Durante o debate sobre o futuro da Igreja, o teólogo brasileiro Leonardo Boff recordou que Ratzinger o sentou no mesmo lugar onde os julgados pela Inquisição foram colocados. Página/12perguntou se seu relato era literal. Uma história que cruza toda a transformação do Vaticano em uma poderosa monarquia absoluta.
Esperou até 1992 para deixar os hábitos de monge franciscano e abandonar o mosteiro onde vivia. A essa altura, já havia atravessado uma experiência de impacto: no dia 7 de setembro de 1984, o chefe da antiga Inquisição, hoje chamada Congregação para a Doutrina da Fé, o sentou na mesma cadeira ocupada pelo teólogo Giordano Bruno e pelo astrônomo Galileu Galilei. O inquisidor era o cardeal Joseph Ratzinger, na época mão direita doutrinária de João Paulo II e papa a partir de 2005 até 28 de fevereiro de 2013. O interrogado era o brasileiro Leonardo Boff.
Boff não foi queimado vivo como Giordano Bruno, nem teve que pedir perdão à força como Galileu. Porém, em 1985, Ratzinger o condenou ao silêncio e, desde então, as hierarquias eclesiásticas dificultaram cada vez mais a chance de que ele expressasse suas ideias com liberdade. Depois de ‘Igreja, Carisma e Poder’, o livro que o levou ante Ratzinger, cada novo trabalho encontrava obstáculos para sua publicação em editoriais ou revistas obrigadas a pedir permissão às autoridades da Igreja Católica.
Nos últimos dias, durante o debate sobre o futuro da Igreja pela dor de um papa que se vai, Boff recordou em seu blog (leonardoboff.com) que foi “sentado na cadeira de Giordano e Galileu”.
Ler essa frase abria a perplexidade. Foi, realmente, na mesma cadeira? Era possível que a mensagem da Santa Sé para demonstrar autoridade fosse transmitida com uma nitidez tão crua?
Página/12 perguntou a Boff.
Essa foi sua resposta, enviada por e-mail: “Fui julgado no edifício que fica à esquerda da grande praça para quem vai em direção à basílica (de São Pedro). Há séculos que é sede da Congregação para a Doutrina da Fé, ex Santo Ofício e ex Inquisição. É um edifício grande, escuro, com uns três pisos ou mais. Tive um processo doutrinário com todos os requisitos jurídicos. Sentei onde todos os julgados pela Inquisição foram julgados. Aí sentaram-se Galileu Galilei, Giordano Bruno e outros. Não estou falando através de metáforas, mas com a realidade”.
Inquisidor e condenado conheciam-se bem. O teólogo brasileiro nascido em 1938 havia estudado em Munique e Ratzinger, então um sacerdote de mente aberta, era conferencista.
Talvez por isso ou por simples pudor –custa acreditar; porém, no mundo há gente que vive sem olhar para o próprio umbigo- Boff jamais deixou de criticar a Bento XVI por suas ideias e seus atos; porém, não se encarniçou em termos pessoais. E uma vez, há três anos, até chegou a ser profético.
Boff falou com Istoé, em 28 de maio de 2010, segundo se pode verificar em http://bit.ly/b8MQBZ. Disse: “O Papa, para seu bem e para o bem da Igreja, deveria renunciar. Devemos exercer a compaixão. É um homem enfermo, velho, com achaques próprios da idade e com dificuldades para a administração, porque é mais professor do que pastor. Por esse motivo, faria bem se fosse para um convento rezar sua missa em latim, cantar seu canto gregoriano que tanto aprecia, rezar pela humanidade que sofre, especialmente pelas vítimas da pedofilia, e preparar-se para o grande encontro com o Senhor da Igreja e da história. E pedir misericórdia divina”.
Os dois anos e nove meses que se passaram entre a opinião de Boff e o helicóptero de Ratzinger são um lapso curto para os ritmos vaticanos. O certo é que após esse tempo, Ratzinger converteu-se em Papa Emérito e logo predicará em um convento.
