Por Gabriel Grabowski.
Segundo os dados do Censo da Educação Superior de 2023, as Instituições de Ensino Superior (IES) – sendo algumas empresas privadas de capital aberto – concentram 79,3% das matrículas no ensino superior do Brasil e, os ingressantes no mesmo ano, correspondem 90% na esfera privada. Isto corresponde que no Brasil apenas 20,7% dos estudantes estudam em instituições públicas, enquanto nos países membros da OCDE são mais de 63% das matrículas na esfera pública.
Já na Educação Básica brasileira, segundo o Censo Escolar do Inep/2023, registraram?se 47,3 milhões de matrículas nas 178,5 mil escolas, sendo 19,9% na rede privada e 81,1% nas redes públicas municipais, estaduais e federal. Praticamente o inverso do que ocorre no ensino superior.
O que isto tem a ver com privatização, militarização e patrulhamento da educação? É este “mercado” de 48 milhões de matrículas, de fundos públicos, de mentas criativas e abertas a aprendizagens, de estruturas instaladas, de investimentos necessários e de possibilidades de fundos de investimentos disponibilizados inclusive por bancos públicos.
Existem várias outras formas privatizantes da educação pública nacional na educação básica, por meio de convênios, vouchers, homeschooling, charters schools (ONGs e Entidades privadas administrando escolas públicas), a entrega de escolas a organizações sociais (OS) e organizações da sociedade civil de interesse público (Oscip); a militarização das escolas da educação básica, os sistemas privados apostilados e de gestão de equipamentos e redes, a avaliação em larga escala quase sempre entendida como a única aferição de qualidade.
Na educação superior, a privatização ocorre por meio do Prouni, do Fies, da desregulamentação e da EaD de forma indiscriminada do setor privado superior, entre outras formas de privatização que geram ampla possibilidade de realização dos interesses do capital aplicado no mercado educacional” (Fineduca, Carta de Curitiba, 2023 e Carta de São Luiz 2024).
Outras iniciativas de privatização recentes estão em pauta: são as Parcerias Público privadas (PPP). No Brasil já existem mais de 60 iniciativas de Parcerias Público-Privadas (PPP) de educação em diferentes estágios de implementação. Alguns estão em estágio avançado e outras estão sendo acelerados após as últimas eleições municipais, como é o caso São Paulo e do Rio Grande do Sul.
A prefeitura de Belo Horizonte foi pioneira no modelo de PPPs de escolas públicas. A concessionária – Inova BH –, é responsável pela construção e a administração de 55 escolas ao longo de 20 anos. No Paraná, o atual governo sancionou a Lei 22.006/2024, que institui o programa “Parceiro da Escola”, aprovada pela Assembleia Legislativa do Paraná (Alep) em dois turnos que autoriza, inicialmente, a venda de 204 escolas estaduais para empresas.
O governo estadual de São Paulo já realizou em 29 de outubro o primeiro leilão de 16 escolas públicas estaduais na região Oeste e a a empresa vencedora é sócia da empresa responsável pela administração de sete cemitérios em São Paulo. No dia 04 de novembro foi realizado o segundo leilão com mais 16 escolas privatizadas e a empresa vencedora foi O consórcio SP+ Escola, prestadora serviços em rodovias.
Os estudantes foram impedidos de acessar a entrada da B3, onde ocorreu o leilão. Um grupo tentou acessar e a polícia usou bombas de gás e ergueu escudos contra o grupo. Eles também deram golpes de cassetete em alguns manifestantes. Ao invés da escuta e do diálogo com jovens que pensam diferente, aplica-se a repressão como método de ensinagem.
O governo do estado do Rio Grande do Sul lançou em julho de 2024 um edital de Consulta Pública de parceria público-privada (PPP) para qualificação de infraestrutura e gestão administrativa de 99 escolas estaduais, localizadas em áreas de vulnerabilidade social, mas a grande maioria na região metropolitana de Porto Alegre. O edital da PPP da Educação deve ser publicado em dezembro deste ano e a previsão é de que o leilão ocorra em fevereiro de 2025.
A associação De Olho No Material Escolar (Donme), com apenas três anos, financiada pelo lobby do Agronegócio brasileiro tem como para patrulhar a política nacional dos livros didáticos , conquistou associados em 17 estados e 129 cidades e vem ganhando espaço em instituições públicas. Já fechou parceria com a Universidade de São Paulo (USP), tem portas abertas nas secretarias de Educação e de Agricultura do estado e mantém diálogos com a cúpula do Congresso, em Brasília, na tentativa de influenciar o novo Plano Nacional de Educação (PNE). A finalidade da associação é incidir que conteúdos podem ser abordados e como devem sê-lo, ou seja, uma ingerência externa sobre as funções das instituições educativas e dos educadores.
