Por Tali Feld Gleiser, para Desacato.info.
As notícias que chegam ao mundo sobre a situação no Brasil são bastante confusas. A grande mídia tem sido cautelosa em analisar o processo como um golpe de Estado. Falamos da imprensa-empresa, essa que nunca defende os direitos dos povos, e a que, infelizmente, molda a opinião da maioria dos habitantes desse planeta.
Por outro lado, fica difícil entender o que acontece por aqui: parlamentares e políticos com processos na Justiça, alguns comprovadamente corruptos, são os que estão julgando Dilma Rousseff, presidente eleita pelo voto popular. Dilma não responde a nenhum inquérito, nem tem contas bancárias no exterior, enquanto Eduardo Cunha, quem conduziu o patético espetáculo na Câmara de Deputados é acusado de múltiplos casos de corrupção. Tudo isto acontece com a cumplicidade dos grandes meios e o Poder Judiciário.
Dilma Rousseff não cometeu crime, como afirmam especialistas em Direito e o Ministério Público Federal[1], entre outros. O mau uso do impeachment é uma ruptura institucional. E, sem crime, estamos diante de um golpe de Estado[2]. Este tipo de golpe “suave”, começou em 2009 em Honduras com a derrubada do presidente Manuel Zelaya, seguiu no Paraguai em 2012, com a destituição de Fernando Lugo, onde, igual que no Brasil, a lei permite que parlamentares se constituam em especialistas em direito, sem sê-lo[3]. Estes golpes ocorreram com a mão não tão invísivel dos Estados Unidos.
Afastada a presidente Dilma, quem assumiu a presidência interina é Michel Temer do PMDB, partido de centro-direita (estas classificações são sempre perigosas), com o qual o PT, partido de Dilma, fez uma aliança que deixou insatisfeitos muitos militantes e simpatizantes do partido.
As ações internas de governo de Michel Temer apontam para medidas neoliberais: cortes nos planos sociais, na saúde, educação, retirada de direitos dos/as trabalhadores, privatização de empresas estatais, e a venda (leia-se dar de presente) do pré-sal, gigantesco reservatório de petróleo e gás natural que poderia tornar o Brasil num dos maiores produtores e exportadores de petróleo e gás do mundo.
Esta onda neoliberal que açoita a Pátria Grande, de novo, tem como objetivo, além das medidas contra os/as trabalhadores, realinhar os países mais ou menos progressistas, que em 2005 disseram não à ALCA, sob a órbita e influência dos Estados Unidos. Uma nova ALCA está sendo construída com a Aliança do Pacífico, integrada pelo Chile, Peru, México e Colômbia. A Argentina de Macri já demonstrou seu interesse e é provável que o Brasil de Temer siga a mesma política. Trata-se de deslegitimar os organismos de integração como o Mercosul e outros, criados a instância, especialmente, do Comandante Hugo Chávez, como a CELAC e a UNASUL.
Wikileaks divulgou em maio deste ano que Michel Temer fora informante da embaixada dos Estados Unidos em 2006[4]. Isso já traça um perfil do político de 75 anos, cujo pai foi um imigrante libanês do povoado de Btaaboura. Uma das primeiras medidas do presidente interino foi fechar as possibilidades para os refugiados sírios. O governo da presidente Dilma tinha facilitado o ingresso de sírios com o outorgamento de um visto especial para entrar ao Brasil. Cerca de dois mil refugiados chegaram ao país[5].
Em 9 de junho passado, o Ministro das Relações Exteriores, José Serra (PSDB) candidato à presidência derrotado em 2002 por Inácio Lula da Silva e em 2010 por Dilma Rousseff, ameaçou com rever o voto do Brasil na 199ª Sessão do Conselho Executivo da Unesco de 15 de abril desse ano. Votada um dia antes, a resolução sobre o patrimônio cultural nos Territórios Ocupados, entre outros pontos, solicita que Israel garanta o acesso dos/as palestinos à Esplanada das Mesquitas. A decisão foi aprovada por 33 votos a favor, com 6 votos em contra, 17 abstenções e 2 ausências[6].
Em nota do Ministério, manifesta-se o desagrado com “que a decisão não faça referência expressa aos vínculos históricos do povo judeu com Jerusalém, particularmente o Muro Ocidental, santuário mais sagrado do judaísmo”. Este fato é considerado pelo Itamaraty como “um erro, que torna o texto parcial e desequilibrado”. E mostra seu apoio “aos acordos vigentes entre Israel e Jordânia para a administração” dos lugares santos da Cidade Velha de Jerusalém (ocupada por Israel desde 1967). O governo (interino) brasileiro diz que revisará o voto a favor caso as “deficiências apontadas na referida decisão não sejam sanadas em futuro exame do tema pela Unesco”.
Segundo a assessoria do Itamaraty, a nota se concentra nos itens 19 e 20 do documento, que tratam sobre o status de patrimônio mundial da Unesco conferido à Cidade Velha de Jerusalém e sobre as “medidas unilaterais israelenses” sobre o acesso ao local. Os países que votaram contra a resolução não gostaram do uso do termo “potência ocupante” no texto, em referência a Israel[7].