Giordano e Galileu
Campo de’Fiori é a única grande praça de Roma sem igreja. A vinte quadras do Vaticano e muito próxima da Piazza Navona, pela manhã funciona um mercado. Senhoras vestidas de negro que parecem recém chegadas do campo vendem frutas, pasta seca e verduras. Broccoli romano, de cor verde claro e cheiro suave, ou broccoli siciliano, escuro e mais forte, que se come aqui. À tarde, as pizzarias e os restaurantes vizinhos ficam lotados e em vez de matronas estão os turistas de vinte e poucos anos, que comem pene rigate e, sobretudo, bebem cerveja como se fosse a última vez.
As senhoras da manhã e os jovens da tarde vivem suas vidas alheios à estátua que está sobre o calçamento de Campo de’Fiori. Mostra a um monge alto e ligeiramente encurvado. O escultor Etore Ferrari pôs-lhe um rosto com traço decidido e conseguiu que as dobras da batina pareçam continuar movendo-se. Debaixo, uma frase em italiano: “A Bruno – Secolo da lui divinato, qui dove Il rogo arse” (O século que ele pressagiou (está) aqui, onde o fogo ardia”.
Em 1600, o napolitano de 52 anos, que havia sido monge dominicano foi queimado por ordem da Santa e Geral Inquisição no mesmo lugar onde hoje está a estátua. Foi queimado vivo como herege. “Tremei mais vós ao anunciar esta sentença do que eu ao recebê-la”, disse em seu alegação antes de morrer. Entre outras ideias, sustentou a centralidade do sol, da mesma forma que fez Copérnico, e desafiou a centralidade do papa. Jamais, nos 413 anos desde sua execução, a hierarquia da Igreja pediu perdão ou voltou a incluí-lo de alguma maneira em seu seio.
A instalação da estátua foi em si mesma uma grande batalha, no século XIX. Promovido por personalidades de toda a Europa, desde Victor Hugo até Mijail Bakunin, a homenagem a Bruno só se concretizou no monumento de Campo de’Fiori em junho de 1889. E o papa da época, Leão XIII, inclusive, ameaçou sair, ostensivamente, de Roma nesse dia. Somente não o fez quando o governo italiano o advertiu que, caso deixasse a cidade, seria melhor não voltar.
Trezentos anos antes dessa polêmica, na Inquisição, o julgamento foi conduzido pessoalmente pelo Cardeal Roberto Belarmino, o mesmo que obrigou Galileu Galilei a retratar-se do heliocentrismo, em 1616, para não acabar torturado e incinerado como Bruno.
O pontífice, sumo
Belarmino não era um simples chefe de torturadores, mas um teórico fino e um sutil funcionário da Santa Sé. Em seu Tratado sobre a potestade dos sumos pontífices nos assuntos temporais, de 1610, disse que o papa pode opor-se a quem politicamente possa pôr em perigo à Cristandade. Em meio à crise da Igreja e o nascimento da Reforma Protestante, Belarmino atualizou a doutrina do papa Gregório VII, que, em 1075, deu o grande giro na construção da Igreja como monarquia absoluta, ao estabelecer que ao pontífice “é lícito depor aos imperadores”, que tem o direito exclusivo de depor ou repor bispos e que “pode eximir aos súditos da fidelidade aos príncipes iníquos”.
O investigador Jean Touchard escreveu em seu clássico livro ‘História das Ideias Políticas’, que “o movimento iniciado por Gregório VII é irreversível”. E explicou: “A centralização romana e a refundação administrativa (com a organização da Cúria, que é seu principal elemento) farão do bispo de Roma o Soberano Pontífice, dignidade ou autoridade que os papas dos séculos precedentes não conseguiram nunca assegurar de forma duradoura”.
Quando Boff sentou-se por última vez na cadeira de Giordano e Galileu, a Congregação para a Doutrina da Fé continuou trabalhando até que, um ano depois, pediu que ficasse em silêncio.
Na web está a notificação dos inquisidores a Boff. Pode ser consultada em: http://bit.ly/YEk3j0.
