Por Amauri Eugênio Jr.
No início desta semana, a pororoca de chorume a céu aberto das redes sociais mostrou que pais de alunos do Colégio Santo Agostinho, no Rio de Janeiro,ficaram pistolas porque os filhos leriam o livro Meninos sem Pátria, obra escrita em 1981 por Luiz Puntel e que faz parte da Série Vaga-Lume, e fizeram um abaixo-assinado para retirá-lo da lista de livro dos alunos do sexto ano.
A obra, que há tempos é um clássico no ambiente escolar e marcou a vida de uma porrada de gente na casa dos 30 e poucos anos, retrata a vida de crianças cujas famílias precisaram fugir do Brasil em plena ditadura militar. De acordo com mães e pais que ficaram horrorizados com a obra, o conteúdo critica a época barra-pesada da história do país e contém “valores de esquerda”. Talvez eles imaginem que os filhos o lerão enquanto alguém tocará a Internacional Comunista durante a aula e que a doutrinação ideológica rolará solta. Resultado: a escola cedeu à gritaria e suspendeu a leitura “para fins de atividades escolares”.
Procurado pela VICE, o Colégio Santo Agostinho optou por não se pronunciar a respeito da retirada do livro Meninos sem Pátria da lista de leitura dos alunos.
Episódios como este não são inéditos. Em março deste ano, pais de alunos do 3º ano do Sesi, em Volta Redonda (RJ), tentaram boicotar a obra Omo-Oba – Histórias de Princesas, pois não queriam que a molecada tivesse contato com “cultura africana”. Por sorte, o livro foi mantido na grade curricular. Além disso, volta e meia há quem ressuscite fake news relativas ao inexistente “kit gay”, com direito a até mesmo mentira contada em horário nobre sobre o livroAparelho Sexual & Cia. Isso sem contar que, volta e meia, a turma do barulho do Escola Sem Partido tenta aprontar altas confusões.
Mas, sem mais delongas, o que simboliza a sistemática tentativa de censura promovida por pais para manterem os filhos [cof cof] seguros e livres de uma suposta doutrinação esquerdista? De acordo com Roberta Bento, educadora e fundadora do SOS Educação, projeto para formação de professores e auxílio para famílias colaborarem com os estudos dos filhos, trata-se de risco grande para a formação de crianças e adolescentes, pois os materiais aos quais eles teriam acesso passariam a ser decididos por quem tem outro papel.
“Quando escola decide qual material será usado com o aluno, há embasamento pedagógico e filosófico que deve ser seguido. A família deve caminhar em paralelo [com a instituição], preservando os seus valores, mas não interferindo a ponto de a escola mudar toda a proposta de ensino para tentar agradar alguns pais. Pode parecer ideologia de um lado, mas por outro lado, está restringindo as opções de desenvolvimento que o aluno terá para ser um cidadão crítico”, pondera a educadora.
Derrick Casagrande, sociólogo, mestre em educação e docente da FESPSP (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo), segue a mesma linha de Bento e defende que a censura a determinados tipos de assuntos representa perigo iminente à formação de alunos e à construção de conhecimentos que considerem diversas perspectivas de pensamento. “Vejo que essas práticas e movimentos representam ameaças à formação, pois implicam, a partir das limitações que tendem impor aos professores e, consequentemente, às instituições escolares, no enfraquecimento da formação crítica e reflexiva do aluno.”
Fator Escola Sem Partido
Episódios como os relatados no início desta reportagem remetem ao Escola Sem Partido, movimento criado em 2004 e que ganhou força nos últimos anos, que tem como objetivo representar pais e alunos contrários ao que eles entendem por “doutrinação ideológica” em sala de aula. O Escola Sem Partido caiu nas graças da ala conservadora da sociedade e, ainda que esteja em discussão na sociedade civil, já mostra os primeiros sinais: pais tendem a respaldar-se por essa lógica para fomentar o boicote a assuntos com viés político, religioso e até mesmo sobre sexualidade.
