Protagonistas de conflito histórico, Araupel e MST têm atuações opostas na pandemia

Enquanto movimento de camponeses ultrapassa 3.100 toneladas de alimentos entregues, madeireira, que fatura US$ 70 milhões por ano, faz marketing em cima da doação de apenas um ventilador pulmonar; instituições disputam território no Paraná

Camponeses ocupam portão de acesso da empresa Araupel, em 2015 (Foto MST-PR)

Por Mariana Franco Ramos.

Esta notícia saiu na mídia: a madeireira Araupel, dona de um faturamento de mais de US$ 70 milhões em 2018 (R$ 392 milhões, na cotação atual), doou um ventilador pulmonar para o Hospital Cristo Rei, de Quedas do Iguaçu, no centro-oeste do Paraná. O gerente da planta do município, Itamar Antônio Signori, foi pessoalmente à unidade, no início de abril, entregar o aparelho.

Houve uma espécie de cerimônia, com direito a foto e divulgação da ação por parte da assessoria de imprensa da fábrica. O portal local Cantu publicou matéria a respeito. “Todos devemos fazer nossa parte para enfrentar esse desafio global”, destacou o diretor-executivo da empresa, Norton Fabris, em referência à pandemia de Covid-19. A parte da Araupel, publicizada, foi a doação do equipamento.

Doação de um ventilador pela Araupel a hospital rendeu matéria na imprensa. (Foto: Divulgação)

Esta outra notícia não saiu na mídia — ao menos, não na mídia comercial. No Dia Internacional do Agricultor e da Agricultora Familiar, 25 de julho, 5 mil famílias doaram 80 toneladas de alimentos, nas regiões central, norte e sudoeste do Paraná. Os camponeses vivem em vinte comunidades, espalhadas em sete municípios, que compõem o maior complexo de reforma agrária da América Latina, formado em cima de terras públicas griladas pela Araupel na década de 70.

O agricultor Jonas Nathã Fures, de 26 anos, do acampamento Dom Tomás Balduíno, em Quedas, conta que as famílias doaram parte do que produzem para comer: hortaliças, feijão, arroz, milho e mandioca. “Graças a Deus, comida a gente tem bastante na roça e consegue dividir”, afirma ele, que ajudou a coordenar a ação.

Fures destaca a parte humana das partilhas. “As pessoas que participam e se envolvem se tornam seres humanos melhores”, opina. “Esse é o resultado da luta pela terra. Não pode num país como o Brasil, que é auto-suficiente em tudo o que produz, ter gente passando fome”.

A ação do Paraná faz parte da campanha nacional de solidariedade do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que, desde o início de abril, entregou mais de 3.100 toneladas de comida sem agrotóxico em todo o país. A iniciativa do estado foi a maior realizada pelo movimento em um único dia. Só as famílias do complexo da madeireira partilharam 97 toneladas, sendo 80 toneladas na ação de julho e 17 toneladas em doações menores, nos meses anteriores.

TEMER LEVOU SÓ 6 TONELADAS DE ALIMENTO, MAS GANHOU ESPAÇO 

Membro da coordenação nacional do movimento, Kelli Mafort critica a campanha Solidariedade S/A, veiculada diariamente no Jornal Nacional, da Rede Globo, exibindo doações de grandes empresas que doam parte irrisória do que possuem – o que sobra, mais precisamente:

— Os lucros dos bilionários brasileiros aumentaram, o que é um escândalo. A gente denuncia isso, enfatizando que nossa solidariedade é de classe, do povo ajudando o povo. E também denuncia o Estado, que não é só omisso, é genocida.

Missão chefiada por Temer no Líbano entregou 6 toneladas de alimentos; só em Quedas, MST doou 50. (Foto: Ministério da Defesa)

Ainda segundo ela, o discurso de criminalização do MST, amplamente repercutido por veículos da grande mídia, cai por terra quando as pessoas entendem a proposta pedagógica do movimento. “Na nossa cabeça nunca foi apenas doação de comida”, comenta. “É uma solidariedade que provoca e convoca as pessoas a se organizarem. Instigar as pessoas a enfrentarem esse privilégio de classe é nossa principal mensagem”.

Jonas Fures faz uma comparação também com a recente missão humanitária brasileira no Líbano, após a explosão no porto de Beirute, no início de agosto. Na ação, chefiada pelo ex-presidente Michel Temer, a convite do presidente Jair Bolsonaro, foram doadas 6 toneladas de alimentos. A viagem contou com ampla divulgação na imprensa.

“Fizeram um espetáculo, mas nós, só aqui em Quedas, cidadezinha pequena, doamos mais de 50 toneladas”, lembra. O município do oeste paranaense possui pouco mais de 33 mil habitantes. Conforme o camponês, ao contrário das empresas, para quem “R$ 1 milhão é o caixa do dia”, os trabalhadores doam algo que é fruto do próprio trabalho.

DISPUTA POR ÁREA SE ARRASTA POR MAIS DE DUAS DÉCADAS

Responsável por 15% da madeira industrializada exportada pelo Brasil, a Araupel trava há 24 anos uma disputa com o MST. Quando foi fundada, em 1972, ela adquiriu cerca de 80% de um latifúndio de aproximadamente 104 mil hectares dentro das Fazendas Rio das Cobras e Pinhal Ralo, originalmente pertencentes à União.

A história do confronto foi tema de reportagem do Brasil de Fato em 2016, ano em que a ocupação das terras pelo MST completou vinte anos. A marcha de 17 de abril de 1996 — Dia Internacional da Luta pela Reforma Agrária — foi eternizada pelo fotógrafo Sebastião Salgado, que registrou o momento em que uma multidão de camponeses cruzava as porteiras da fazenda, em Rio Bonito do Iguaçu.

Fotógrafo brasileiro imortalizou as primeiras ocupações nas áreas da madeireira (Foto: Sebastião Salgado)

Em agosto de 1997, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) formalizou o assentamento Ireno Alves dos Santos, o maior do Brasil até 2002, quando surgiu, também em Quedas do Iguaçu, o assentamento Celso Furtado, com 1.200 famílias. Nos anos seguintes, novos acampamentos e assentamentos foram criados na região.

Em agosto de 2017, em resposta a uma ação judicial movida pelo Incra três anos antes, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) declarou nulos os títulos de propriedade da madeireira nas áreas ocupadas pelo MST.

Jonas Nathã Fures conta que os camponeses estão no aguardo da decisão final. “A gente sabe que, mesmo com a vitória na Justiça, leva um tempo, porque o Incra não tem dinheiro para fazer mais assentamentos”, afirma. “Faltam políticas públicas e orçamento destinado à reforma agrária”.

O agricultor relata ainda que, embora no momento não haja um confronto direto com a madeireira, o histórico do assentamento é de muita luta e resistência. “Já tivemos mortes de dois companheiros aqui no Dom Tomás, por causa da Araupel”, lamenta.

De acordo com a assessoria de imprensa do movimento no Paraná, atualmente 5.156 famílias estão acampadas ou assentadas no complexo. Com 83 mil hectares, as antigas terras da Araupel abrangem seis municípios: Quedas do Iguaçu, Laranjeiras do Sul, Nova Laranjeiras, Porto Barreiro, Espigão Alto e Rio Bonito do Iguaçu.

Mariana Franco Ramos é repórter do De Olho nos Ruralistas |

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