Projeto lei de licenciamento ambiental ameaça 45 terras indígenas

O novo texto do projeto de lei para alterar o licenciamento ambiental no país ameaça diretamente 45 Terras Indígenas (TIs) que já possuem projetos de infraestrutura ou de mineração planejados ou em operação. É o que mostra uma análise inédita publicada, na “Semana do Índio”, pelo ISA e elaborada por seu Programa de Monitoramento de Áreas Protegidas. A nota técnica mostra que, no total, há pelo menos 223 TIs cujos procedimentos de demarcação ainda não foram concluídos e que estão ameaçados pela proposta ruralista – porque podem vir a ser desconsiderados em eventuais processos de licenciamento.

O levantamento expõe ainda os interesses econômicos e as empresas que podem se beneficiar com as mudanças da legislação. No total, são 42 projetos de infraestrutura e 193 processos minerários que, segundo o projeto, deixariam de ter a exigência de parecer da Fundação Nacional do Índio (Funai) para a aprovação. São hidrelétricas, linhões, rodovias e ferrovias que podem rasgar os territórios e afetar para sempre a vida dessas populações. Também foram identificadas invasões por fazendeiros, posseiros e grileiros em 65 terras. Alguns desses projetos, inclusive, só não foram efetivados ainda porque a Funai entendeu que as áreas seriam afetadas de forma ilegal e, por isso, o órgão ambiental responsável deu parecer pela inviabilidade ou pela suspensão da licença.

A análise também traz o ranking das áreas que há mais tempo aguardam a conclusão da demarcação. Há comunidades que esperam há mais de 30 anos a caneta do governo para garantir seus direitos.

Há duas propostas ruralistas no Congresso com teor bem semelhante sobre o assunto: o Projeto de Lei (PL) n.º 3729/2004 e o Projeto de Lei do Senado (PLS) 168/2018. O primeiro já está pronto para ser votado no plenário da Câmara. O segundo, apresentado recentemente pelo senador Acir Gurgacz (PDT-RO), está na Comissão de Constituição e Justiça do Senado.

O texto de Gurgacz prevê que só seriam consideradas no licenciamento as TIs homologadas. Neste caso, os impactos socioambientais de obras e empreendimentos sobre todas as áreas em etapas anteriores no complexo procedimento demarcatório seriam desprezados e as comunidades afetadas não seriam ouvidas. O problema é grave porque, caso essas obras e empreendimentos tornem-se fatos consumados, o mais provável é que as demarcações sejam paralisadas de vez ou mesmo arquivadas, já que os territórios tendem a ser degradados ao ponto de não conseguir mais garantir a sobrevivência física e cultural das populações indígenas.



Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) já declarou a inconstitucionalidade de se restringir a proteção das terras indígenas, discriminando-as pela etapa do processo de demarcação. Para a corte, ao demarcar uma terra, o Poder Público meramente declara um direito preexistente, de modo que todas as terras indígenas merecem proteção, e não apenas aquelas homologadas.

“Eventual aprovação do projeto constituirá ofensa direta ao STF. É inadmissível que a omissão do governo em reconhecer uma terra indígena, tal como determina a Constituição, sirva de fundamento para que o licenciamento desconsidere a existência dessa terra e de seu povo. É um duplo ônus, totalmente inconstitucional”, afirma Mauricio Guetta, advogado do ISA.

Empresas e projetos

Dentre os possíveis beneficiados com o novo PL, estão grandes empresas como a Andrade Gutierrez, que teve um projeto para a construção da Usina Hidrelétrica Pompeu barrado após parecer da Funai. Segundo o órgão, a barragem impactaria 750 hectares da Terra Indígena Kaxixó, em Minas Gerais.

Outro caso emblemático é o da Usina Hidrelétrica São Luis do Tapajós. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) negou a licença para a construção da usina em 2016, depois de considerar o impacto na TI Sawré Muybu, ainda não homologada. Se o novo licenciamento for aprovado, o território, habitado por índios Munduruku, seria inteiramente destruído pelo impacto de três usinas hidrelétricas (São Luiz do Tapajós, Jatobá e Cachoeira do Caí) e por solicitações de mineração, que ocupam quase a totalidade de suas terras.



Aldeia Sawré Muybu, do povo Munduruku, que seria alagada caso hidrelétrica no rio Tapajós fosse liberada 

Outro exemplo é o da Usina Hidrelétrica Pedra Branca. As empresas interessadas (Companhia Hidro Elétrica do São Francisco, Construtora Norberto Odebrecht S.A., Desenvix S.A. e Engevix S.A.) também tiveram que cancelar o projeto após o entendimento da Funai de que a obra impactaria a TI Tumbalá, na Bahia.

O levantamento do ISA detectou terras indígenas com requisição de mineração em 100% do seu território. É o caso da TI Jauary (AM) que tem prospecção de mineração pela empresa Potássio do Brasil em todos os 24.831 hectares de sua terra. Algo similar ocorre com a TI Murutinga/Tracajá (AM), que tem prospecção de mineração das empresas HJH Mineração do Brasil, Potássio do Brasil e Falcon Metais em seus mais de 13 mil hectares.

