Por Catiana de Medeiros.
Mesmo num cenário atual pouco favorável para o desenvolvimento da cadeia do leite no Rio Grande do Sul, famílias assentadas da Reforma Agrária resistem na produção do alimento. Uma das regiões que se destaca é a Sul, onde milhares de camponeses Sem Terra se organizam de forma coletiva ou individual para fazer do leite fonte de renda e ter uma vida digna no campo. Essa dedicação traz frutos positivos às famílias e colabora para que o MST, que hoje é o maior produtor de arroz orgânico da América Latina, também se destaque na produção de leite em pó. Esse alimento será comercializado na 3ª Feira Nacional da Reforma Agrária, que será realizada de 3 a 6 de maio no Parque da Água Branca, em São Paulo.
Em Piratini, município que fica na região Sul gaúcha e a quase 330 quilômetros de Porto Alegre, o MST fundou há 22 anos a Cooperativa de Produção Agropecuária Vista Alegre (Coopava), no Assentamento Conquista da Liberdade. Hoje, são 13 famílias produzindo coletivamente e outras que trabalham de maneira individual. A iniciativa conta com 52 associados, que foram assentados na política de Reforma Agrária e que também vivem no Assentamento Nossa Senhora de Fátima, no interior do município. Uma das principais atividades da Coopava diz respeito à produção de leite. Parte do alimento é vendida em embalagem barriga mole (saquinho) em mercados tradicionais de Piratini, Candiota e Pinheiro Machado — esses dois últimos fazem parte da região da Campanha — e abastece escolas estaduais e municipais, via Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Entretanto, o alimento in natura também é processado em leite em pó e comercializado estado afora pela Cooperativa Terra Livre.
Conforme Seno Alceu Becker, assentado e presidente da Coopava, a produção de leite envolve o produtor numa “rotina árdua”, não por significar muito trabalho, mas sim pela carga de responsabilidades que estabelece no dia a dia. “É uma lida diária, não importa se tem chuva ou sol, se é sábado ou domingo, se é Natal ou Ano Novo. Nós temos esse compromisso todos os dias, independente das outras atividades que têm de ser feitas, mas temos várias experiências de ajuda mútua. Assim, as famílias que trabalham de forma individual podem sair de casa, participar de uma luta ou visitar seus familiares, pois os vizinhos colaboram na lida”, explica.
Ele acrescenta que a rotina dos camponeses que trabalham coletivamente começa logo cedo e se repete ao final do dia. Durante a semana, o envolvimento no leite pela manhã vai das 6 às 10 horas e pela tarde das 16 às 19 horas. Para a lida ficar menos pesada, eles se dividem em grupos de agricultores, que tiram o leite e alimentam os animais, além de executarem outras tarefas relacionadas. Nos finais de semana, fazem uma espécie de rodízio para que todas as famílias possam ter um tempo de descanso.
“O leite é a nossa principal fonte de renda e está dentro das prioridades da cooperativa. Nós focamos nessa cadeia e fizemos investimentos para a estrutura primária, para a ordenha e os animais, e também na indústria. Por mais que hoje o preço esteja desvalorizado — o litro está em média R$ 0,80 —, o leite é uma boa alternativa para a agricultura camponesa e familiar. Nós vamos seguir nesse ramo e nos adaptar para melhorar a questão das pastagens e investir numa produção mais alternativa para diminuir um pouco os custos de produção”, revela Becker.
Crise do leite e estiagem
O governo do Estado do Rio Grande do Sul, no comando de José Ivo Sartori (MDB), foi responsável por agravar recentemente a situação de milhares de famílias que vivem em pequenas áreas e trabalham com leite no estado. A partir da adoção de uma política que valorizou a importação gaúcha do leite em pó vindo do Uruguai e de países vizinhos, e que desvalorizou a matéria-prima que é produzida no estado, milhares de agricultores chegaram a abandonar a atividade. O preço do alimento para o produtor teve queda considerável (o litro baixou para R$ 60 centavos) e em muitas situações não cobriu os custos da mão de obra.
