Primeiras viagens com Machado: ‘Quincas Borba’

Foto do Alto da Boa Vista, na Tijuca, tirado pelo fotógrafo da família real portuguesa Revert Henrique Klumb na década de 1860. Imagem: Acervo Brasiliana Fotográfica

Recentemente, montei um plano de leitura que comportasse os livros da Trilogia Realista, que marcam a maturidade do autor – Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899) – e, além disso, também a biografia de Silviano Santiago, Machado (2016), ganhador do 59º prêmio Jabuti no intuito de conhecer melhor o Machado de Assis (inclusive, li a coletânea de contos Sobre a imortalidade de Rui de Leão, lançada pela Plutão Livros em 2018, que fala um pouco do papel de Machado no estabelecimento da ficção científica brasileira)

Durante a leitura de Memórias póstumas de Brás Cubas, percebi como Machado fez surgir um movimento de sincretismo da literatura com tratados filosóficos, representado pelo Humanitismo de Quincas Borba, uma lei do mais forte às avessas. A mistura dessas duas estética acontece no alternar entre os capítulos de reflexão do personagem principal e os que dão prosseguimento à história.

Durante a leitura de Memórias póstumas de Brás Cubas, percebi como Machado fez surgir um movimento de sincretismo da literatura com tratados filosóficos, representado pelo Humanitismo de Quincas Borba, uma lei do mais forte às avessas.

Em Quincas Borba, um livro que me surpreendeu pelas diversas versões que teve, acompanhamos a história de Pedro Rubião de Alvarenga. Na história de Rubião temos a aplicação prática da filosofia Humanitas e Machado nos apresenta a face prática da sua teoria. Quincas apresenta a doutrina para Rubião por meio da história de um conflito entre duas tribos que lutam por alimento (conforme destaque) e é da conclusão dessa guerra que surge a famosa frase “ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”.

“As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação.”

A premissa do romance é que, ao longo da narrativa, Rubião herda a fortuna de seu amigo Quincas Borba e muda-se de Barbacena para o Rio de Janeiro. No vagão do trem dessa viagem, o herdeiro conhece Cristiano Palha e Sofia, por quem se apaixona. À primeira vista, os três se tornam grandes amigos, mas ao longo da narrativa descobrimos que o casal engana o romântico Rubião na intenção de lhe usurpar toda a fortuna (e, da mesma forma, agem todos os outros com quem ele se relaciona).

Dessa forma, como destacado em um prefácio do livro escrito por Willi Bolle, “em suma: trata-se de acompanhar como o ingênuo, o simplório, o matuto, o tolo, o apaixonado Rubião foi sendo enrodilhado e vencido por uma dupla de ardilosos”. Nesta relação entre o protagonista e o casal que se evidencia os resultados da filosofia Humanitas. Ao longo do livro, a fortuna de Rubião é minada cada vez mais e a alienação do protagonista é evidenciada: ele perde seu dinheiro; sua sanidade; o poder de ser o narrador da sua história (já que, diferentemente de Memórias Póstumas de Brás Cubas, esse livro é narrado em 3ª pessoa); e tampouco consegue distinguir relações verdadeiras das interesseiras.

Como se os réis de Rubião fossem as batatas da história de Quincas, todos disputam as posses que herdou sem direito (e sem méritos, já que descobrimos que em seu passado todas as tentativas do protagonista de abrir uma empresa fracassaram).Tal embate retrata as relações entre a classe aristocrática decadente e os profissionais liberais que proliferavam no período – quadro amplamente retratado ao longo das obras de Machado de Assis e que será aprofundado no texto sobre a leitura de Dom Casmurro.

Passando ao aspecto do estilo de escrita, percebi a presença de algo que é forte nos livros dele: uma personificação das partes dos corpos – são pernas que se movem sozinhas; olhos que retratam a alma; bustos e braços que seduzem. Em Quincas Borba, temos trechos como “Tinha outro ar agora: os olhos metidos para dentro viam pensar o cérebro” e “Rubião escutava, com a alma nos olhos”, mas é difícil não associar esses trechos aos olhos de Capitu.

Por fim, há de se destacar que em Quincas Borba vemos claramente a visão do realismo de Machado de Assis por meio do diálogo entre narrador e leitor. Uma cena emblemática para isso é um diálogo entre o cocheiro e o protagonista que insinua um possível caso de adultério. Tal acusação torna-se falsa no decorrer da narrativa e então o narrador logo coloca a culpa no leitor, como visto no trecho: “Calúnia do leitor e do Rubião, não do pobre cocheiro que não proferiu nomes, não chegou sequer a contar uma anedota verdadeira. É o que terias visto, se lesses com pausa”.

No prefácio do livro, Willi Bolle escreve uma consideração sobre isso: “essa intervenção do narrador, chamado por alguns críticos de ‘agressivo’, tem tudo para deixar o leitor perplexo. Não é por acaso que esse capítulo [Cap. CVI] é uma referência-chave para os críticos quando procuram definir o perfil do narrador machadiano. Pois, então, que narrador é esse?”. Conforme destacado por Willi Bolle, com Memórias Póstumas de Brás Cubas, ele largou o modo realista de escrever “em prol de uma liberdade lúdica do narrar, onde a primazia é dada às palavras que criam e inventam fatos”. É sobre essa nova perspectiva realista do escritor que falaremos no próximo texto da série, antes da resenha sobre Machado de Assis.

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