-se aceito como uma verdade revelada.

  Em 19 de maio de 2020, Patricia Bullrich repetiu em uma postagem o número validado pelo governo que formou como Ministra da Segurança. Hoje ela continua no cargo, mas sincerada em uma força de extrema-direita. Tal como Franco na sua longa ditadura, tal como o Bombardeiro de 55, e como um arquivo não resiste, agarrou-se ao álibi dos 14 mil quilos de escombros que voaram na Plaza Congreso.

  “Quando éramos Governo atiraram-nos 14 toneladas de pedras para travar uma reforma das pensões que hoje daria maior poder de compra aos nossos idosos”, declarou a Ministra. Um deputado nacional de La Libertad Avanza, Damián Arabia, voltou ao mesmo número depois de uma das muitas repressões contra os aposentados que protestam às quartas-feiras contra o empobrecimento dos seus rendimentos. “Já não apedrejam este Congresso, já não incendeiam este Congresso, já não atiram 14 toneladas de pedras a este Congresso…” repetiu com o roteiro bem aprendido.

  Não foram projéteis com estilhaços que mataram, mutilaram corpos e destruíram bens materiais, incluindo vários escritórios do governo Perón. Contra Macri, o ex-presidente que facilitou o advento de Milei, foi um ato de rebelião popular ou, se preferir, de militância organizada. Os números oficiais mencionam 162 feridos. Quase metade eram policiais.

  A direita instalou a Intifada de Buenos Aires no palco da sua guerra cultural como “a tarde em que foram atiradas quatorze toneladas de pedras”. Sua memória seletiva é incrível. As bombas de 55 ainda não aparecem nos seus livros de história, nem nos seus fóruns doutrinários. Os pilotos que fugiram para o Uruguai depois de assassinados tinham companheiros de armas na ditadura de 76 e hoje os seus nostálgicos filhos do governo Libertad Avanza os seguem.

 

Tradução: TFG, para Desacato.info.

A opinião do/a/s autor/a/s não representa necessariamente a opinião de Desacato.info.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.