Que estas parcerias e patrulhamentos não terão interferência na gestão e proposta pedagógica das escolas – pois a privatização estaria focada nos “serviços não pedagógicos” –, é pura falácia. Para o pesquisador Fernado Cássio (USP), tudo na escola é pedagógico. Todos sabemos que é impossível dissociar a gestão pedagógica de uma pretensa gestão “não-pedagógica”.
Dentro de uma escola, tudo é pedagógico. As decisões executivas sobre os usos dos espaços são pedagógicas. A cozinha onde se preparam as refeições é espaço pedagógico. O acesso livre da comunidade escolar é necessário e pedagógico. O jardim é espaço pedagógico. Os profissionais da secretaria e do apoio escolar são, pela mesma razão, profissionais da educação. A arquitetura das escolas, das salas de aula e dos laboratórios é pedagógica e formativa.
Ao mesmo tempo, adverte o professor, a indissociabilidade entre pedagógico e “não-pedagógico” que serve para demonstrar a ilegalidade da militarização escolar (também ela uma forma de privatização da educação pública) é solenemente ignorada por agentes governamentais quando se trata de defender a PPP redentora do erário; a solução mágica que permitiria construir escolas públicas “por fora” do orçamento público.
Com isso percebemos que a “PPP” destes governos estaduais pode ser a antessala para fins e interesses muito maiores. Ricos como são, estes estados pioneiros de PPP, não dependem do setor privado para construir escolas, mas o fazem pela crença privatista de seus gestores e supostos especialistas em educação, que preferem encher as burras de um consórcio empresarial com dinheiro público a reconhecer que seria menos complicado e mais barato construir escolas e financiá-las de forma regular e adequada pelo poder público estatal.
Tanto a população do Estado do RS como a de SP já sentiram na pele a precarização e a impessoalidade dos serviços privatizados de energia com os recentes eventos climáticos, bem como dos serviços de telecomunicações que encareceram muito com forte queda na qualidade, sem canais de atendimento as pessoas (clientes), obrigando-as a reclamarem para dispositivos e aplicativos robotizados.
A escola não é uma empresa nem a educação um bem do capital. Policiais militares não são educadores e nunca estiveram no rol de profissionais autorizados a exercer esta função pública tão relevante. A educação é um processo humano, social e dialógico. A autoria da gestão e da ação pedagógica do professor é decisiva para pensar as mudanças necessárias na educação e na escola.
Quando relacionarmos estes processos de privatização, de militarização, de patrulhamento ideológicos dos livros e da liberdade de ensinar e aprender concomitante com a destruição da carreira docente pública e o apagão docente – desinteresse pela profissão -, configura-se um cenário de destruição da educação básica de qualidade para os filhos da grande maioria da população brasileira.
Ataques à autonomia docente, liberdade de cátedra, liberdade de ensinar e aprender com os estudantes já são parte de nosso cotidiano. A falta de professores não é apenas consequência de descaso com a educação, mas um projeto de destruição da ciência, da cultura e da educação básica pública de qualidade social e emancipatória.
As atuais (contra)reformas educacionais são, também, parte constitutiva da manutenção e do aprofundamento do apartheid social, rasgando a Constituição de 1988 e se destinam aos 85% dos jovens que frequentam as escolas públicas no Brasil. O que lhes é oferecido é um currículo mínimo, esvaziado de conteúdo, de educação integral, científica e tecnológica, em escolas precarizadas, com docentes desmotivados pela destruição de suas carreiras e condições de trabalho. Este é o propósito, o método e o conteúdo das reformas conservadoras neoliberais da ultradireita.
Uma ação se impõe a todos os professores, gestores, escolas, entidades educacionais e científicas: resistir internamente e demonstrar aos jovens e seus responsáveis a necessidade da defesa da escola pública com professores respeitados e valorizados. Todos precisamos sonhar e lutar juntos pelo direito a educação pública com qualidade e a escola precisa ser o espaço comum e coletivo da formação e da participação democrática.
Gabriel Grabowski é professor, pesquisador e escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.
A opinião do/a/s autor/a/s não representa necessariamente a opinião de Desacato.info.