Por Douglas F. Kovaleski para Desacato. info.
Nessa semana que passou, o governo federal editou uma medida que previa a mudança da gestão da atenção básica do SUS do Ministério da Saúde para o Ministério da Fazenda. A verdadeira intenção desse ato é colocar a Atenção Básica aberta à gestão via parcerias público-privadas, o que segundo o próprio presidente, não é a privatização do SUS. Nesse texto trarei alguns elementos para melhorar a elaboração que se tem sobre o assunto.
Dois dias depois, devido ao desgaste promovido pelos defensores do SUS, Bolsonaro cancelou a medida, pois perderia popularidade e poderia prejudicar candidaturas às prefeituras apoiadas por ele. Na suspensão, o presidente argumenta que ele não propunha a privatização da atenção básica, o que à rigor está correto, pois ele não colocaria à venda as unidade básicas de saúde e a rede que integra essa política, mas faria algo bem pior, que é a privatização indireta, onde os recursos continuam sendo públicos, mas a gestão, que envolve: o controle de qualidade, a forma de compra, a forma de contratação dos profissionais, a remuneração dos profissionais e todas as rotinas de atendimento, passariam a ser planejadas e executadas por empresas privadas.
Essas empresas que recebem o recurso público para entregar o serviço “saúde”, não são obrigadas a fazerem licitações para a compra de equipamentos e insumos, podem contratar trabalhadores de saúde sem concurso público ou processo seletivo, sem que eles tenham estabilidade de emprego e sob a remuneração que bem entenderem. Ou seja, trata-se de entender a saúde como um simples ramos do mercado, que pode ser reduzida às relações trabalhistas precarizadas, terceirizadas e precarizadas como o capital vem aplicando mundialmente. Essa condição já é um problema enorme para toda a classe trabalhadora que vem adoecendo e matando de maneira descontrolada, mas no caso da saúde coloca em risco toda a população, especialmente em tempos de pandemia, pois coloca o bem maior dos seres vivos em risco.
O presidente usa um outro argumento, também verdadeiro, o de que isso não é política dele ou apenas dele e cita corretamente governos Lula e Dilma como iniciadores dessas ações, pois incentivaram medidas de controle e de preparação para as parcerias público-privadas. Isso se deu forma mais clara nos governos petistas para os níveis secundário e terciário de assistência, mas de qualquer forma, os governos petistas optaram por não comprometer percentual do orçamento federal com a saúde, como propunha a Emenda Constitucional 29, nem ampliar o orçamento da saúde de maneira significativa e permanente. Dito de outro modo, ao comparar governos anteriores ao atual, estamos falando de orientações políticas semelhantes, com diferentes graus de voracidade no sentido da retirada de direitos.
Num passado mais recente, encontramos elementos contundentes para analisar a preparação acelerada para a entrega da atenção básica à iniciativa privada na gestão de Luiz Henrique Mandetta:
- a mudança nos critérios usados pelo governo federal para repassar dinheiro para financiar a atenção primária nos municípios;
- o lançamento de uma “carteira” nacional de serviços que precisam ser oferecidos nas unidades, que excluía um conjunto de ações educativas, com ênfase nos procedimentos biomédicos;
- a criação de uma agência privada para a atenção primária, conhecida pela sigla ADAPS que previa a articulação e contratação do setor privado, e foi apoiada por representantes da corporação médica e operadoras de planos de saúde, como a Unimed.
A crise econômica projeta restrições financeiras para a clientela tradicional dos planos de saúde. Com isso, a atenção básica passou a ser cada vez mais interessante para o inexorável afã de exploração do capital por meio das empresas privadas da saúde.Essa perspectiva vai ao encontro do projeto conduzido desde a ONU em nome das grandes corporações do setor denominado “Cobertura Universal”, que substitui o direito universal à saúde em prol de planos de saúde populares e acessíveis a toda a população. Essa é a resposta do governo brasileiro para a crise sanitária e do capital: privatizar o SUS, maior bem público da pátria brasileira.
Douglas Francisco Kovaleski é professor da Universidade Federal de Santa Catarina na área de Saúde Coletiva e militante dos movimentos sociais.
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