Propaganda de Margarina

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Um texto sobre cotas em universidades e jornalismo mal-feito -ou feito para manter o pior do status-quo

Por Fernando Evangelista.*

Quando o telefone tocou, às nove horas da manhã de sábado, eu estava deitado na rede da varanda, pensando na morte da bezerra, sem preocupações presentes ou compromissos futuros. Sábado de sol, casa limpa e arrumada, grama cortada no jardim – um típico dia de propaganda de margarina.

Pensei em não atender, mas a curiosidade venceu a preguiça, infelizmente. Era um colega jornalista, velho conhecido, sujeito vaidoso e arrogante. Perto dele, Romário é a Madre Teresa de Calcutá.

– Querido, bom dia, tudo em paz? É o seguinte: tô fechando uma matéria sobre cotas e preciso de um negro pobre, bem pobre, que seja gay.

– Como?

– O ideal é que seja alguém contrário às cotas. Quero fechar com chave de ouro este texto.

Se tem uma coisa que me dói os ouvidos é a expressão “chave de ouro”.

– Alô? Tá me ouvindo?

– Estou – respondi. – Agora, neste momento, eu não me lembro de ninguém assim, com esse, como dizer, com esse perfil.

– Te esforça um pouquinho, você conhece bastante gente da periferia – ele insistiu. – É matéria importante, encomendada diretamente pelo chefe dos chefes, pra edição de domingo. A gente quer mostrar que a política de cotas é equivocada e injusta.

– Calma aí. Você tá fazendo uma matéria para comprovar uma ideia do dono do jornal?

– Linha editorial, sabe como é. Não há nenhum problema nisso porque eu também considero essa coisa de cotas errada. Tem que ter igualdade de condições. Você não acha?

– Acho que você deveria ler uma entrevista curtinha, bem simples, feita pela minha colega Júnia Puglia, com Luiz Eduardo Soares. É sobre este assunto e é muita boa – falei da entrevista consciente de que ele não a leria.

– Vou ser sincero com você – ele disse. Com todo o respeito, esses intelectuais de esquerda é que complicam as coisas. O negócio das cotas não dá certo, tá na cara. Isso vai acabar com a qualidade nas universidades, isso é só esmola. Não resolve o problema, meu querido.

Se tem outra coisa que me irrita é ser chamado de “meu querido” nesse tom professoral, meio autoritário, como quem diz sem dizer: “bobinho, você é ainda muito jovem para entender, vá brincar e deixe os assuntos sérios para os adultos experientes”.

E o adulto experiente do outro lado da linha prosseguiu, destilando bobagens e preconceitos. Deixei que falasse até cansar e então ele se despediu e foi atrás de fontes capazes de preencher aspas já criadas.

Em seguida, ainda perplexo com o diálogo, liguei o computador e me deparei com a notícia de que o jornalista Luiz Carlos Azenha, ex-funcionário da rede Globo, hoje repórter da Record e blogueiro, foi condenado a pagar 30 mil reais a Ali Kamel, diretor da Central Globo de jornalismo.

Em seu blog Viomundo, Azenha denunciou a suposta manipulação da emissora nas eleições presidenciais de 2006. A Globo estaria com Geraldo Alckmin, contra Lula, da mesma forma em que esteve com Collor em 1989, com FHC em 1994 e 1998 e com Serra em 2002. Alguma novidade?

A novidade – e é isto que tem incomodado a Globo – é que Azenha era repórter de destaque na emissora. Acabara de voltar de Nova York, onde havia sido correspondente. Nas eleições de 2006, foi encarregado de cobrir Geraldo Alckmin. Suas denúncias, portanto, teriam como base coisas que ele viu e ouviu nos bastidores da empresa.

O todo-poderoso Ali Kamel, por sua vez, moveu a ação alegando uma campanha difamatória promovida por Azenha em seu blog, onde foram publicados 28 posts sobre as eleições de 2006. Feitas as contas, isso representa 0,0034% das notícias divulgadas naquele espaço.

Mas, afinal, o que denunciou Azenha? Entre outras tantas coisas, ele relata: “Ouvi, na redação de São Paulo, diretamente do então editor de economia do Jornal Nacional, Marco Aurélio Mello, que tinha sido determinado desde o Rio que as reportagens de economia deveriam ser ‘esquecidas’– tirar o pé, foi a frase – porque poderiam beneficiar a reeleição de Lula”.

Sobre a ação judicial, ainda de acordo com Azenha, “o objetivo da emissora é claro: intimidar e calar aqueles que são capazes de desvendar o que se passa nos bastidores dela, justamente por terem fontes e conhecimento das engrenagens globais”.

Depois do telefonema do meu conhecido e dessa notícia, fiquei pensando que as coisas não andam boas para quem ainda acredita no poder transformador da informação e num jornalismo ético, independente e crítico. Alguma novidade? Não, apenas a impressão de que esse debate foi marginalizado, como se não fosse mais importante ou só interessasse, quando muito, a professores e estudantes de comunicação.

Lembrei-me do que disse Raul Seixas sobre parte da nossa imprensa: “São tão perigosos quanto os donos do poder. São tão doentes quanto a sociedade”. Voltei à rede e o tempo tinha mudado – o céu azul ficou cinza, estava cheio de nuvens. O jardim já não parecia tão florido e a casa me pareceu um pouco desarrumada.

Moral da história: vida de margarina só existe na publicidade.

Entretanto, muita gente, muita gente mesmo, inclusive a parcela da sociedade que se considera informada, descolada e viajada, acredita nas coisas que a tevê vende – sejam sabonetes, ideias, margarinas ou candidatos. Alguma novidade?

Não, mas são essas pessoas que vão dizer, com peito estufado, que as cotas não prestam e que a grande mídia, defensora da democracia e da liberdade de expressão, é isenta. E assim segue o Brasil, seguimos nós, sob a proteção do bispo e deputado federal Marco Feliciano, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.

Aleluia, irmãos, sejamos todos bem-vindos ao fundo do poço.

*Fernando Evangelista é jornalista, trabalha na Doc Dois Filmes. Cobriu três guerras no Oriente Médio e conflitos na Europa e América do Sul. Mantém a coluna Revoltas Cotidianas, publicada toda terça-feira.

Fonte: Nota de Rodapé.

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