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Os Estados Unidos viviam a “pior nevasca do século” e um dos mais prestigiosos jornais do mundo, o The New York Times, publicava “Como a mudança climática pode sobrecarregar as tempestades de neve“. No Brasil, o drama dos norte-americanos virou piada e motivo para negar a existência das mudanças climáticas no YouTube, plataforma que não tem políticas de conteúdo para combater o negacionismo das mudanças climáticas.
O projeto Mentira Tem Preço mapeou dois vídeos entre os mais vistos no Brasil em canais de extrema-direita na última semana de dezembro de 2022. Foram mais de 270 mil visualizações na semana em que Marina Silva aceitou ser ministra do Meio Ambiente do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e anunciou, em entrevista, que a pasta ganharia “mudanças climáticas” no nome.
Outro vídeo é do jornalista Alexandre Garcia, ex-apresentador da CNN demitido por defender o uso de medicamentos sem eficácia no tratamento da Covid-19. Agora na equipe da Jovem Pan News, Garcia é um dos citados no inquérito do Ministério Público Federal sobre a disseminação de desinformação. Na live em seu canal, Garcia diz: “Vocês foram muito assustados pelo aquecimento global. Vai acabar o mundo, a temperatura vai subir. Gente, já morreram 62 nos Estados Unidos, de frio”.
“O nome disse é pseudociência intencional, e veio para ficar”, diz o cientista Ricardo Galvão, que acaba de assumir a presidência do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). Galvão foi demitido da presidência do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) no governo de Jair Bolsonaro por divulgar dados que indicavam alta do desmatamento.
COMO FAZEMOS O MONITORAMENTO:
O projeto Mentira Tem Preço, realizado desde 2021 pelo InfoAmazonia e pela produtora FALA, monitora e investiga desinformação socioambiental. Nas eleições de 2022, checamos diariamente os discursos no horário eleitoral de todos os candidatos a governador na Amazônia Legal. Também monitoramos, a partir de palavras-chave relacionadas a justiça social e meio ambiente, desinformação sobre a Amazônia nas redes sociais, em grupos públicos de aplicativos de mensagem e em plataformas.
A fórmula de sucesso desse raciocínio que termina ludibriando a opinião pública, diz Galvão, é jogar uma hipótese científica, sem explicar o método ou suas conclusões, nas redes sociais de maneira que quem não seja um especialista no assunto não tenha insumos para questionar. O método é utilizado pela extrema direita em todo o mundo. Essa desinformação gera ansiedade por respostas rápidas e pouco complexas que os cientistas têm dificuldade para responder. “Nem sempre uma resposta a um pseudocientista cabe em um fio do Twitter ou nos stories do Instagram.”
“Os eventos extremos, como ondas de calor, frio, secas ou chuvas, são indicadores claros das mudanças climáticas”, afirma o climatologista José Marengo, um dos grandes especialistas mundiais no tema. Ele é coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), instituição ligada ao governo federal.
Por isso, eventos como os ciclones-bomba dos Estados Unidos —ou, no caso do Brasil, as torrenciais tempestades de verão mais concentradas— vão ficar mais frequentes, aponta Marengo. “No verão, quando vêm as ondas de calor, ninguém se lembra muito de criticar o aquecimento”, diz o especialista peruano radicado há décadas no Brasil. “Se você fizer uma média, por exemplo, das temperaturas no inverno, elas estão mais quentes.”
Tanto o canal de Garcia como o de Japa são monetizados, o que significa que Garcia, Junior e o YouTube podem lucrar com o negacionismo das mudanças climáticas. Isso não deveria ter acontecido segundo as próprias políticas de monetização e anúncios sobre mudanças climáticas atualizadas em 2021. Desde então, passou a ser proibida a geração de receita com conteúdo e anúncios que contradizem o consenso científico sobre a existência e as causas das mudanças climáticas. Sobre ter conteúdos negacionistas das mudanças climáticas na plataforma, não houve avanço.
“Isso inclui material que se refere às alterações no clima como se fossem mentira ou um golpe, com afirmações negando que as tendências de longo prazo mostram um aumento na temperatura global, e dizendo que as emissões de gases do efeito estufa ou as atividades humanas não contribuem para esse cenário. Após análise, os vídeos em questão tiveram a monetização suspensa por infringirem as diretrizes de conteúdo adequado para publicidade do YouTube”, afirma a empresa por meio de nota.