Por outro lado, o sionismo pode se considerar contemplado com três representantes no governo interino: No Ministério da Defesa, está Raul Jungman; no setor da Inteligência, Sergio Etchegoyen; e no Banco Central o israelense-brasileiro Ilan Goldfajn[8]. Estamos falando em sionismo e não sobre judaísmo. Sempre aparecem os que querem confundir as pessoas igualando os termos. O sionismo é uma ideologia que apoia o Estado de Israel supremacista e racista e o judaísmo, uma religião composta por várias culturas. Nem todos os judeus são sionistas e nem todos os sionistas são judeus.
É justo esclarecer que também o governo Dilma teve ministros sionistas, como Jaques Wagner (PT) no Ministério da Defesa que, em 2015, declarou ao receber o então embaixador de Israel no Brasil: “Fiquei feliz com a visita do embaixador de um país que é nosso parceiro estratégico”[9]. No mesmo ano, o governo brasileiro recusou o nome do novo embaixador nomeado por Israel: o colono nascido na Argentina, Dany Dayan. Movimentos sociais e entidades no Brasil também rejeitaram a designação de Dayan por que as “ações do nomeado, [são] claramente violadoras das leis internacionais e dos direitos mais básicos do povo palestino[10]. ” Com certeza foi uma vitória para a diplomacia brasileira, mas insuficiente como para que o país adote uma posição clara em defesa dos direitos humanos do povo palestino. Como diz Miko Peled: “Algumas pessoas podem argumentar que é um passo na direção certa. Mas não é, e se fosse, o tempo de pequenos passos na direção certa acabou faz muito. Agora é hora de ações sérias, de desafios sérios. Israel tem uma longa história de apoio e fornecimento de armas a ditadores e assassinos na América latina. É hora de que a América latina expulse Israel para sempre. Nenhum embaixador israelense deveria pôr o pé em nenhuma capital latinoamericana[11]“.
Durante o massacre israelense a Gaza de 2014, foram alguns governos latino-americanos os que tomaram iniciativas para condenar os crimes de guerra da entidade sionista. Embaixadores foram chamados, declarações públicas foram realizadas. Mas, em geral, tudo dentro da chamada “teoria dos dois demônios”[12], que iguala, neste caso, a potência ocupante, que tem o quarto exército mais bem equipado do mundo, com o ocupado faz 68 anos que é o povo palestino, que não tem exército, nem força aérea, nem sequer um Estado. Apesar do Estado palestino ter sido reconhecido por mais de 130 países (dentro das fronteiras de 1967 e não das originais de 1948)[13], entre os quais, logicamente, não se encontra Israel.
Yasser Arafat, líder histórico da OLP, reconheceu o direito do Estado de Israel “a existir em paz e segurança”, numa carta enviada ao primeiro ministro Itzhak Rabin em 1993[14]. Israel não só não retribuiu, como aumentou a repressão, continuou confiscando terras palestinas para o assentamento de colônias (todas ilegais de acordo com a Lei Internacional), começou e segue até hoje com a construção do muro (também ilegal segundo o Direito Internacional) e continua aprofundando o sistema de apartheid e controle sobre cada aspecto da vida dos/as palestinos/as, sempre tratados como terroristas.
O governo interino de Michel Temer já começou a aplicar a Lei Antiterrorismo, aprovada pelo Congresso e sancionada pela presidente Dilma. Antes das Olimpíadas, a Polícia Federal prendeu dez pessoas por “atos preparatórios de terrorismo”. O ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, disse que as “pessoas foram presas por se ‘batizarem’ no Estado Islâmico, uma em cada estado brasileiro”. De acordo com o ministro, o batismo é um juramento de lealdade ao grupo extremista. O ministro reiterou que não houve contato dos investigados com membros do Estado Islâmico, apenas um juramento nos grupos no Telegram e Whatsapp. As prisões foram feitas com base na lei antiterrorismo”. Moraes finalizou a coletiva de imprensa afirmando que tinham acabado as possibilidades de um ataque terrorista durante os Jogos Olímpicos[15].
O ministro da Defesa, Raul Jungmann, declarou que a prisão dos suspeitos de terrorismo “foi para demonstrar que temos capacidade e que a punição será muito dura. É um efeito dissuasório”[16]. O que ele não disse é que se aproveitaram da crescente islamofobia para instalá-la no Brasil e assim seguir a agenda dos Estados Unidos e aliados. (O aumento da compra de armamento israelense testado na repressão contra o povo palestino merece um artigo à parte. O Brasil é um dos cinco maiores importadores de armas do regime do apartheid.)
