Qual foi a importância histórica das mulheres negras no samba?

 

Imagem: Pixabay.

Por Ana Júlia Gennari.

O samba é o ritmo símbolo de resistência da cultura negra. E as mulheres negras foram essenciais para que ele pudesse seguir existindo no período pós-escravidão. Se não fosse por elas, o samba não existiria hoje.

A origem do samba no Brasil é incerta. Mas todas as possíveis explicações apontam que as raízes do gênero estão na África e foram trazidas pelos negros escravos no período colonial brasileiro.

No entanto, pouco tempo após seu surgimento, o ritmo esteve ameaçado de extinção. Não muito depois da abolição da escravatura, foi sancionada a Lei da Vadiagem (1941), que considerava ociosidade como crime e permitia a prisão de pessoas que andassem nas ruas sem documentos.

Isso afetava diretamente os homens negros que estavam desempregados, muitas vezes sem teto e sem nenhuma possibilidade de serem contratados devido ao forte preconceito racial da época.

“O período pós-abolicionista marcou a forte perseguição de quaisquer sonoridades, sotaques, danças e religiosidades afro-brasileiras, que visavam manter tradições que a sociedade brasileira queria tanto apagar. Nesse contexto, a importância das mulheres negras foi fundamental, porque além de manterem economicamente suas famílias — já que continuaram a trabalhar como empregadas domésticas nas casas grandes –, foram essenciais para a resistência do samba. No Rio de Janeiro, a Tia Ciata, que hoje seria o que é comumente conhecido como mãe de santo, se destaca como memória coletiva. Na sua casa acontecia o samba que era proibido, onde nomes como Pixinguinha, Sinhô e tantos outros se conheceram e puderam compor.”

Kelly Adriano de Oliveira, doutora em ciências sociais pela Unicamp, afirma que tanto as mulheres quanto a religiosidade afro-brasileira tiveram um grande papel para que o samba conseguisse resistir, porque era dentro dos terreiros das casas das tias baianas — cujo símbolo ficou marcado em Tia Ciata –, no espaço privado e escondido, que o samba podia acontecer.

Não à toa, a valorização da ala das baianas nas escolas de samba é uma forma de homenagear não apenas Tia Ciata, mas a memória de todas as tias baianas do samba.

Mulheres pioneiras na história do samba

A antropóloga conta que apenas depois da década de 30 o samba passou a ser aceito como cultura popular, reforçado por Getúlio Vargas “com o movimento de valorização do que era brasileiro, o que faz o Brasil o Brasil, e a tentativa de incorporar uma falsa democracia racial, de um país que supostamente aceita sua negritude e suas raízes”.

“Assim que saiu do privado onde se mantinha como resistência e foi para o âmbito público como símbolo nacional, as mulheres passaram a ter menos participação nesse processo, por causa de todo aparato machista da época, em que rua não era lugar de mulher, dentro outras questões… Daí começa a predominância masculina nos espaços de samba”

Um marco feminino dentro na história do samba, em meio toda essa imensa dificuldade, é a Madrinha Eunice, uma mulher cuja memória de luta é imensurável. “Ela foi a primeira mulher a presidir uma escola de samba, a Lavapés de São Paulo, que surgiu na verdade mais como um cordão carnavalesco”, contextualiza Kelly.

Porém, só mesmo depois da década de 60 que mulheres puderam ter alguma visibilidade dentro do espectro musical do samba e aí começam a surgir nomes vindos do Rio de Janeiro, como Clementina de Jesus e Dona Ivone Lara – a segunda que é, na opinião de Kelly, o principal símbolo desse contexto.

Dona Ivone Lara se apresenta

“Ela foi a primeira mulher a participar da ala de compositores de uma escola de samba, a Império Serrano, no Rio de Janeiro, ao final de 1960. Sua importância extrapola os ‘locais de samba’, e ela alcança respeito enquanto compositora e instrumentista na chamada MPB.”

O papel das intérpretes para a difusão e popularização do samba, principalmente Clara Nunes — com pele clara, mas ascendência negra –, Alcione, Leci Brandão e Beth Carvalho, que amadrinhou muitos sambistas, também foi essencial para a cultura musical brasileira.

