Professor, por que você tem falado tanto em ditadura?

Por Ricardo Colturato Festi.*

 A pergunta que serviu de título a este artigo foi feita por um aluno na semana passada. Desde que se iniciou o ano letivo, tanto as minhas aulas para os segundos e terceiros anos do ensino médio, como a maioria das minhas postagens nas redes sociais e no blog que mantenho regularmente abordaram as temáticas relacionadas à ditadura militar brasileira. Nesse sentido, num primeiro momento, achei descabido o questionamento do aluno, visto que, neste ano de 2014, completam-se 50 anos do golpe militar empreendido contra um governo democrático no Brasil o que levou o país a 21 anos de ditadura, ou seja, a justificativa para se trabalhar esse tema é mais que evidente, sem contar que, em decorrência desse cinquentenário, muito provavelmente, os próximos vestibulares se utilizarão dele também.salao-humor-piracicaba-02

Mas depois de uma primeira reação, pautada na obviedade, começou a ficar evidente que a questão era muito mais complexa, o que me remeteu a outra: por que um adolescente entre 15 e 18 anos tem que se preocupar tanto com um regime político que terminou há quase trinta anos, quando, talvez, nem mesmo seus pais haviam nascido?

Por não se tratar de algo tão simples, escrevo este pequeno texto para responder ao meu aluno e refletir sobre a sua problemática. A verdade é que nem a data histórica, muito menos as pressões dos vestibulares são as razões de falar tanto sobre a ditadura. A importância do tema reside não no passado, mas no presente e, sobretudo, no futuro. Trata-se da sociedade em que vivemos e para onde queremos caminhar.

A incômoda questão de Theodor Adorno sobre Auschwitz

Adorno, um intelectual alemão da escola crítica de Frankfurt, publicou, em 1969, um pequeno artigo intitulado “Educação após Auschwitz”[i]. Logo no início do texto, foi enfático ao dizer que a tarefa a priori da educação é que Auschwitz nunca mais se repita. Afirmou que

aquilo foi a barbárie, à qual toda educação se opõe. Fala-se de iminente recaída na barbárie. Mas ela não é iminente, uma vez que Auschwitz foi a recaída; a barbárie subsistirá enquanto perdurarem, no essencial, as condições que produziram aquela recaída. Esse é que é todo o horror. (ADORNO: 1995, 104)

Auschwitz-Birkenau foi o nome dado a uma rede de campos de concentração construídos pelo regime nazista alemão, no sul da Polônia anexada, para exterminar milhões de judeus, homossexuais, comunistas, deficientes, opositores ao regime. Foi a expressão de uma das maiores barbáries orquestradas pela civilização ocidental e instrumentalizada pela máquina burocrática do Estado e pela racionalidade reificada de um conhecimento acumulado. Em plena modernidade, o esclarecimento e a ciência viraram meios de impor os mais cruéis e mesquinhos objetivos de uma sociedade capitalista em seu estágio mais desenvolvido: o imperialismo.[ii]

Para o filósofo, esse fato representou a falência do projeto iluminista, transformando-o em seu contrário, ou seja, ao invés de levar os seres humanos a uma situação de liberdade e bem-estar social, levou-os a uma nova forma de escravização. Adorno, diante dessa situação, dedicou-se a compreender quais foram os mecanismos que fizeram com que esses indivíduos aceitassem, passivamente, ao nazifascismo. Seu olhar voltou-se, então, para a educação e as escolas.

A escola pública, concebida em meio às revoluções burguesas e seus ideias iluministas e liberais, séculos antes da eclosão nazifascista, foi sonhada como espaço de democratização da sociedade, em que todo cidadão teria o direito de acesso ao conhecimento. Mas a contradição da sociedade moderna estaria justamente na utopia desse projeto, uma vez que é desenvolvido no interior de uma sociedade de mercado, marcada pela competição desenfreada e pela divisão de classes. A consequência disso foi a reificação das relações sociais, nas quais o ser humano vale pouco e as mercadorias muito. Nesse contexto, não interessa uma escola de formação humanista e crítica, e sim, apenas, uma que forma técnicos capazes de gerir a sociedade do capital.[iii]

A consequência dessa escola da sociedade reificada é a formação de indivíduos passivos, incapazes de refletirem criticamente por si só e, abertos à adesão a projetos autoritários que justifiquem a ampliação da lógica da sociedade de mercado. Apesar de sua visão pessimista, a questão colocada por Adorno, em seu texto de 1969, não deixa de ser, ainda hoje, de fundamental importância, já que a realidade tem constantemente nos feito lembrar que as barbáries da humanidade continuam presentes e ainda mais potencialmente destrutivas.