Segundo César Donizetti Pereira Leite, professor do Departamento de Educação, da área de psicologia da educação, do campus de Rio Claro da Unesp (Universidade Estadual Paulista), a não partidarização de determinado ambiente – no caso, o escolar – não é necessariamente algo apartidário.
“Quando admito a perspectiva de que não se pode discutir determinados assuntos, isso é a partidarização de determinado lugar – você toma partido de determinada posição. Isso não é uma escola sem partido, mas com outro partido, que pode ser ideológico, político ou de qualquer outra ordem. Troca-se uma coisa pela outra com a ideia de tratá-la com mais pureza, o que não existe, pois a ideia de neutralidade é impossível. A visão do Escola Sem Partido é a própria negação da democracia e da possibilidade de se viver a multiplicidade de diferenças”, ressalta o docente.
Outro aspecto relativo ao Escola Sem Partido, pontualmente no caso do Colégio Santo Agostinho, é a influência do movimento sobre a motivação dos pais, ainda mais por haver crescimento de onda conservadora, que tem tentado influenciar a análise de episódios históricos no Brasil, como no caso da ditadura militar. Isso sem contar que o episódio poderá justificar novas ocorrências com o mesmo viés.
“Vejo isto como um perigo, pois alunos [que se tornarão adultos] deixarão de ter elementos e reflexões suficientes para formar opinião própria e se posicionar diante das diferentes questões sobre a sociedade”, ressalta Casagrande.
E o papel do professor?
Se o professor representava a figura que detinha o conhecimento e o transmitia aos alunos, hoje, após o saber estar difundido e disponível em diversas fontes – algumas no mínimo distorcidas -, ele passa a ter o papel de tutor, que ajuda o aluno a processar e a criar o próprio caminho para interpretá-la. Para desempenhar esse papel, ele precisa ter (adivinhe?) liberdade de expressão.
“O professor deve ter liberdade de colocar [em discussão] o que acredita em algum momento, mas deve ter consciência de que o que ele acredita é um valor e uma crença dele, e não algo para tentar induzir ou colocar na cabeça do aluno. Esse é um ponto no qual é muito difícil manter o equilíbrio, mas a liberdade de expressão do professor é fundamental e precisa ser mantida”, menciona Roberta Bento.
Logo, quando o professor tem liberdade para colocar o conhecimento em prática e a criança – ou adolescente – vive em ambiente plural, com professores com diversas visões e concepções de mundo, mais ampla será a construção do conhecimento.
Como consequência, restringir o conhecimento é um erro dos mais significativos. “A escola não pode restringir e mostrar apenas uma linha para o aluno por crer naquilo. Isso não é justo com os alunos que estão lá dentro e não é bom para a sociedade, pois haverá sempre a disputa de opiniões em vez de debate que acrescente [crescimento intelectual]. Se cada escola se fecha em uma única visão, o estudante nunca terá visão de mundo completa”, pontua a fundadora do SOS Educação.
Ação e reação
É possível dizer que delimitar quais conteúdos devem ser ensinados resulta na formação de pessoas intolerantes e com diversas formas de preconceito presentes em sua visão de mundo, pois interpretarão fatos apenas por uma perspectiva. “Um aspecto a ser também considerado é que construir o conhecimento de uma única perspectiva faz não ser possível reconhecer as diferenças e a não desenvolver capacidade em favor da tolerância”, detalha Derrick Casagrande.
Por fim, este tipo de iniciativa resulta no apagamento da subjetividade – ou seja, todos pensarão do mesmo modo, que é uma característica de regimes totalitários. E, como a repressão pode fomentar a curiosidade, o tiro da censura pode sair pela culatra. “À medida em que se reprime determinado tipo de comportamento da criança, ela pode reagir àquilo, e o efeito será contrário ao qual a retirada do livro pretende ter”, finaliza César Donizetti Pereira Leite.