Por Nilton Viana.
“Onde se vive menos e pior é onde se trabalha mais”, diz Mathias Seibel Luce, da UFRGS.
Capacidade de trazer explicações científicas para questões e problemas reais e fundamentar a ação humana tendo como horizonte a transformação. Assim, Mathias Seibel Luce, professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), define a atualidade da Teoria Marxista da Dependência (TDM).
Autor do livro “Teoria Marxista da Dependência (TDM): problemas e categorias, Uma visão histórica”, nesta entrevista concedida durante o lançamento da publicação na Livraria da Editora Expressão Popular, em São Paulo (SP), entre outras questões, o professor explicou o caráter da superexploração em países dependentes como o Brasil. Confira a entrevista abaixo.
Qual a atualidade ou vigência da Teoria da Dependência como instrumento crítico de leitura da realidade da América Latina?
A atualidade ou vigência de toda teoria crítica se mede pela capacidade de trazer explicações científicas para questões e problemas reais e fundamentar a ação humana tendo como horizonte a transformação. A TMD ajuda a explicar porque 80% da população vivendo em favelas são habitantes de países como os nossos. Ou porque os níveis salariais são mais baixos e as jornadas de trabalho mais extensas em nossas economias. Ou porque não basta a industrialização como saída para os problemas sociais de nossos países, como muitos pensavam na década de 1950, pois aqui o capitalismo acirra suas contradições. E isto exige, ainda mais, uma resposta da classe trabalhadora e do povo construindo uma alternativa de poder que abra caminho para a superação da sociedade da mercadoria.
Quais exemplos você pode nos dar sobre a atual crise brasileira com base na Teoria da Dependência?
A crise mundial de 2008 se abateu sobre o Brasil esfumando a alta conjuntural das matérias primas que sustentara momentaneamente um excedente econômico que pôde atender, por um período, interesses de distintas frações de classe. Mas essa relativa estabilidade foi efêmera. E sob um modelo produtivo baseado na especialização desigual na divisão internacional do trabalho e na depredação da natureza. Os primeiros sintomas da crise foram sentidos já desde 2008, quando a massa salarial passou a encolher, ainda que seguisse crescendo o nível do emprego formal. Eram, contudo, empregos mais precários.
Por volta de 2014, a queda dos preços das matérias primas adicionou novos ingredientes. Como em toda crise, os capitalistas pressionam pela elevação (ou retomada) da taxa de lucro, rebaixando o valor da força de trabalho e aumentando a espoliação dos recursos naturais para reduzir o dispêndio de capital em meios de produção e obter lucros extraordinários mediante renda diferencial e o avanço sobre novos domínios da vida.
O golpe de 2016 e a agenda da contrarreforma trabalhista de Michel Temer [MDB] e das federações patronais são uma resposta da burguesia dependente à crise. E a investida de transnacionais como a Nestlé e a Coca-Cola pela privatização da água, forçando por novos negócios em países como o nosso, é outro exemplo desse contexto. Um ensinamento da TMD que se confirma com esta crise é que a dependência pode mudar de forma ou de grau, mas ela somente será superada com o enfrentamento das relações imperialistas, que fincam raízes em nossas economias, exigindo um projeto que questione o capitalismo como um todo.
Qual a principal descoberta da Teoria da Dependência no contexto marxista?
A descoberta da TMD foi demonstrar que o antagonismo capital-trabalho e as contradições entre produção e apropriação de riqueza, entre produção e consumo e entre produção e circulação são acirradas em nossos países latino-americanos. Isto se dá no contexto da economia mundial capitalista e suas relações de desenvolvimento desigual. Aqui, historicamente transformou-se em “regra” – quer dizer, em tendências sistemáticas e estruturais – as transferências de valor expressando relações de intercâmbio desigual, a superexploração da força de trabalho e o divórcio entre a estrutura produtiva e as necessidades das massas. Com essas formulações, a TMD ajuda a desvelar o sentido de exploração redobrada e de soberanias frágeis (tanto do ponto de vista da soberania nacional, como da soberania popular) em nossas nações oprimidas sob as relações imperialistas, que fincam raízes em nossas formações sociais. Assim, a TMD se perfila entre as melhores tradições críticas do marxismo latino-americano, que teve alguns de seus antecedentes em Mariátegui, que pensou a articulação entre a questão agrária e a questão indígena, e no Che, que pensou a necessidade do caráter continental da revolução para promover a emancipação humana em nossa realidade.