Essa mesma Lei Antiterrorismo poderá ser aplicada para criminalizar os defensores dos direitos humanos do povo palestino, como já está acontecendo na Espanha, França, Estados Unidos ou na Argentina. Os membros do movimento BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções a Israel) que tem conseguido conscientizar cada vez mais pessoas sobre a importância dessa ferramenta são um dos alvos que o sionismo quer atingir. A campanha BDS é pacífica e serve como pressão à entidade sionista, que viola sistematicamente os direitos humanos do povo palestino e não cumpre as resoluções da ONU. A comunidade internacional é cúmplice porque prefere fechar os olhos e, no caso dos Estados Unidos, também contribuir com bilhões de dólares para manter andando a máquina genocida do Estado de Israel.
“O movimento BDS tira a máscara da narrativa israelense[17].” E por isso o governo de Israel começou a destinar abundantes recursos para combater o movimento, porque está perdendo milhões de dólares em investimentos e a sua imagem já não é a mesma. As pessoas não engolem mais que o vitimário e potência ocupante discurse que é a eterna vítima. Aqui tem uma vítima só e essa é o povo palestino. Israel tem toda uma equipe dedicada a “catar” ativistas e ações do BDS e tentar por todos os meios possíveis que os responsáveis sejam punidos. Israel ameaça até bancos alemães com sanções se eles oferecerem serviços a grupos ligados ao BDS[18]. Também tem reclamado do Facebook por ser “um monstro” que age contra a segurança israelense e incita ao terrorismo[19], quando Israel prende palestinos e palestinas que se expressam contra a ocupação sionista nessa rede social[20].
Israel não deve ter gostado nada do cancelamento por parte do estado da Bahia do acordo com a empresa israelense Mekorot[21], responsável pelo roubo da água palestina. A pressão de ativistas e organizações sociais ligadas à campanha BDS surtiu efeito mais uma vez.
As vitórias do BDS no ano passado foram muitas. (Ver: BDS em 2015: Sete formas em que nosso movimento marcou novos rumos em contra do colonialismo e o apartheid israelenses). Mas temos que nos preparar porque a repressão aos movimentos sociais aumentará, sempre enquadrada nas diretrizes dos Estados Unidos e poderemos sofrer retrocessos por causa do apoio dos novos governos às ações criminosas de Israel. Mesmo assim, os defensores dos direitos humanos do povo palestino continuaremos do lado das vítimas, até que a Palestina seja livre, do rio Jordão até o Mar, e continuaremos chamando de Golpe o que a imprensa brasileira chama de impeachment.
Referências:
[1] http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/05/03/presidente-dilma-nao-cometeu-qualquer-crime-que-justifique-o-impeachment-afirmam-juristas
[2] Impeachment sem crime é golpe e retrocesso institucional
[3] É certo que o impeachment sem crime passará no Senado, mas a democracia ainda tem uma última chance.
[4] Wikileaks afirma que Michel Temer foi informante dos EUA.
[5] Temer manda deixar refugiados sírios fora do Brasil.
[6] Votos a favor: Argélia, Argentina, Bangladesh, Brasil, Chade, China, República Dominicana, Egito, França, Guiné, Índia, República Islâmica do Irã, Líbano, Malásia, Ilhas Maurício, Marrocos, México, Moçambique, Nicarágua, Nigéria, Omã, Paquistão, Catar, Federação Russa, Senegal, Eslovênia, Sudão, África do Sul, Espanha, Sri Lanka, Suécia, Togo, Vietnã. Votos em contra: Estônia, Alemanha, Lituânia, Holanda, Reino Unido da Grã Bretanha e Irlanda do Norte, Estados Unidos. Abstenções: Albânia, Camarões, Costa do Marfim, El Salvador, Grécia, Haiti, Itália, Japão, Quênia, Nepal, Paraguai, República da Corea, Saint Kitts y Nevis, Serbia, Trinidad y Tobago, Uganda, Ucrânia. Ausentes: Gana, Turcomenistão.
https://unispal.un.org/DPA/DPR/unispal.nsf/0/478CB772EE6415A385257EF4005A8B44
[7] Não há mudança de posição sobre Palestina, diz Itamaraty.
[8] Ministros do golpista Temer: aumento do lobby sionista?
[9] “Israel é nosso parceiro estratégico”, diz ministro da Defesa Jacques Wagner.
[10] Manifesto pela rejeição de embaixador nomeado por Netanyahu.
[11] O enfrentamento entre o Brasil e Israel é sério?
[12] Podemos considerar como exceções Cuba, que não tem relações diplomáticas com Israel desde a década de 1970, a Venezuela e a Bolívia.
[13] ¿Qué países reconocen a Palestina? (MAPA)
[14] Carta a Yitzhak Rabin, Primer Ministro de Israel
[15] PF prende 10 pessoas por batismo no Estado Islâmico e atos preparatórios de terrorismo
[16] ‘Prisões foram para dissuadir outros terroristas’, diz ministro
[17] Como as táticas da não-violência ameaçam a narrativa do estado de Israel
[18] Israel amenaza a bancos alemanes con sanciones si ofrecen servicios a grupos del BDS
[19] Israel afirma que Facebook es un arma que incita el odio
[20] Israel condena a 45 días de cárcel a joven palestina por publicación en Facebook.
[21] Após pressão de movimentos sociais, Bahia cancela acordo com empresa israelense