A tragédia do povo brasileiro

Voltemos então ao nosso tema e façamos uma analogia com a questão colocada pelo intelectual alemão. Não quero sugerir que a ditadura brasileira tenha sido semelhante ao holocausto nazista, pois há diferenças substancias no contexto histórico e na quantidade de vítimas, mas, ao mesmo tempo, há muitos pontos de contato entre a barbárie europeia e a brasileira. Vê-se isso não apenas nas torturas, nos estupros, nos assassinatos e em toda forma de violência cometida pelos agentes da repressão estatal, mas, também, no silêncio e no medo generalizado frente a um regime autoritário. Há semelhanças, ainda, no fato de que toda sociedade que passou por algo assim, não importa a profundeza ou extensão disso, ficou marcada por muitas gerações.salao-humor-piracicaba-05

Alguém conseguiria imaginar um educador alemão se negando a abordar, em suas aulas, o regime nazista e o holocausto com o argumento de que isso é passado e não tem importância hoje? É óbvio que não! Mas, aqui no Brasil, com certeza, muitos professores sérios ouvem isso da burocracia de suas escolas. É a velha lógica de impor o silêncio e impedir o debate, insistindo em deturpar nossa memória coletiva e consolidar a hegemonia de uma versão conservadora sobre os fatos históricos.

A problematização das barbáries cometidas por uma sociedade em seu passado não se trata de um mero estudo histórico, mas sim de reflexões sobre o presente e, mais ainda, sobre o nosso futuro. A condenação, ainda que moral, dos crimes contra os direitos humanos durante a ditadura é uma condenação contra as torturas cometidas, hoje, no interior das delegacias de polícia ou contra as ações cometidas pelos assim intitulados “justiceiros” ou, ainda, contra as chacinas aos jovens negros e pobres das periferias das grandes cidades, que nos fazem lembrar dos “esquadrões da morte” dos tempos de chumbo (grupo de policiais que saíam as ruas durante a ditadura fazendo “justiça” pelas próprias mãos). Portanto, abordar a ditadura militar nas escolas e nas universidades nos remete a reflexão sobre o que restou desse regime na sociedade contemporânea e, sobretudo, nos abre caminho para a reflexão sobre as razões de nosso país ser marcado por práticas e estruturas autoritárias.[iv]

Nossa sociedade foi marcada desde o seu nascimento pelo autoritarismo, pela opressão e pela dominação de uma pequena camada social, economicamente favorecida, sobre os demais segmentos da população. Não se pode encontrar as raízes disso sem nos remetermos a outro tema pouco abordado nas escolas: o nosso passado escravocrata e o nosso subsequente racismo. Vários intelectuais, como Roberto Schwarz, já apontaram que nenhuma ideia genuinamente liberal de república, democracia e soberania popular poderia florescer, como aconteceu no século XIX, em meio aos grilhões da escravidão[v]. O fato é que quando algumas dessas ideias surgiram (deturpadas) e levaram fim à escravidão, não puderam acabar com a ordem social que se beneficiava daquela escravidão, pois germinaram em frações dissidentes das classes dominantes do período, as quais em nada estavam interessadas numa mudança radical do metabolismo social. Portanto, a república que surgiu logo em seguida esteve marcada pela contradição, deturpação e descaracterização de qualquer projeto democrático liberal burguês. Ao mesmo tempo em que se constituía um imaginário de democracia racial em nosso país, as instituições políticas da primeira república praticavam abertamente seu racismo e impulsionavam formas de branqueamento da população.

Esse projeto de país, imposto pelas classes dominantes desde os tempos da colônia, enfrentou a resistência popular. A nossa tragédia está justamente no fato de que todas as vezes que o povo e as classes subalternas se levantaram para lutar por uma sociedade mais justa, a reação foi brutal. Assim foi com o golpe de 1964, o qual não se tratou apenas de uma reação às políticas de Jango, anunciadas no dia 13 de março na Central do Brasil, mas sim de um golpe contra as camadas populares que se encontravam, naquele momento, fortemente organizadas nas fileiras das Ligas Camponesas, do sindicalismo urbano e rural, do movimento estudantil, dos partidos políticos de esquerda.