Dentro da Teoria da Dependência, você cita a transferência de valor como uma das características das economias dependentes. Quais são as modalidades de transferência de valor?
Como você sublinhou, nossas economias são marcadas por transferências ou perdas de riqueza (valor) mediante a especialização desigual na divisão internacional do trabalho. Grande parte da riqueza produzida com o suor de nossa classe trabalhadora e com a exploração também da fertilidade natural de nossos territórios alimenta a sanha da acumulação e a sede vampiresca das transnacionais e das economias dominantes. Isto não sem o apoio de seus sócios menores, a burguesia dependente, que é integrada e subordinada ao imperialismo: baixa a cabeça para ele, enquanto pisa redobrado nos de baixo, na classe trabalhadora. Existem quatro modalidades para as transferências de valor, que explicamos no livro: 1) a deterioração dos termos de intercâmbio; 2) as remessas de lucros, royalties e dividendos; 3) o serviço da dívida; 4) a apropriação de renda da terra (renda diferencial).
Você pode citar um exemplo de transferência de valor numa economia como a brasileira?
Percebemos essa relação no fato de sermos uma economia que envia anualmente bilhões de dólares para o exterior em remessas de lucros industriais e financeiros das multinacionais e que paga royalties cada vez que utiliza equipamentos como um tomógrafo em um hospital (onde eles existirem e quando a população puder acessá-los)… Ou no serviço da dívida, cujos pagamentos representam uma dedução do salário direto (via impostos desiguais e regressivos) e indireto (via cortes de verbas nas políticas sociais) para canalizar o fundo público para remunerar os lucros fictícios dos detentores dos títulos da dívida “pública”, uma engrenagem que se retroalimenta inclusive quando há mudança de perfil de dívida externa para interna, com o agravante de sobre ela incidir uma das maiores taxas de juros reais no mundo inteiro.
Os economistas têm chamado isso de passivo externo em reais. E a categoria transferência de valor, da TMD, explica como e porque isso acontece. Um outro exemplo ainda é o Pré-Sal, com a entrega de fatias cada vez maiores para as transnacionais, a despeito de a Petrobras controlar a tecnologia para exploração de águas profundas e, com isso, gerar renda diferencial II, aquela que é obtida mediante aplicação de meios de produção potenciando a extração da fertilidade natural do recurso, neste caso o petróleo. Desse modo, a apropriação de renda diferencial por capitais de economias imperialistas sobre os recursos naturais das economias dependentes expressam relações de intercâmbio desigual inclusive no próprio terreno em que nossas economias possuem maior riqueza em seus diferenciais de fertilidade natural da terra.
O trabalhador numa economia dependente é mais explorado, mais afetado?
Mostramos no livro, a partir de evidências históricas e dados concretos, que a taxa de mais-valia é diretamente proporcional à produtividade numa mesma esfera de economia (sejam as economias centrais, sejam as economias dependentes). Mas quando o assunto é a relação mundial entre as formações sociais imperialistas e as formações dependentes, como é o capitalismo latino-americano, a lógica do capital opera com tendências adicionais. Assim, em nossas economias, que possuem níveis de produtividade inferiores, a burguesia dependente procura compensar sua desvantagem pondo em marcha o regime de superexploração.
Quer dizer, remunerando a força de trabalho abaixo do seu valor e consumindo a energia vital do trabalhador provocando seu desgaste prematuro. Isto, ao final, termina ampliando a taxa de mais-valia, mas não simplesmente por outros expedientes e sim mediante a violação do valor da força de trabalho. Em palavras simples, a superexploração se identifica com duas assertivas: onde se vive menos e pior é onde se trabalha mais! E se vive menos porque se trabalha mais!
Segundo dados da OIT, nos países dependentes, desde o início de sua regulamentação, a duração semanal média da jornada de trabalho historicamente tem estado em torno de 48h ou acima desse patamar, podendo chegar a 55 horas em certas atividades, em países latino-americanos como El Salvador (ou em certas regiões do Brasil); nunca tendo se estabilizado em torno das 40h em nosso continente, como aconteceu nas economias centrais por volta da metade do século XX e que é o patamar que esse organismo internacional que é a OIT preconizou ao ser criado no ano de 1917.
