Por Maurício Thuswohl.
Rio de Janeiro – Além de não ter cumprido a promessa de despoluir as águas da Baía de Guanabara antes da Olimpíada realizada este ano no Rio de Janeiro, o governo do PMDB agora se prepara para privatizar a Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae), o que teria efeitos socioambientais perversos sobre o ecossistema e as pessoas que dele tiram o seu sustento. O alerta é dado pelo ambientalista Sérgio Ricardo de Lima, defensor histórico da baía e fundador do Movimento Baía Viva, uma das entidades organizadoras do ato público “por uma Cedae pública, estatal e indivisível”, realizado hoje (22) em frente à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj).
Convocado pelos trabalhadores da empresa, por intermédio da Associação de Empregados de Nível Universitário da Cedae (Aseac), o ato tem o apoio do Clube de Engenharia, da Sociedade de Engenheiros e Arquitetos do Rio de Janeiro (Seaerj) e dos sindicatos dos Engenheiros do Rio de Janeiro (Senge-RJ); dos Administradores do Rio de Janeiro (Sinaerj); dos Trabalhadores nas Indústrias da Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgoto de Niterói (Stipdaenit); dos Trabalhadores em Saneamento Básico e Meio Ambiente do Rio de Janeiro (Sintsana) e dos Trabalhadores em Saneamento do Norte e Noroeste do Estado do Rio de Janeiro (Staecnon).
Uma comissão formada por manifestantes esteve com o presidente da Alerj, deputado Jorge Picciani (PMDB), para exigir a imediata votação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 37, de autoria do deputado Paulo Ramos (Psol), que teve a assinatura de 38 deputados e está pronta para ser publicada. Se aprovada, a PEC 37/2016 criará mecanismos que impedem a futura privatização da Cedae.
Sob o prisma socioambiental, qual impacto a eventual privatização da Cedae teria sobre a Baía de Guanabara?
Se a privatização da Cedae acontecer, o maior impacto será o aumento da desigualdade social e da injustiça ambiental no Rio de Janeiro. No estado, dois milhões de pessoas só têm acesso à água por causa da tarifa social, do subsídio que é dado. Os mais pobres não pagam água no Rio de Janeiro. Isso é justo, porque o objetivo da estatal não é ter lucro, o que ela precisa ter é um resultado social. A privatização imediatamente vai provocar a instalação de hidrômetros, inclusive nos barracos das favelas. Todo mundo vai ter que pagar pela água, e isso é injusto. Um exemplo: com a chegada das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e a obrigatoriedade de pagar a conta de luz, eu vi em comunidades dos complexos do Alemão e de Manguinhos mulheres que ganham meio salário mínimo com faturas de luz maiores que sua renda mensal. Na frente da relatora da ONU sobre o direito à água, eu vi uma senhora chorando e dizendo que ou pagava a conta de luz ou comprava os seus remédios. Isso é uma grande desumanidade.
Outra questão é que, na nossa concepção, a água é um bem público, um direito humano. Ela não pode ser tratada como uma commoditie, como se fosse uma mercadoria. O estado do Rio de Janeiro foi o que mais aplicou o receituário neoliberal na década de 90, foi o único estado em que todos os serviços de transporte foram privatizados, com exceção do bondinho de Santa Teresa, que tem valor histórico e cultural, mas não tem valor econômico. As promessas de investimento de capitais privados não saíram do papel, inclusive nas áreas, como a Região dos Lagos, onde o saneamento já foi privatizado.
Uma parte do saneamento no estado do Rio de Janeiro já é privatizada desde a década de 90, quando Marcello Alencar , do PSDB, era governador. Naquela época, a primeira promessa era a de que viriam investimentos privados, mas isso não aconteceu. Todo o investimento no saneamento feito no Rio de Janeiro é público, foi feito pelo BNDES, pelo Banco do Brasil e pela Caixa Econômica Federal. A promessa do neoliberalismo de que o Estado mínimo traria capitais privados, capitais internacionais, não se cumpriu no Rio de Janeiro.
A Cedae é de fato uma empresa com problemas financeiros graves?
Ao contrário da propaganda oficial, a Cedae é uma empresa lucrativa. O objetivo dela não é dar lucro, é atender à população, mas no balanço de 2015 a Cedae teve um lucro de quase R$ 4 bilhões. Além disso, a Cedae tem uma taxa de endividamento de apenas 2%, o que significa que ela pode, sim, contrair empréstimos internacionais, empréstimos no BNDES, na Caixa Econômica e no Banco do Brasil. O que o Movimento Baía Viva defende, em conjunto com o Clube de Engenharia, a Aseac, a Seaerj e todos os sindicatos é que, ao invés da privatização, haja a formação dos consórcios públicos de saneamento, previstos na lei federal da Política Nacional de Saneamento Básico.
Existem experiências muito exitosas em São Paulo, em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul, mas não existe esta experiência no Rio de Janeiro. Significa que uma cidade ou um conjunto de cidades pode se associar à Cedae para buscar recursos novos para o cumprimento de suas metas de saneamento, como ampliar o abastecimento e construir estações de tratamento de esgoto, de elevatórias, enfim, para ajudar nos processos de revitalização da Baía de Guanabara e também da Baía de Sepetiba. Está provado que a Cedae tem vitalidade financeira para isso. Não é verdade esse argumento do ministro Moreira Franco, que coordena o programa de privatizações do governo federal, de que a Cedae é uma empresa decadente, falida, endividada. Isso não é fato.