Vale à pena o esforço de ler alguns parágrafos inteiros, onde uma visão teológica aparece como um modo de respaldar a construção do poder supremo do Vaticano desde Gregório VII e Belarmino até o último período de João Paulo II (papa com Ratzinger como inquisidor) e Bento XVI. Boff, ao contrário, havia cometido o pecado de cair em “uma concepção relativizante da Igreja” a partir das “críticas radicais dirigidas à estrutura hierárquica da Igreja Católica”. Os parágrafos:
– “A única fé do Evangelho cria e edifica, através dos séculos, a Igreja Católica, que permanece una na diversidade dos tempos e a diferencia das situações próprias nas múltiplas Igrejas particulares”.
– “A Igreja universal se realiza e vive nas Igrejas particulares e estas são Igreja, permanecendo precisamente como expressões e atualizações da Igreja universal em um determinado tempo e lugar. Assim, com o crescimento e pregresso das Igrejas particulares, cresce e progride a Igreja universal; enquanto que, com a atenuação da unidade, diminuiria e até faria decair também a Igreja particular”.
– “Por isso, a verdadeira reflexão teológica nunca deve contentar-se somente em interpretar e animar a realidade de uma Igreja particular; mas, deve tentar penetrar os conteúdos do sagrado depósito da Palavra de Deus, confiado à Igreja e autenticamente interpretado pelo Magistério”.
– “A práxis e as experiências que surgem sempre de uma situação histórica determinada e limitada ajudam o teólogo e o obrigam a tornar o Evangelho accessível ao seu tempo. No entanto, a práxis não substitui a verdade e nem a produz; mas, está a serviço da verdade que o Senhor nos entregou”.
– “L. Boff se situa, segundo suas palavras, em uma orientação na qual se afirma ‘que a Igreja como Instituição não estava no pensamento do Jesus histórico; mas, surgiu como evolução posterior à ressurreição, especialmente com o progressivo processo de desescatologização’ (p. 129). Por conseguinte, a hierarquia é para ele ‘um resultado da terrena necessidade de institucionalizar-se’, ‘uma mundanização’ ao ‘estilo romano e feudal’ (p. 70). Daí se deriva a necessidade de uma ‘mudança permanente da Igreja’ (p. 112); hoje deve surgir uma ‘Igreja nova’ (p. 110 e passim), que será ‘uma nova encarnação das instituições eclesiais na sociedade, cujo poder será simples função de serviço’ (p. 111)”.
– “Não resta dúvida de que o Povo de Deus participa na missão profética de Cristo (cf. LG 12); Cristo realiza sua missão profética não somente por meio da hierarquia; mas, também, por meio dos leigos (cf. LG 35). Porém, é igualmente claro que a denúncia profética na Igreja, para ser legítima, deve estar sempre ao serviço da edificação da própria Igreja. Não só deve aceitar a hierarquia e as instituições; mas, também, cooperar positivamente à consolidação de sua comunhão interna; além disso, o critério supremo para julgar não só seu exercício ordenado, mas também sua autenticidade, pertence à hierarquia (cf. LG 12)”.
LG é Lumen Gentium, Luz dos Povos, uma das Constituições emanadas do Concílio Vaticano II, que se realizou entre 1962 e 1965 e atualizou a Igreja. Ratzinger foi um de seus secretários. Boff enlaçou o Concílio com a Teologia da Libertação que, nos anos 60, foi abraçada por muitos sacerdotes, religiosos e leigos na América Latina e no mundo.
Segundo constas na notificação da Congregação para a Doutrina da Fé, na sessão de 1984, com Boff, Ratzinger foi assistido como atuário por um argentino, Jorge Mejía. Mejía havia sido diretor da revista católica argentina ‘Criterio’.
A era do gelo
Em 1992, quando deixou o hábito, sentiu que estava chocando, em suas palavras, “contra uma muralha”, Boff disse que “a forma atual de organização da Igreja (que nem sempre foi a mesma na história) cria e reproduz desigualdades”.