A escola enquanto contradição da sociedade de classes

O mais importante sobre os 50 anos do golpe está na reflexão sobre as estruturas de nossa sociedade que permitem a perpetuação da opressão, da exploração e das desigualdades, ou seja, na compreensão de que vivemos numa sociedade dividia por classes sociais e que seu principal objetivo é o aumento dos lucros e não a satisfação dos indivíduos e na problematização do nosso racismo e no entendimento de que uma das particularidades de nossa república é a deturpação das instituições públicas por aqueles que ocupam seus postos para impor seus interesses privados. Longe de uma sociedade construída nas bases liberais-burguesas, continuamos na lógica da casa-grande.salao-humor-piracicaba-06

Dentre essas estruturas e instituições, a escola ocupa um lugar de destaque pela importância que adquiriu em nossa sociedade nesses últimos 50 anos. Ela é parte dos mecanismos de reprodução social, servindo, segundo István Mészáros, “ao propósito de não só fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário à máquina produtiva em expansão do sistema do capital, como também gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes, como se não pudesse haver nenhuma alternativa à gestão da sociedade”[vi].

A escola, para ser um meio de internalização da ordem dominante, precisa não apenas reproduzir as ideias dominantes, mas também produzir corpos disciplinados. Para isso, toda estrutura escolar precisa estar organizada para esse fim: a formação de indivíduos passivos e resignados com a sociedade do capital. Pode-se até desenvolver, em seu interior, certo grau de crítica à sociedade, principalmente entre os estratos mais intelectualizados que ocuparão postos de gestão nessa sociedade, mas não uma crítica radical que aponte para uma superação do capital.

Por isso, nenhuma reflexão sobre a nossa sociedade, no interior das escolas, pode estar dissociada de uma crítica à atual estrutura escolar e seu projeto pedagógico. Aqui reside mais uma questão complexa que divide os teóricos da pedagogia crítica: se a atual escola cumpre a função de reprodução social e se está em seu interior a possibilidade de desenvolver uma crítica a atual sociedade, quem serão os agentes e quais são os limites deles para transformar a escola? Poderão esses sujeitos revolucionar a educação sem revolucionar a sociedade?

A resposta para isso pode estar no fato de que a escola não é um simples “aparelho ideológico do Estado”, pois, dentro desse aparelho, há indivíduos que podem colocar sua reflexão a serviço de uma luta constante pela sua transformação. Por mais limitada que possa ser a autonomia de um indivíduo dentro de uma estrutura autoritária, ainda haverá possibilidades de ação libertadora. Justamente por ser um local de produção intelectual, as escolas e as universidades cumprem, ao mesmo tempo, o papel contraditório de reprodução e crítica. Entretanto, sem uma análise radical da totalidade social, que permita visualizar a relação dialética entre a crítica da estrutura escolar e a crítica da sociedade de classes, não haverá mudanças significativas na educação e na sociedade.

Todo pensamento crítico no interior das escolas se defrontará, de imediato, com a “pedagogia burocrática” dominante, que se resume na preocupação central de “cumprir o programa”. Como definiu Maurício Tragtenberg, a pedagogia burocrática

Não é propriamente tanto para transmitir conteúdo porque a escola é mais um elemento disciplinador, uma prisão, um hospital psiquiátrico tradicional (…) Da mesma forma que o hospital psiquiátrico é disciplinador, a escola é disciplinadora porque ela forma regras de submissão e dominação. A pedagogia burocrática é fundada para isso, porque ela cria aquele elemento submisso que vai ser um submisso na empresa privada. Quem sai da escola e vai para a empresa privada, vai para a empresa pública, que vai ser acostumado a obedecer ordens, e não a se autodirigir. A escola não educa para a autonomia, educa para a submissão. Para ela educar, ela pode educar para a autonomia. Mas ela independe de forças sociais fora dela, que tenham força, no meio social, de se contrapor. Há uma educação para submissão e uma educação para a autonomia e para a autogestão. Mas isso depende de um processo social fora da escola[vii].

Paulo Freire criticou a “educação bancária”, que trabalha com a lógica de inculcar conhecimentos nas cabeças dos alunos tomando-os como agentes passivos do processo educacional, e propôs uma educação que visasse centralmente a autonomia dos alunos.[viii] O problema de sua proposta reside em saber que autonomia é essa, pois o próprio capital incorporou esse discurso em seus objetivos pedagógicos[ix]. É a famosa pedagogia do “aprender a aprender” desenvolvida e implementada nas últimas décadas com as políticas neoliberais. Ou seja, ao mesmo tempo em que se difundia essa concepção pedagógica, se precarizava as condições de trabalho do educador por meio de: baixos salários, alta jornada de trabalho, dificuldades para manter sua formação, constantes problemas psicológicos e de saúde, fragmentação da categoria, rotatividade. Portanto, enquanto se pregava, no discurso, a autonomia do aluno, se tirava, na prática, as condições materiais para a autonomia do professor.