No Brasil, 25% da força de trabalho nas regiões metropolitanas cumpre atualmente jornadas iguais ou superiores a 49h. No comércio, metade dos trabalhadores tem jornada acima de 49 horas semanais. E com a contrarreforma trabalhista do governo golpista de Michel Temer a burguesia brasileira quer legalizar que se chegue até 60h onde assim puder impor!
Ainda segundo dados da OIT, em nossos países o número de pessoas que seguem trabalhando por decisão não voluntária após idade para se aposentar ou porque não conseguem sobreviver com as pensões ou proventos e continuam trabalhando por necessidade é de 48% para a força de trabalho masculina e de 28% para a feminina, ao passo que nas economias centrais essa cifra é, respectivamente, de 19% e 12%. Embora a crise esteja golpeando as condições de vida e trabalho também nas economias centrais, este é um contraste que se mantém.
Você pode nos explicar como se dá essa superexploração dos trabalhadores?
A força de trabalho, na superexploração, além de estar submetida à exploração capitalista em suas determinações mais gerais (mais-valia absoluta e relativa), é também submetida a determinações específicas, que atuam de modo estrutural e sistemático sob as economias dependentes, com o capital apropriando-se seja do fundo de consumo do trabalhador, seja apropriando-se do seu fundo de vida. Se aspectos da superexploração podem ocorrer nas economias centrais em épocas de crise, nas economias dependentes ela é a regra ou assume caráter estrutural. É aqui que essa face se revela nua e cruamente.
A superexploração pode se dar mediante três formas: 1) o pagamento da força de trabalho abaixo do seu valor – que no caso brasileiro podemos ver comparando o abismo entre o salário mínimo corrente e o salário calculado pelo Dieese (salário mínimo necessário); 2) o prolongamento da jornada de trabalho além dos limites normais – como no uso recorrente de horas extras, na necessidade de mais de um emprego para se sustentar, no contingente trabalhando por decisão não voluntária após idade para se aposentar; 3) o aumento da intensidade do trabalho além das condições normais – que tem um de seus indicadores aproximados na ocorrência de acidentes de trabalho, incluindo doenças laborais, invalidez e mortes no ambiente de trabalho. O Brasil, a propósito, é um dos campeões mundiais de acidentes de trabalho/doenças laborais, na 4ª posição.
E a mulher neste contexto é ainda mais explorada?
Sim, em todo o mundo capitalista. Mas aqui, novamente, de forma mais aguda. Segundo a PNAD do IBGE, a mulher trabalhadora – embora fonte do salário principal em 40% dos domicílios no Brasil – recebe em média um terço a menos que o salário dos homens – sem falar no trabalho doméstico não pago, fundamental para a reprodução da força de trabalho e realizado pelas mulheres sob o patriarcado e o machismo. Por falar nisso, além do fardo sexista na manutenção do próprio lar, o contingente feminino da classe trabalhadora encontra nos empregos precários de empregada doméstica uma importante fonte de ocupação – principalmente informal. Conforme o DIEESE, em 2011 havia 6,6 milhões de pessoas em atividade no emprego doméstico, sendo 92% mulheres.
O filme Que horas ela volta, estrelado por Regina Casé, retrata essa dupla opressão de classe e de gênero, que reforça as relações de superexploração. Esse também foi tema de um ensaio de Vania Bambirra, fundadora da TMD, em seu livro inédito “Emancipação da mulher: tarefa de ontem, hoje e amanhã”. E para além da esfera salarial, há que lembrar que o Brasil nos assombra ao despontar na quinta posição no índice mundial de feminicídios, ranking que tem cinco países latino-americanos entre os seis de maior incidência de assassinatos contra a mulher. Isso não é mera coincidência. Essa é mais uma face do capitalismo dependente, que exacerba todas as formas de opressão.
O racismo continua sendo um tema extremamente enraizado na nossa sociedade. Como a TMD pode ajudar no debate a respeito desse tema?
A TMD mostra que um dos fundamentos do regime de superexploração é a exacerbação em nossas economias do que Marx chamou de exército industrial de reserva (mais trabalhadores despojados de meios de produção buscando condições de vida ou competindo por um emprego e compelidos a aceitarem condições aviltantes). No caso brasileiro, a escravidão, além da concentração da estrutura da propriedade – rural e urbana –, acirrou historicamente ainda mais o antagonismo capital-trabalho, em uma intersecção com o racismo estrutural que atuou também decisivamente na configuração das classes sociais. Em apenas 15 anos, entre 1835 e 1850, entrou em nosso território o equivalente a 20% do total de trabalhadores africanos escravizados trazidos para cá nos 300 anos do tráfico de escravos até aquela data!
