Por Fernando Sato, especial para os Jornalistas Livres.
Por aqui, a cidade chora. Chora forte. Inunda. No bairro da Luz, o Museu da Língua Portuguesa arde. Enquanto escrevo, vejo pela rede o fogo cada vez mais alto. O teto do Museu, uma construção histórica do século XIX, que faz parte da Estação da Luz, já não existe mais. A maior parte de seus 4.333 metros quadrados distribuídos em 3 andares está sendo duramente atingida.
Um museu onde a tecnologia fala muito, transforma a palavra em interações diversas, não se serviu dela para impedir que essa tragédia acontecesse. Se as palavras voam, hoje as palavras queimam. Grande Galeria, Palavras Cruzadas, Linha do Tempo, Beco das Palavras, História da Estação da Luz, Mapa dos Falares, Praça da Língua. Tantos depoimentos, histórias, expressões, causos, poesia, história. Uma língua que perde um pouco do seu brilho a cada labareda que sobe. Estamos em silêncio.
Mais de 100 anos da história da nossa Língua está sendo perdida a cada minuto que passa. Enquanto escrevo algumas frases perdidas de uma tristeza que me comove enquanto afundo os dedos no teclado, as chamas sobem ainda fortes e desafiadoras. Mais triste ainda é que a cidade inunda, verdadeiramente. O choro que deságua para fora causa vários pontos de alagamento. São Paulo sob a água e o Museu ainda ardendo.
Imagino a tristeza de José Miguel Wisnik, Arthur Nestrovski, Daniela Thomas, Bia Lessa, Maria Bethânia, Alvaro Faleiros, André Cortez, Júlia Peregrino, Felipe Tassara, Paulo Klein, Alexandre Roit, Ataliba Castilho, Eduardo Calbucci, Cacá Machado e outros tanto que trabalharam por entre seus painéis, monitores, projeções, interações, ideias. Por onde começar a lembrança?
Se o poeta é um fingidor, não existe como fingir essa tristeza. Ah, Cora Coralina, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, Oswald de Andrade, Jorge Amado, Rubem Braga, Cazuza, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Arnaldo Antunes, Waly Salomão, que bom seria se alguma das modernas e interativas salas do Museu da Língua Portuguesa ainda se salvasse para que os ecos de todos os seus discursos, poemas, escritos, conversas, cochichos, páginas e páginas, memórias, chegassem levemente aos nossos ouvidos quando as chamas se reduzirem a pó, e acordássemos inspirando prosa e expirando poesia.
PS. Acabo de saber que um bombeiro do próprio Museu faleceu. Faleceu cumprindo a sua sina de salvaguarda da vida alheia. A tênue linha dos limites ultrapassados. Que as palavras que faltam sempre nesse momento possam acarinhar sua família.
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Fonte: Jornalistas Livres.