Colocar em debate os 50 anos do golpe e os 21 anos de ditadura militar no Brasil, assim como a reflexão sobre o que nos resta dela hoje, é apenas uma oportunidade para ilustrar e problematizar as grandes questões que fazem do nosso país uma sociedade desigual, racista e opressora. O mais importante num processo educativo que visa a autonomia dos alunos e dos professores é a capacidade que estes adquirem em tomar partido diante da vida. A prática educativa poderá levar a uma prática política transformadora e as escolas e universidades devem ser o local, por excelência, da política e da democracia, começando por colocar abaixo toda estrutura burocrática e autoritária, dando, dessa forma, lugar a um local autogestionado por toda comunidade acadêmica.

A luta pela transformação da educação é apenas parte de uma luta maior por revolucionar a sociedade. É por esses motivos que tenho falado tanto de ditadura, meu querido aluno.


*Ricardo C. Festi é doutorando em Sociologia (UNICAMP) e professor no Colégio Técnico de Limeira (COTIL/UNICAMP). Mantem um blog sobre ensino de sociologia (www.sociolizando.wordpress.com


NOTAS:

[i] Este artrigo fez parte de uma coletânea de artigos reunidos em Palavras e sinais: modelos críticos 2 (Stichworte; Kritische Modelle 2), publicado em 1969. No Brasil, com tradução de Maria Helena Ruschel, foi publicado em 1995 pela editora Vozes. No mesmo livro, ver também “Tabus que pairam sobre a profissão de ensinar”.

[ii] Sobre o conceito de esclarecimento ver Adorno, Theodor e Horkheimer, Max, Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. Também sobre esse tema, pode-se consultar o texto de Sigmund Freud “O mal-estar da civilização” e os textos de Max Weber e sua reflexão acerca do desencantamento do mundo.

[iii] Podemos afirmar que, nas propostas e experiências pedagógicas burguesas, sempre existiu uma tensão entre um projeto utópico humanista e crítico, voltado para alimentar o espírito humano e levar a humanidade a um estágio social e cultural melhor, e uma educação tecnicista e instrumental à serviço do capital. Essa tensão também esteve presente nos projetos pedagógicos soviéticos, mesmo em teóricos mais críticos como Pistrak, pois no estágio da revolução ainda predominava a “necessidade” da superação dos atrasos das forças produtivas.

[iv] Não poderíamos deixar de destacar a instituição brasileira que melhor exemplifica esses resquícios, a polícia militar. Lembremo-nos dos recentes casos do desaparecimento do pedreiro Amarildo e da morte da auxiliar de serviços gerais, Cláudia Silva, arrastada no asfalto por um carro da PM depois de ser baleada num tiroteio no Morro da Congonha, em Madureira. Sem falar no extermínio sistemático de jovens e negros das periferias deste país pela polícia.

[v] Conforme Schwarz, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1992. Outros autores vão retratar esse processo da “revolução burguesa” no Brasil como uma revolução pelo alto ou uma revolução conservadora, em analogia com a via prussiana de Lenin ou a revolução passiva de Gramsci. A ideia é que se muda as instituições do país para impulsionar o desenvolvimento do capitalismo monopolista, sem mexer nas velhas estruturas sociais, como foi o caso do latifúndio e das heranças da escravidão.

[vi] Mészáros, István. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 35.

[vii] Tragtenberg, Maurício. “O Papel social do professor”, In: Educação e burocracia. São Paulo: Ed. Unesp, 2012. p. 111.

[viii] Para as ideias de Paulo Freire ver: Educação como uma prática da liberdade, Pedagogia do oprimido e Pedagogia da autonomia.

[ix] Podemos encontrar em Saviani uma base para a crítica das teorias “crítico-reprodutivistas”. Também vale destacar seu confronto com as políticas que enfatizam simplesmente a qualidade de ensino e se esquecem de combater a estrutura política: “Com efeito, ao enfatizar a qualidade do ensino ela deslocou o eixo da preocupação do âmbito político (relativo à sociedade em seu conjunto) para o âmbito técnico-pedagógico (relativo ao interior da escola), cumprindo ao mesmo tempo uma dupla função: manter a expansão da escola em limites suportáveis pelos interesses dominantes e desenvolver um tipo de ensino adequado a estes interesses”, In: Saviani, Dermeval. Escola e Democracia. Campinas: Ed. Autores Associados, 2008. p. 9.

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