Por Alberto Dines.
Estarrecido como sói acontecer com almas sensíveis, este observador admite que já usou o axioma do título dúzias de vezes. Além de flagrante autoplágio, trata-se de descarada clonagem do dito caipira segundo o qual pobre só come galinha quando um deles está enfermo.
A imprensa detesta ver-se refletida nas manchetes; não é discrição ou timidez, é sabedoria: holofotes são incontroláveis, exibem muito mais do que deles se espera.
Em seguida ao estresse provocado pelo pedido de demissão do cronista esportivo Xico Sá, que se revoltou contra o embargo imposto ao artigo onde se proclamava eleitor de Dilma Rousseff, a Folha de S.Paulo resolveu voltar ao pódio para se autoproclamar campeã em matéria de isenção.
Na edição de sábado (8/11), com grande destaque e nenhum constrangimento, o jornal afirma na p. A-9: “Cobertura eleitoral da Folha é aprovada por 77% dos leitores”. A fonte é, naturalmente, o Datafolha. Uma pesquisa no Google revelará que a mesma pesquisa é repetida religiosamente depois de cada eleição com resultados sempre brilhantes. Se fosse pessoa, a Folha seria extremamente carente, sedenta de reconhecimento e aceitação.
No domingo (9/11), quando o México começava a pegar fogo com as declarações do procurador-geral sobre a chacina dos 43 estudantes em Iguala, a Folha teve novo surto de inovação e sapecou na manchete da primeira página a retumbante constatação: “Jornalismo profissional alimenta redes sociais”.
A Folha só descobriu isso agora? Se acompanhasse este Observatório com mais atenção teria publicado a mesma matéria há alguns anos. De qualquer forma, trata-se de uma edição histórica e não apenas pela insólita manchete.
“De folga”
Na página A-3, no “Painel do Leitor”, outras novidades: quatro leitores mencionam a saída dos colunistas Eliane Cantanhêde e Fernando Rodrigues, que se revezavam há pelo menos uma década na retranca do “Brasília” na nobilíssima Pagina Dois.
Como assim, onde é que os leitores descobriram esta informação? Logo se descobre, no pé do painel, uma Nota da Redação”: “Sobre o encerramento da colaboração na ‘Folha’ dos colunistas Eliane Cantanhêde e Fernando Rodrigues leia reportagem à página A-10”.
Antes de chegar à página A-10, o observador dá uma paradinha na página A-6, onde aos domingos publica-se a coluna “Ombudsman”. Não há coluna com este nome. Com letra microscópica o jornal informa que neste domingo, excepcionalmente, não se publica a coluna da ombudsman – a mais importante contribuição ao processo de transparência jornalística.
Enfim, na página A-10: no alto destaca-se o título “Manifestantes buscam inspiração em direita americana”, e no corpo da xaropada com forte entonação conservadora o jornal informa que foi ouvir alguns dos 2.500 manifestantes que no dia 1/11 foram à Avenida Paulista protestar contra Dilma Rousseff e o PT. O redator tem o cuidado de informar que os manifestantes ouvidos não pediram a intervenção militar, a reivindicação “partiu de uma minoria”. Matéria estranhíssima.
Agora, sim: no pé da página A-10, com destaque “- D” (isto é, destaque nenhum): “Folhaestreia novos nomes na coluna Brasília em dezembro”. Na parte final da matéria, depois de introduzidas as novas atrações, fica-se sabendo que substituirão Eliane Cantanhêde e Fernando Rodrigues, ela com 17 anos de casa e ele, 27.
Só isso? Só isso. Desfecho insólito mesmo para os padrões da Folha.
No “Painel do Leitor” de segunda-feira (10/11), duas novas cartas sobre a saída de Cantanhêde e Rodrigues. E como um dos missivistas cobrou uma explicação sobre o súbito desaparecimento da ombudsman, Vera Guimarães Martins, em seguida veio a indefectível “Nota da Redação”: a coluna não foi publicada porque “a titular estava em semana de folga”.
Folga? Curioso.
Ato político
Desses fatos surgem três grandes evidências:
1. Como é que os leitores souberam da saída de Cantanhêde & Rodrigues se o jornal só publicou a informação um dia depois? Certamente pelas redes sociais, estúpido. Mas se as redes sociais só se inspiram no “jornalismo profissional” (segundo a manchete de domingo), alguma coisa escapou do controle, né?
2. Na sexta-feira (7/11) já corria a informação na blogosfera e alhures de que as demissões obedeciam a um drástico plano de contenção de gastos na redação do mais respeitado jornalão do país. Outros cortes viriam/virão. A crise econômica é visível a olho nu: pode ser detectada nas noites da Vila Madalena de quinta a sábado, na retração da publicidade em todas as mídias, nos pífios lançamentos da moda de verão. Pode ser notada, sobretudo, na própria Folha.
Na edição de sábado (8/11), com 92 páginas distribuídas em 9 cadernos, havia 38 anúncios de página inteira mais 12 inserções de grande porte (maior do que meia página), só no segmento de imóveis. No segmento automotor, três páginas inteiras; em outros segmentos (inclusive supermercados e eletroeletrônicos): 4 páginas.
E daí, perguntará o leitor. Eis o que informa a própria Folha na capa do caderno de classificados de imóveis, no domingo (9/11): “Preços em desaceleração e vendas em queda em São Paulo”. Construtoras, imobiliárias e incorporadoras gozam de tabelas especiais, os jornais oferecem generosos descontos ao setor, os anúncios de página dupla começam a substituir os de uma página. A Folha está oferecendo seu precioso espaço por preços insignificantes, quase de graça.
3. Outra evidência da crise e da absurda subserviência às chantagens dos anunciantes: o “informe publicitário” na capa e contracapa da edição da segunda-feira (11/11) nos exemplares destinados aos assinantes paulistanos. Com o patrocínio da operadora Vivo, da espanhola Telefônica, uma pseudocapa – verdadeiro trambique jornalístico – com a data e algumas notícias da terça-feira, 1 de fevereiro de 2000 (há 14 anos), quando o tenista Rafael Nadal, igualmente espanhol, iniciou a sua formidável coleção de prêmios. Mote das quatro páginas que envolvem a edição: “A vida passa em velocidade 4G”. Isso cheira a Navarra.
Quando grandes jornais abrem mão de seus traços e compostura vão se apequenando nos demais atributos. Demitir – ou o eufemismo de “interromper a colaboração” – acontece em qualquer empresa ou instituição. Afastar do quadro duas estrelas de primeira grandeza ao mesmo tempo e dessa forma descuidada, pusilânime, não é acidente, ou casualidade. É causal, tem um sentido, é ato político (não necessariamente partidário ou ideológico).
Quando a imprensa é notícia, um dos dois está doente. Ou os dois. A Folha adora surpreender: é o seu charme. E a sua perdição.
Fonte: Observatório da Imprensa