Enquanto em 1850 na Europa a classe trabalhadora conquistava a lei das 10 horas – logrando impor os primeiros diques de contenção à fome vampiresca do capital – aqui, sob a segunda escravidão, era outorgada a Lei de Terras para impedir que o povo negro tivesse acesso aos meios de produção, com as classes dominantes mirando o cenário futuro do “trabalho livre”. Já sob as relações de assalariamento, um numeroso exército industrial de reserva fez pender sobre o povo negro o duplo fardo da extração de mais-valia em condições de superexploração, conjugada com o racismo estrutural que a reforça e amplia. Estudos demonstram que em nosso país, atualmente, as mulheres negras recebem 40% a menos do que trabalhadores brancos que ocupam a mesma função. E que, no último ano, o aumento da informalidade, que fez crescer os “bicos” ou trabalho por conta, cresceu em 17,6% entre as mulheres negras, contra 10% entre as mulheres brancas.
Ainda que aqui seja geral para a classe trabalhadora, a superexploração no Brasil tem cor e o racismo é um dos veículos da opressão redobrada no país. Além de salários mais baixos, a população negra sofre o racismo estrutural com a violência do Estado. Estudo da ONU aponta que das 30 mil pessoas assassinadas todo ano em nosso país 23 mil são jovens negros. Para além dessas estatísticas, que captam tendências intrínsecas, essa é uma realidade que se sente na carne e na alma no dia a dia: quando a Aracruz Celulose manda passar a patrola sobre terras quilombolas para fazer grilagem, quando uma liderança negra como Marielle Franco é brutalmente assassinada, quando a burguesia diz que lugar de negro é no elevador de serviço… Essa é a face nua e crua do Estado dependente reproduzindo o racismo estrutural que afiança ainda mais as relações de superexploração e faz essa engrenagem andar. A revolução latino-americana, na qual se inscreve a transformação estrutural do Brasil como possibilidade histórica, terá de dar voz e poder aos trabalhadores e trabalhadoras, ao povo negro, aos indígenas e às mulheres ou não será revolução.
Na relação de dependência, você cita a financeirização mundial capitalista. Na prática, como se dá essa financeirização e quais as consequências para a nossa realidade?
Em Dialética da Dependência, Ruy Mauro Marini apontou duas contradições que acontecem no ciclo reprodutivo do capital em nossas economias, que ele chamou de cisões. Uma é a cisão entre produção para o mercado externo e mercado interno e a outra, entre produção para as esferas alta e baixa do mercado interno. O significado dessas contradições é que em nossos países os trabalhadores, que produzem a riqueza, não cumprem um papel da mesma maneira que nas economias dominantes para a circulação das mercadorias (sua realização ou consumo). Isto incentivou historicamente os patrões e o Estado a afiançarem o regime de superexploração, que uma vez instaurado aumenta também a atração de empresas transnacionais que vem se apropriar de massas de valor sob níveis de superexploração.
No livro, apontamos que com o advento a partir dos anos 1970 da subfase do imperialismo que é a mundialização do capital, teve lugar uma terceira cisão, que se agrega às demais. Ela consiste de uma cisão entre as funções dinheiro-mundial e capital-dinheiro e a apropriação de lucros fictícios. Quer dizer: nossas economias não são as que determinam os fluxos internacionais de capitais (função capital-dinheiro), nem controlam moedas-fortes como dólar ou euro (função dinheiro-mundial). E sob a importância crescente da valorização do capital mediante a apropriação de lucros fictícios (derivativos, outros produtos financeiros), se incrementam também as transferências de valor e as contradições na reprodução do capital em nossos países. Theotonio dos Santos, em suas análises sobre a revolução científico-técnica, trouxe elementos para pensar como o aumento da proporção entre máquinas (trabalho morto) e trabalho humano (ou trabalho vivo) gerou, nas relações mundiais, uma enorme massa de capitais sobrantes, à medida que a roda da economia passa a girar mais veloz e precisando em números relativos de menos gente produzindo e consumindo, ao mesmo tempo que concentra mais e mais a riqueza e o consumo.
