O Vale Cultura passa pelo desafio de desenhar sua aplicação nos mais diferentes contextos brasileiros através de uma delimitação do usufruto, levando em consideração o quadro de acesso cultural demonstrando pelas pesquisas nacionais
Por Ana Maria Amorim.
Um modelo de tíquete cultural fornecido pelo Estado para ampliar o acesso à cultura está em pauta desde a gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura. As questões que essa ação implica, também. Assinado por Marta Suplicy, atual ministra da Cultura, o Vale Cultura será regulamentado até o meio deste ano, definindo o que cabe e o que não cabe na fruição deste cartão. Esta questão, como era de se esperar, não foi facilmente resolvida até o momento, tropeçando no conceito de cultura e na diversidade do país.
Desde a gestão de Gilberto Gil, no primeiro quadriênio do Governo Lula, a cultura passou a enfatizar a concepção antropológica. O conceito de cultura foi ampliado, ultrapassando a visão de bens culturais ou de belas-artes para integrar as diversas expressões culturais e modos de viver e fazer do povo brasileiro. Essa ideia foi fundamental para perceber a política cultural como integrante da cidadania, sem negar os aspectos simbólicos do campo da cultura e sem exclui-la de um projeto de desenvolvimento. O que esta definição traz de questão é a aplicabilidade, e este é um dos desafios para a implementação do Vale Cultura.
O conceito e sua aplicação tanto formam um gargalo que foi por onde passaram as primeiras discussões em torno do Vale Cultura. De início, um discurso elitista defendia o campo das chamadas belas-artes como fim do tíquete. O Vale serviria para ouvir um concerto de música clássica, mas não deveria integrar os bailes funk. Essa restrição conceitual veio como primeiro estardalhaço midiático. Em seguida, o problema já estava no alargamento conceitual. No embalo das críticas, muito foi utilizada a frase da ministra ao informar que o Vale Cultura poderia ser utilizado para compra de revistas e de pacotes de televisão fechada.
O próprio vídeo institucional do Vale Cultura, contudo, já fazia a sua própria delimitação. Ambientado em um museu, o vídeo intercala depoimentos sobre o acesso a equipamentos culturais, mostrando que 87% dos brasileiros não frequentam o cinema, 90% dos municípios não têm cinema, teatro, museu ou espaços multiuso, 92% dos brasileiros nunca foram aos museus e 78% jamais assistiram a um espetáculo de dança. O vídeo defende o Vale Cultura como um mecanismo de acesso a artes visuais, cênicas, audiovisual, música e ao patrimônio artístico nacional, prevendo o investimento de R$ 7 bilhões por ano no consumo cultural.
Relacionando as diversas visões de como deve ou não deve ser feito o uso do Vale Cultura, tem-se um impasse. A visão antropológica, que representou grandes avanços nas políticas culturais brasileiras, traz dificuldades para implementação: como usar o Vale Cultura em um modo de viver? Como enfrentar o quadro de defasagem ao acesso aos equipamentos culturais com um Vale que amplia para a comunicação ou para outros setores a possibilidade de uso? Entretanto, conforme mostra o vídeo institucional, qual o uso do Vale Cultura nos 90% dos municípios que não possuem estrutura cultural senão o consumo de bens culturais como DVDs, revistas e pacotes de TV?
As dificuldades do Vale Cultura, assim como a de qualquer outra política, cultural ou não, passam diretamente pela complexidade do país. Se o Vale Cultura incorpora a compra de revistas em bancas, poderá ele representar uma mudança no acesso aos espetáculos musicais, por exemplo? Se o Vale Cultura, por outro lado, exclui os pacotes de televisão a cabo, o que ele pode trazer de fruição para os municípios sem quaisquer equipamentos culturais? O Vale Cultura é incapaz de responder a todas as demandas que envolvem as políticas culturais brasileiras, porém, se perdido em sua aplicabilidade, pode ser apenas mais um instrumento de manter os alarmantes índices de acesso à produção cultural no país.
Circulando R$ 7 bilhões de reais por ano, cabe questionar as formas para que este montante seja utilizado, de fato, para o acesso cultural. Marta Suplicy, na última semana, voltou atrás sobre as TVs a cabo, retirando elas de possibilidade de consumo cultural. Quanto aos jogos eletrônicos, que também provocaram discussões em torno da cultura digital, coincidindo com a recente galeria do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque se dedicando aos tais jogos, a Ministra declarou que “nem pensar”. Sem poder responder a todas as desigualdades do país, mas justamente refletindo elas, o Vale Cultura passa pelo desafio de desenhar sua aplicação nos mais diferentes contextos brasileiros através de uma delimitação do usufruto, levando em consideração o quadro de acesso cultural demonstrando pelas pesquisas nacionais.
Fonte: Brasil de Fato.