As TIs Lago do Limão (AM), Sissaíma (AM), Paquiçamba (PA) e Paukalirajausu (MT) também tem projetos minerários previstos em quase todo o seu território. Segundo o levantamento do ISA, esses projetos atingiriam 97%, 95%, 89% e 86% das áreas dessas terras, respectivamente. Ou seja, com a aprovação do novo projeto de licenciamento, esses territórios seriam inteiramente dominados pela mineração, com consequências drásticas para os povos indígenas que ali vivem, cursos d’água e biodiversidade.



Aldeia Muratu dos Juruna na Terra Indígena Paquiçamba 

Outras mudanças propostas nos dois projetos ruralistas são a dispensa de licenciamento para atividades agropecuárias, independentemente de porte, localização e potencial poluidor, o que também já foi declarado inconstitucional pelo STF (ADI n.º 1086-7); a criação do modelo de “licenciamento autodeclaratório” e a flexibilização das exigências ambientais ao repassar para estados e municípios a definição sobre o grau de rigor da licença ambiental.

“Estamos diante da inconstitucionalidade das inconstitucionalidades. O projeto permite que empreendimentos com impacto ambiental sejam instalados até mesmo dentro de Terras Indígenas sem que a Funai e os povos indígenas impactados tenham sequer a oportunidade de se manifestar”, critica Maurício Guetta. “O que os empreendedores farão se o projeto for aprovado? Passarão por cima dos povos indígenas? Óbvio que não. Isso não interessa a ninguém e só trará insegurança jurídica e judicialização. É um escárnio”, completa Guetta.

A Justiça já suspendeu alguns empreendimentos por entender que haveria afetação de terras indígenas. É o caso da Hidrelétrica Paiagua, no rio Sangue, e que atingiria a TI Manoki, no Mato Grosso. A licença foi suspensa por decisão judicial após o empreendimento ter sido liberado pela Secretaria do Meio Ambiente do Estado, contrariando parecer da própria Funai.

Outro ponto problemático dos dois projetos ruralistas é que os empreendedores seriam desobrigados a avaliar os impactos socioambientais indiretos decorrentes de obras e empreendimentos, como o aumento do desmatamento no entorno, mesmo em TIs homologadas. “As alterações propostas no PL de licenciamento ambiental se inserem em um contexto de falta de participação social e transparência em projetos de impacto socioambiental”, explica Antonio Oviedo, do Programa de Monitoramento do ISA.

Campeãs de espera

O PL do licenciamento é igualmente ameaçador para terras indígenas que estão na fila de demarcação há mais de 30 anos. O Decreto 1.775, de 1996, que institui as regras sobre demarcação das Terras Indígenas no Brasil, determina que a análise do Ministério da Justiça deve levar, no máximo, 30 dias.

Mas não é o que ocorre na prática. O levantamento do ISA identifica as terras indígenas que há mais tempo aguardam pela homologação. As campeãs, as TIs Aldeinha (MS), Capivara (AM) e Guapenu (AM), aguardam há 33 anos a finalização do processo de demarcação.



A nova lei do licenciamento, se aprovada, porém, pode colocar em xeque as esperanças dessas comunidades de enfim ter a garantia de suas terras. Isso porque, com o “fato consumado” dos empreendimentos legalizados, o processo de demarcação pode ser anulado.

A TI Capivara possui dois processos minerários (autorização de pesquisa), que cobrem a totalidade de seus já reduzidos 650,6 hectares. A TI Guapenu possui três processos minerários uma autorização de pesquisa e dois requerimentos de pesquisa), que incidem numa área de 2.377,2 hectares da TI, mais de 97% de sua extensão.

Pior presidente para os índios

Os projetos do “licenciamento flex” tramitam num contexto já extremamente adverso para os direitos indígenas. Michel Temer é o presidente que tem o pior desempenho nas demarcações (leia aqui) desde a redemocratização do país. Ele assinou apenas um decreto de homologação de TIs. Além disso, em sua gestão, apenas duas áreas foram declaradas por ministros da Justiça.

Em 2017, o presidente oficializou o Parecer 001 da Advocacia-Geral da União (AGU). O parecer restringe drasticamente o direito dos índios à terra ao obrigar a administração pública a aplicar o que foi decidido pelo STF no julgamento da TI Raposa-Serra do Sol (RR). A medida contraria decisão do próprio STF que deixa claro que os parâmetros do caso não devem ser aplicados obrigatoriamente a outros casos.

A redução no orçamento e a precarização da estrutura da Funai também são apontadas como fatores para a paralisação na demarcação das TIs. O orçamento total do órgão caiu de mais de R$ 740 milhões para menos de R$ 540 milhões, entre 2013 e 2017. O orçamento atual fica próximo ao de dez anos atrás. Em março de 2017, o presidente Michel Temer assinou um decreto que extinguiu 87 cargos comissionados, de 770 então existentes no órgão indigenista, quase 12% do total.

*Texto publicado originalmente em 26/04/2018 no site do ISA

Foto: Thiago Gomes / Agência Pará/Fotos Públicas

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.