A situação ficou ainda mais delicada com a estiagem que atingiu 42 municípios da Metade Sul gaúcha, onde mais de 30 cidades decretaram estado de emergência. A falta de chuva por um período de três meses comprometeu a pastagem e a água para consumo, fazendo com que muitos perdessem plantações e animais. Seno conta que as famílias que entregam leite para a Coopava conseguiram manter a produção porque tinham silagem de milho estocada. Mesmo assim, algumas, por falta de ajuda do governo e pelos fatores climáticos, desistiram da atividade ou tiveram a produtividade reduzida. “Cerca de 50% dos produtores desistiram do leite e os que ficaram reduziram a produção. Houve uma queda muito grande por vários motivos, principalmente em função do preço, da estiagem e da crise do leite. Mas eu acredito que na entrada do inverno vai aumentar o número de produtores. Agora, estamos fazendo silagem para um possível problema climático, ou seja, excesso de frio e geada”, ressalta.
Desafios
Mesmo em meio às dificuldades, a Coopava não desanima e já planeja investir na produção de leite orgânico, através de um projeto de ampliação de laticínios. Conforme Becker, essa realidade estará mais próxima com a produção de queijo e de bebida láctea, com o uso de ingredientes saudáveis, que também é almejada pelas famílias Sem Terra. “Temos várias ideias na região. Uma delas é produzir ração orgânica, que para nós é fundamental para darmos um primeiro passo na produção de leite orgânico. No que tange aos medicamentos, estaríamos bem avançados para uma transição”, complementa.
Enquanto as famílias sem organizam neste sentido, garantir a qualidade do leite in natura é regra para a Coopava. De acordo com Becker, o controle passa pela higiene do local e das ferramentas de trabalho, do tipo de manejo e da alimentação que é destinada aos animais, entre outras questões. “Nós trabalhamos com PRV [Pastoreio Racional Voisin] na área produtiva e essa também é uma forma de reduzir os custos e de melhorar a qualidade. Assim diminuímos bastante o uso de medicamentos. Já no rebanho, cuidamos constantemente para que não se tenha mastite e outras doenças”, revela.
Produção de leite em pó
Todo esse cuidado da Coopava, que também diz respeito a outras famílias assentadas que produzem leite in natura no estado, contribui para firmar uma alternativa a mais para o desenvolvimento das áreas de Reforma Agrária. Conforme a Cooperativa Central dos Assentamentos do Rio Grande do Sul (Coceargs), os camponeses têm o leite como uma importante fonte de renda, o que implicou no envolvimento de diversas estruturas do MST no recolhimento e, mais recentemente, no seu processamento com alguns laticínios.
Segundo dados do Sistema Integrado de Gestão Rural da Ates (Sirga), 6.667 famílias gaúchas assentadas produziram 120 milhões de litros de leite para a indústria em 2016. Elas estão localizadas majoritariamente nas regiões Norte e Sul do estado. A primeira tinha à época o maior número de produtores de leite, com mais de 70% das famílias Sem Terra dedicando-se à atividade. Hoje o alimento in natura é produzido por camponeses associados a nove cooperativas do MST, localizadas nas duas regiões. No entanto, a produção de leite em pó é oriunda do trabalho das famílias que vivem na parte Sul.
“Primeiro, os assentados da região Sul tiravam leite e 50% ou mais ia para uma cooperativa que não era nossa. Então não aparecia no mercado como produto da Reforma Agrária. Com todos os problemas que enfrentamos, nós criamos certa independência e passamos a conhecer melhor o mercado. Isso foi muito bom para não ficarmos tão dependentes de outras cooperativas. Hoje avançamos na comercialização e produzimos um alimento que é de fato dos assentamentos e que tem a marca da Reforma Agrária”, avalia Becker.
Conforme Carlos Pansera, do setor comercial da Cooperativa Terra Livre, o MST produz leite em pó, indiretamente, há cerca de 15 anos, através de outras cooperativas que adquiriam o alimento in natura das famílias assentadas. Inicialmente, ele era disponibilizado no mercado por meio da marca Danby. Entretanto, a partir de 2010, o leite em pó, que leva a matéria-prima dos assentamentos, também passou a ser identificado pela marca Cootap, em referência à Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre. Em 2017, o alimento surge numa terceira marca: a Terra Livre, que corresponde a uma outra iniciativa do MST.