Quando a Congregação o citou, Boff buscou e obteve a cobertura pastoral dos Cardeiais, do arcebispo de Fortaleza, Dom Aloísio Lorscheider e do arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, ambos franciscanos e simpatizantes da doutrina de opção pelos pobres. A sanção a Boff poderia ter sido também uma resposta a esse grupo de bispos brasileiros. A história posterior talvez seja uma prova de que a maçada tinha múltiplos destinatários, porque nenhum deles foi substituído por bispos da mesma linha; mas, por conservadores.
Na última quarta-feira, outro teólogo, o suíço Hans Kung, uma figura chave para os teólogos da libertação, escreveu no The New York Times uma coluna na qual se perguntava se era possível uma primavera vaticana.
Kung, que foi companheiro de estudos de Ratzinger e trabalhou com ele como teólogo no Concílio Vaticano II, há cinquenta anos, assinalou que o Vaticano pode ser comparado a outra monarquia absoluta, a Arábia Saudita, apesar de que esta tem somente 200 anos de antiguidade. Também mencionou três reformas do Gregório VII para conformar o “sistema romano”: um papado “centralista-absolutista”, “um clericalismo compulsivo” e “a obrigação do celibato para sacerdotes e outros membros do clero secular”.
Nem sequer o Concílio Vaticano II, segundo Kung, limitou o poder da Cúria, “o corpo de governo da Igreja”. E nos pontificados de João Paulo II e Bento XVI houve, além disso, “um retorno aos velhos hábitos monárquicos da Igreja”.
Apesar de que, como símbolo, em 2005 o papa dialogou quatro horas com Kung, “seu pontificado esteve marcado por colapsos e más decisões”. Por exemplo, “irritou as igrejas protestantes, os judeus, os muçulmanos, os indígenas da América Latina, as mulheres, os teólogos reformistas e os católicos partidários de uma reforma”. E reconheceu a Sociedade de São Pio X, dos seguidores do arquiconservador arcebispo Marcel Lefebvre, e também ao bispo Richard Williamson, que negou o Holocausto. Para não falar dos abusos de crianças e jovens por parte de clérigos que o papa encobriu quando era cardeal. Ou de fatos revelados nos VatiLeaks, com “intrigas, lutas pelo poder, corrupção e deslizes sexuais na Cúria, que parecem ser a razão principal que levou Bento XVI a renunciar”.
Kung escreveu que “nessa situação dramática, a Igreja necessita um papa que não viva intelectualmente na Idade Média, que não encabece nenhum tipo de teologia, constituição da Igreja e liturgia medievais”. O papa necessário deveria voltar à democracia, seguindo “o modelo da cristandade primitiva”.
O exemplo alemão reflete algumas tensões. “Uma pesquisa recente mostra que 85% dos católicos da Alemanha estão a favor de que os sacerdotes possam casar-se; 79% a favor de que os divorciados possam voltar a casar-se na Igreja; e 75% apoiam que as mulheres possam ser ordenadas”, diz Kung.
Após perguntar-se se a Igreja será capaz de convocar um novo Concílio reformista ou a uma Assembleia de bispos, sacerdotes e leigos, Kung tira essa conclusão: “Se o próximo conclave chegasse a eleger um papa que siga o mesmo, velho, caminho, a Igreja nunca experimentará uma nova primavera; mas, cairá em uma nova era do gelo e correrá o perigo de ficar reduzida a uma seita crescentemente irrelevante”.
Nesse caso, a cadeira de Giordano, Galileu e Boff será um vestígio tão ou mais forte do que o trono de Pedro.
* Martín Granovsky é Professor do seminário “Brasil actual” no Instituto del Servicio Exterior de la Nación del Ministerio de Relaciones Exteriores de Argentina e conhecido colunista de Página/12. Publicou em 3 de março, este artigo. Nestes dias falar-se-á muito sobre a eleição do Papa e as necessárias reformas da Cúria e mesmo da estrutura absolutista do governo central da igreja. Este trabalho ajuda a entender esse fato e seu eventual desfecho que poderá ser trágico para os cristãos. L. Boff
Tradução: ADITAL
Fonte: http://www.adital.com.br/?n=cjf7