A reportagem não conseguiu contato com Garcia e Junior. O vídeo de Japa foi removido durante a apuração da reportagem.
COMO COMBATER A PSEUDOCIÊNCIA
Galvão lembra bem de quando entrou em contato com a pseudociência intencional da extrema-direita, representado na figura do astrólogo e ideólogo Olavo de Carvalho (1947-2022). Há alguns anos, um ex-aluno o procurou para saber como responder a Carvalho, que dizia em um vídeo que a Teoria da Relatividade de Albert Einstein estava errada. “Eles [os negacionistas da extrema-direita] usam um ponto importante do método científico”, explica Galvão.
“A teoria ou o modelo científico tem que ser testada, isso faz parte do próprio processo da ciência, para sabermos se ela é falsa ou não. Se você segue o método científico, você precisa provar que algo é verdadeiro ou, então, mostrar que aquilo pode ser falseado. Mas, segundo os negacionistas, o método científico é uma hipótese como outra qualquer, e esse é um problema sério agravado pela circulação dessas desinformações nas plataformas digitais.”
A desinformação em geral, e principalmente a relacionada a ciência e meio ambiente, incluindo a agenda climática e energética, faz parte de um processo já consolidado no Brasil mostram pesquisas sobre o tema.
“A desinformação é fruto também da histórica concentração midiática do sistema de comunicações no Brasil. Por isso, um debate sério sobre reforma do sistema comunicacional e do fortalecimento da comunicação pública também é um caminho urgente para sair do labirinto da desinformação”, afirma Lori Regattieri, pesquisadora do Netlab da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Para a especialista em desinformação digital, no caso específico do desmatamento, a solução também passa pelo fortalecimento do ecossistema das mídias regionais. “Principalmente na própria região do arco do desmatamento, com o objetivo de promover iniciativas de jornalismo regional comprometidas com a pluralidade de vozes da própria comunidade, promovendo informação e expondo a população a conteúdo consolidado pela ciência e pelas pesquisas desenvolvidas na agenda de clima e meio ambiente”, diz Lori.
Para ela, em termos práticos, o caminho para enfrentar a desinformação digital passa necessariamente pelo amadurecimento do PL 2630. “O chamado PL das Fake News precisa retornar a reflexões sobre a dinâmica de consumo informacional no Brasil, para que esteja conectado às demandas contemporâneas do ecossistema de notícias diante dos desafios estruturantes das redes sociais e aplicativos de mensagens. A transformação digital do ponto de vista das comunicações precisa considerar questões econômicas, pois o celular é um dos principais meios de interação com esse ecossistema de informação”, diz Lori.
Também entra nessa seara, diz a pesquisadora, a responsabilização de todos os atores envolvidos na cadeia da desinformação. “É um debate sobre a responsabilização desde as plataformas até indivíduos. Precisamos pensar que atores serão responsabilizados. Não é apenas a minha posição individual, mas as empresas também podem ser responsabilizadas ativamente no combate à desinformação.”
No caso de Galvão, mesmo com todos os desafios, ele conta que seu ex-aluno não ficou sem resposta para rebater Olavo de Carvalho em seu podcast. “Eu disse: ‘olha, diga aos seus seguidores do Instagram que, se eles usam GPS, se não fossem as correções relativísticas da teoria de Einstein, que fazem a correção do relógio do satélite com o horário do relógio que está na Terra, o erro de medição do GPS seria da ordem de 10 km’. E mandei mais três referências onde isso é explicado de forma mais detalhada e acessível para leigos. Ele fez isso e foi um sucesso de audiência.”
Essa reportagem faz parte do projeto Mentira Tem Preço – especial de eleições, realizado por InfoAmazonia em parceria com a produtora Fala. A iniciativa é parte do Consórcio de Organizações da Sociedade Civil, Agências de Checagem e de Jornalismo Independente para o Combate à Desinformação Socioambiental. Também integram a iniciativa o Observatório do Clima (Fakebook), O Eco, A Pública, Repórter Brasil e Aos Fatos.
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