O leite in natura é processado numa indústria da Cooperativa Sul-Rio-Grandense de Laticínios (Cosulati), situada em Capão do Leão, na região Sul do estado. A comercialização do leite em pó, que agora leva a marca da Reforma Agrária, ocorre via Cooperativa Terra Livre, para a indústria alimentícia (do ramo de biscoitos e doces, entre outros) e para prefeituras por meio do PNAE. A produção chega a 250 toneladas por mês. “Nós atuamos no mercado institucional, entregando para a merenda escolar no Rio Grande do Sul e para a prefeitura de São Paulo. Recentemente ganhamos uma licitação em Belo Horizonte e vamos entregar 200 toneladas para o PNAE a cada seis meses”, conta Pansera.
Ele destaca que o objetivo é colocar cerca de 50% do leite em pó do MST nas vendas institucionais, inclusive para abastecer o Nordeste brasileiro — 35% a mais que o momento atual. Enviá-lo para outros estados se tornaria possível pela durabilidade do produto (tem até 1 ano de validade a partir do empacotamento, se armazenado em condições ideais). “Alguns criticam, mas o leite que vai alimentar as crianças pobres da periferia de Minas Gerais se transformará em renda para cuidar das nossas crianças nos assentamentos, para que elas possam se manter com seus familiares no campo. A nossa disputa no PNAE não é para tirar o leite em pó de iniciativas locais, é para colocar mais alimentos da agricultura familiar no programa, que não pode ficar preso nos 30%. Ela tem que aumentar a capacidade de produção e de entrega”, argumenta.
Pansera diz que a organização das cooperativas do MST que estão envolvidas direta ou indiretamente na produção de leite em pó permite uma boa remuneração da cadeia produtiva, até mesmo às famílias que são responsáveis por fornecer a matéria-prima. Entre as metas da Terra Livre também está a exportação, que é vista como um mercado estratégico — atualmente, o leite em pó da Reforma Agrária também é enviado para a Venezuela. “Tudo o que enfrentamos nos últimos anos, com a superprodução e a crise do leite, serviu para aprofundarmos a reflexão sobre o que fazer com a produção dos assentamentos. Isso possibilitou pensar novas estratégias de reorganização e de planejamento da atividade. Hoje há uma valorização do leite em pó e nos organizamos de maneira que garanta uma vida mais digna para as nossas famílias”, acrescenta.
As cooperativas do MST que entregam matéria-prima para a produção de leite em pó são: Coopava, Cootap, Cooperativa de Produção e Trabalho, Integração (Coptil), Cooperativa Regional dos Assentados da Fronteira Oeste (Coperforte), Cooperativa Terra Nova, Cooperativa de Comercialização e Prestação de Serviços dos Assentados da Região Sul (Coopersul) e Associação Municipal dos Produtores de Leite de Pedras Altas (Amplepa).
Feira Nacional da Reforma Agrária
Além de leite em pó, o MST vai levar para a 3ª Feira Nacional da Reforma Agrária cerca de 20 mil quilos de alimentos. Entre eles estão: arroz rubi, arbóreo, preto, cateto e agulhinha; farinha e barrinhas de arroz; panifícios; salame; cuias, bombas para tomar chimarrão, térmicas e erva mate; mel; cerveja artesanal; feijões preto, amendoim, azuki e carioca; farinha de milho e de trigo; linhaça dourada; sucos de amora, uva, laranja, tangerina, maçã e uva; extrato de tomate; geleia de amora e de uva; mandioca; moranga cabotiá e sementes agroecológicas.
A maioria dos produtos é orgânica e possui certificação. Todos são produzidos por agricultores que trabalham de forma individual ou que estão organizados em cooperativas e associações de assentamentos de várias regiões do estado, tais como Cootap, Cooperativa dos Produtores Orgânicos da Reforma Agrária de Viamão (Coperav), Cooperativa Terra Livre, Cooperativa de Produção Agropecuária Cascata (Cooptar), Associação de Produtores Ecológicos Conquista da Liberdade (Apecol), Cooperativa Monte Vêneto e Cooperativa Agroecológica Nacional Terra e Vida (Conaterra).