Cenário atual do samba para as mulheres

O samba continua sendo hoje um gênero musical no qual há a predominância de homens, tanto dentro da indústria, como nos espaços onde ele é tocado popularmente.

“A abertura do samba para a participação das mulheres, principalmente negras, continua difícil e, embora sempre haja nomes em destaque, como Mariene de Castro, Fabiana Cozza e Teresa Cristina, ainda temos muito pouco”, lamenta Kelly.

Como forma de seguir resistindo – e existindo – nesse cenário, algumas sambistas independentes vêm se organizando em grupos e rodas de samba só para mulheres. O grupo paulista Sambadas é um exemplo disso.

“Não é preciso conhecer tudo de samba pra saber que à sombra de sua ‘amistosidade’ se escondem muitos conflitos. O preconceito de gênero é um deles. Mesmo protagonizando a história dessa manifestação popular, muitas cantoras, compositoras, líderes de escola de samba etc , foram, e são, caladas”, afirma Carolina Nascimento, compositora e violonista do grupo.

Carol, que mora no Jardim Icaraí em São Paulo, região do Grajaú, tem 25 anos e conta que o Sambadas começou a se organizar em março de 2015 e desde então as oito mulheres que compõem o grupo se reúnem semanalmente para conversar, ensaiar e fazer samba. “Ainda não temos local fixo de apresentação, os eventos e as respectivas informações são publicadas em nossa página do Facebook”, conta.

Grupo Sambadas se reúne toda semana

Ao ser questionada sobre a importância do samba para a mulher negra e a sua representatividade dentro do gênero, Carolina Nascimento reforça o machismo e racismo ainda muito vivos na nossa sociedade.

Ela afirma já ter tocado em diversas rodas onde a presença de homens era majoritária, e, por isso, pôde presenciar o desprezo com o qual a mulher é tratada nesses espaços ? seja na letra da música, na ausência de mulheres tocando ou no tratamento despendido àquelas que ousam tocar, cantar ou compor.

“Levantar a questão racial torna essa discussão ainda mais necessária. A mesma iniciativa midiática que pretendeu colocar no esquecimento os sambistas negros da cidade de São Paulo ? Geraldo Filme, Madrinha Eunice, Zeca da Casa Verde, Talismã, Toniquinho Batuqueiro, entre outros ? evidenciando figuras que condiziam com o perfil de paulistano “de bem”, vende hoje uma ideia de mulher do samba que não representa a mim, minhas amigas e familiares. A nossa sorte, e também azar deles, é que quando se fala em resistência não há exemplo de mais força do que a luta do povo negro, sobretudo das mulheres.”

Outra integrante do grupo, Kelly Buarque de Hollanda, de 38 anos, moradora de Osasco, que toca cavaquinho e canta no Sambadas, também contou que uma das maiores dificuldades enquanto mulher sambista é o preconceito machista ao tocar em rodas de sambas masculinas:

“Quando chegava em rodas de samba com homens, senti muita hostilidade por parte deles. Não gostavam da minha presença, não era bem recebida, me olhavam feio e recusavam-se a aceitar meu dom. Demorou muito tempo para que eu fosse respeitada nesse meio. E só depois que percebi que esse incômodo era fruto de puro machismo, porque eu tocava melhor que eles e porque lugar de mulher dentro do samba não é tocando, mas sambando, né?!”

Durante toda nossa conversa, ficou perceptível como o histórico de resistência do samba para a cultura negra sobrevive fortemente dentro da força dessas sambistas mulheres e negras.

“Os negros fizeram do samba uma forma de contar suas histórias, questionar a realidade, amenizar as dores e festejar as alegrias, e o fizeram contrariando interesses de uma elite poderosa. O verdadeiro samba, aquele que valoriza a tradição e não a moeda, sempre foi resistência”, afirma Carol.

O que falta – e muito – na visão de ambas, porém, é a representação da mulher negra na indústria musical e na mídia. Para finalizar Carol lamenta: “Enquanto a nossa visibilidade não for meio de enriquecer os mais ricos, continuaremos nos deparando com globelezas e outros padrões que com certeza não são os nossos”.

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