O que acontece é que o objetivo do estado, desde o programa de desestatização do Marcello Alencar, é privatizar a Cedae. O Garotinho tinha o compromisso de não privatizar e cumpriu. E o Sérgio Cabral já veio com a ideia de financeirização da Cedae, que é essa proposta que agora está aí na pauta da PEC 55. Ele colocou ações da Cedae na bolsa de valores em Nova York, o que na prática é um movimento de privatização, como se a Cedae fosse uma empresa que tivesse que dar lucros aos investidores. E agora o governo Temer retomou a agenda de privatização não somente da Cedae como também de 18 empresas de saneamento em todo o país. A população desconhece os detalhes, e fica parecendo que a única solução é entregar a Cedae para a iniciativa privada. Repito que, de cara, dois milhões de famílias carentes terão hidrômetros em suas portas.
Em que pé está a construção dos planos municipais de saneamento básico nas cidades do entorno da Baía de Guanabara?
Você tem duas situações no Rio de Janeiro que contribuem para a poluição tanto da Baía de Guanabara quanto da Baía de Sepetiba. A primeira é que a Cedae não tem nenhuma meta de avanço na busca pela universalização do saneamento. Foi aprovada uma lei na Assembleia Legislativa há alguns anos, e somente a partir deste semestre a Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico (Agenersa) passou a fiscalizar a Cedae. Esperamos que com isso a Cedae também passe a adotar metas que são previstas desde 2011, quando foi aprovada a Lei 11.445, que estabeleceu a Política Nacional de Saneamento Básico.
Essa legislação prevê também a responsabilidade dos municípios, inclusive a obrigatoriedade de eles terem metas de expansão do saneamento. O problema é que nós acabamos de sair de uma eleição municipal e raríssimas vezes eu ouvi algum candidato falar da responsabilidade dos prefeitos em relação ao saneamento. No Rio de Janeiro, como existe uma companhia estadual, fica parecendo que tudo é responsabilidade da Cedae, mas não é. Tanto para os movimentos sociais como para setores da academia que atuam na área do saneamento ambiental, uma prioridade em 2017 vai ser cobrar que os prefeitos invistam nos planos municipais de saneamento básico. Na Região Metropolitana, quase todos os municípios já têm planos de saneamento no papel. Os planos foram desenhados e já foram aprovados. No entanto, os municípios não têm destinado um único centavo de seus orçamentos, que estão sendo aprovados neste momento, para tirar esses planos do papel.
No caso do Rio de Janeiro, a prioridade máxima deve ser o saneamento dos complexos de favelas. Nós temos milhões de pessoas que vivem nas favelas cariocas sem acesso a saneamento. Isso não é só um problema ambiental, é um problema de saúde pública. A ausência de saneamento gera as chamadas doenças de veiculação hídrica, que afetam principalmente as crianças. Isso é motivo de mortalidade e também de doenças gastrointestinais, coceira e outras doenças provocadas pelo contato cotidiano com o esgoto.
As metas são obrigatórias. Isso é importante, e significa que, se as prefeituras não investirem, os prefeitos podem inclusive ser responsabilizados e criminalizados por improbidade administrativa. Isso é uma ferramenta que a população tem na mão, tanto em relação à fiscalização da Agenersa quanto das metas que a Cedae vai ter que passar a adotar em relação às prefeituras.
Por conta da realização da Olimpíada no Rio, muitas promessas foram feitas em relação à Baía de Guanabara. O evento deixou algum legado positivo para a Baía?
Infelizmente, a Olimpíada e os outros megaeventos não trouxeram nenhum legado ambiental efetivo para o Rio de Janeiro, e muito menos para a Baía de Guanabara. Quando a cidade foi escolhida para sediar a Olimpíada, o estado se comprometeu com a meta de 80% de despoluição da Baía. Nós alertamos a sociedade e o Comitê Olímpico Internacional (COI) que era uma meta absolutamente irreal, uma propaganda enganosa. Isso proporcionou que o estado contraísse um segundo financiamento, desta vez do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), de US$ 1,2 bilhão.
A maior frustração foi que se esperava que esse recurso servisse exatamente para concluir as obras previstas há 20 anos no Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG), mas isso não aconteceu. O PDBG construiu ou reformou seis grandes estações de tratamento de esgoto (São Gonçalo, Caju, Pavuna, Sarapuí, Ilha do Governador e Paquetá), mas, no entanto, os troncos coletores que transportariam o esgoto das residências para as estações não foram construídos. Essa era a contrapartida da Cedae no PDBG.
Quando o governo contraiu o segundo financiamento, se esperava que isso fosse feito, mas não foi. Em função disso, seis meses antes da Olimpíada, com base em nossas denúncias, o grupo anticorrupção do Ministério Público Federal fez várias vistorias nas estações de esgoto e ajuizou, poucos dias antes do início da Olimpíada, uma ação de improbidade administrativa contra as autoridades estaduais. A tese deles, com a qual nós concordamos, é que esses recursos deveriam ter servido para concluir as obras, e não abrir uma nova frente de obras. Nas estações, por exemplo, existem grandes biodigestores que nunca entraram em operação. O material está lá, enferrujando, e esta ação do MP obriga o estado a definir metas e usar qualquer recurso novo para concluir as obras que foram iniciadas na década de 90 no PDBG.
—
Fonte: RBA.