E, como já esboçado pela teoria do imperialismo, tanto as corporações que possuem o domínio tecnológico e se apropriam de lucros industriais empregam seu fundo de acumulação perseguindo também lucros fictícios (com os quais aumentam sua capacidade de autofinanciamento), como fundos de investimento especializados em lucros fictícios (especulativos) investem também em atividades que produzam riqueza real. Acontece que as economias imperialistas são novamente aquelas que controlam a capacidade de investimento, em mais essa pauta da acumulação (lucros fictícios), enquanto as economias dependentes são submetidas a novos vínculos que ampliam sua subordinação. Nisto consiste a essência da terceira cisão. É assim que a partir da TMD compreendemos as relações de financeirização, não como uma oposição ingênua entre produção e especulação, mas como ambas andam juntas.
Um exemplo concreto é o do agronegócio, expressão do capital financeiro no campo. Grandes capitalistas usam a terra como meio de produção para produzir mercadorias como soja para o mercado mundial e também como ativo dado como garantia junto a bancos para obter empréstimos e, assim, fazer aplicações em produtos financeiros onde obtêm ganhos sob lucros fictícios. Outro exemplo são os fundos de pensão, que podem comprar títulos públicos e também serem sócios em megahidrelétricas e outros empreendimentos. Se a acentuação da financeirização com o capital fictício golpeia empregos e políticas sociais inclusive nas economias dominantes, aqui essa face é ainda mais violenta, com mais espoliação e sofrimento. Por isso é urgente uma auditoria da dívida “pública” e uma reforma radical do sistema bancário e financeiro, sob controle popular, como uma das medidas de uma alternativa de poder para o Brasil.
Como a Teoria Marxista da Dependência avalia os processos neodesenvolvimentistas aplicados por alguns governos na América Latina?
A TMD surgiu de debates no seio da esquerda brasileira e latino-americana, em torno à interpretação do caráter de nossas formações econômico-sociais e das orientações estratégico-táticas para enfrentar seus problemas. Ela trouxe uma superação do marxismo dogmático que “aplicava” de maneira eurocêntrica conceitos alheios à realidade latino-americana, como nas análises que viam elementos feudais ou semifeudais em nossos países, à espera de mais “desenvolvimento capitalista”; e foi uma superação do pensamento desenvolvimentista de matriz cepalina, que acreditava que políticas econômicas industrializantes abririam caminho para nossa redenção.
Eis então que, no último período, se realimentaram esperanças na ideia de desenvolvimento, sem questionar a lógica da sociedade da mercadoria. Esse foi um traço dos governos neodesenvolvimentistas, que realizaram certas reformas, mas sem tocar nos pilares econômicos do sistema de dominação no capitalismo dependente. Alguns acadêmicos sugeriram inclusive que o Brasil teria se tornado “país de classe média”. Mas a crise de 2008 fez derreterem as circunstâncias conjunturais que criaram as condições para o ciclo de governos neodesenvolvimentistas. Por outro lado, é importante também diferenciar o significado dos governos neodesenvolvimentistas do Cone Sul e o significado da Venezuela sob Chávez ou da Bolívia, sob Evo Morales, estes dois últimos sendo governos que promoveram uma elevação do nível de consciência das massas e o debate e medidas concretas em torno a alternativas para a América Latina na luta anti-imperialista e pela integração soberana dos povos.
Como a Teoria da Dependência pode ajudar a esclarecer esse caráter da superexploração e contribuir para elevar o nível de consciência da classe trabalhadora para a transformação do nosso país?
A TMD, como toda a melhor tradição que parte do método de Marx, não é nem pode ser uma teoria encastelada na academia. Ela é, sim, uma arma da crítica, que se coloca à disposição dos movimentos populares, dos sindicatos e partidos da classe trabalhadora, pela construção de uma alternativa de poder que abra caminho para a superação do capitalismo, pela nossa emancipação humana. Interpretar criticamente a realidade para poder transformá-la é, pois, uma tarefa de todos e todas nós.
Como sabemos, erros de análise levam no mais das vezes a erros políticos. Explicar e denunciar o caráter da superexploração em nossos países, nesse sentido, não é pressupor nem almejar uma “exploração normal” e sim demonstrar como e porque aqui a espoliação e exploração da classe trabalhadora e dos recursos naturais são ainda mais acirradas, exigindo uma política que aponte uma saída para além da sociedade da mercadoria. Ao mesmo tempo, não devemos deixar de tentar impor diques de contenção para o incremento desse caráter superexplorador, mas sempre tendo como horizonte que sua superação se dará somente com a superação do capitalismo mediante nossa ação consciente e transformadora, por outra maneira de organizar a vida em sociedade.