Por Gustavo Veiga.
Preta Ferreira: “O direito à moradia deveria ser um direito mundial.”
Janice Ferreira é mais conhecida pelo seu apelido, Preta. Acusada de extorsão na ocupação de moradias passou 108 presa na prisão de Santana, em São Paulo. “Não veio em contra de mim o Estado e seu poder judiciário, foi o Estado enquanto especulador imobiliário”, comentou Preta Ferreira. Orgulhosa de sua condição de mulher negra com formação universitária e lutadora social, lidera o MSTC, Movimento Sem Teto do Centro.
Aos 35 anos, Preta já tem umas quantas cicatrizes pela vida em constante peleja contra as injustiças. Seu perfil vem da família. Carmen, sua mãe, também é referente das pessoas sem moradia que vivem nas ruas ou alternam entre um aluguel impossível de pagar e o risco latente de serem despejadas.
As duas foram encarceradas embora com uma diferença. O processo contra a mãe de Preta terminou com sua absolvição e sua filha em liberdade. Desde São Paulo capital dialogou com Página/12 sobre a atualidade do Brasil, o governo Jair Bolsonaro, a discriminação racial, o movimento ao que pertence e os efeitos da pandemia sobre a população das comunidades quilombolas e indígenas. As classes mais submergidas do seu país.
– Pode nos explicar como foi sua militância no Movimento Sem Teto?
– Sou militante da luta pela moradia (palavra que repetirá durante toda a entrevista) e do MSTC. Formei-me em publicidade e trabalho com música, cinema, arte… sou cantora, atriz e agora escritora. Acabo de terminar um livro que será publicado antes do fim do ano e cujo nome é “Minha carne”, diário de uma prisão. Todas são coisas que vejo com naturalidade. Eu fui criada para fazer o que eu gosto.
– A que idade começou a se envolver com as lutas sociais?
– Milito desde os 14 anos, tenho 35 e me comprometi com o Movimento sem Teto. Sou uma pessoa excluída da sociedade e então militei por isso. E o fiz para que outras pessoas não passaram pelo que eu passei quando se me negou o direito à moradia, e agora sou uma negra que luto pelos direitos constitucionais. Porque cá, no Brasil, estamos nas mesmas condições que na década de 60, em 1964, quando se produziu o golpe da ditadura militar.
– Como está composta sua família?
-Nós somos oito irmãos, quatro homens e quatro mulheres. Eu moro no centro e todos moram aqui em São Paulo. Todos estão unidos a esta causa onde temos que ocupar por necessidade. Só meu pai e a família dele continuam em Salvador, na Bahia.
– O movimento que você integra é social e politicamente amplo ou está identificado com algum setor da sociedade em especial?
– É um movimento amplo que cuida das pessoas que necessitam sua casa independentemente de sua condição social e do seu credo. É um movimento muito diverso que luta pelas garantias constitucionais. Não nos ocupamos somente de conseguir uma casa; também da saúde, a educação e de temas judiciais de quem estão dentro do MSTC.
– Quantas pessoas estimam vocês que não tem teto em São Paulo, ou mesmo em todo o Brasil?
– (Nota da Redação: em 2018 um estudo dava conta de que havia 6,9 milhões de famílias sem teto e 6 milhões de imóveis vazios em todo o Brasil). Aqui, em São Paulo não sei quantas são as pessoas sem teto porque aumentam gradativamente, assim também os prédios desabitados. Não tenho nenhuma referência. Mas, assim com tem 86 mil prédios vazios, a quantidade de gente nas ruas é bem maior. Falta vontade política para resolver o problema da moradia, para fazer um programa sobre o assunto. Mas, isto acontece também pela especulação imobiliária. Porque se tu não tens uma graninha para pagar o aluguel vais pra rua. E problema da especulação imobiliária é um problema do mundo todo, não é só de São Paulo. O direito à moradia deveria ser um direito mundial. As pessoas ficam sem casa porque a especulação imobiliária está comprando tudo.
– Identificam-se vocês com o movimento Okupa que surgiu na década de 80?
– Sabia sobre a existência desse movimento, mas, na verdade, nós tomamos prédios desocupados, cem por cento vazios há mais de vinte anos, ociosos, onde não se cumpre a função social da propriedade e onde alguns direitos deixam de estar garantidos. Os movimentos sociais querem pagar por um lar, mas, não existem políticas públicas, que, é importante lembrar, devem fazer-se efetivas para que a população possa ter essas moradias com um preço justo. Queremos que outorguem anos de graça para poder pagar, mas, parece que não é interessante liberar esses prédios para os trabalhadores populares ou de baixa renda porque existem empresas que querem comprá-los para transformá-los em apartamentos luxuosos, ou minúsculos, para vender por um preço que um trabalhador pobre ou de baixa renda não consegue pagar. Por isso o movimento tem a obrigação de denunciar esta especulação imobiliária e por isso somos criminalizados. Prova disso é que eu fui presa durante 108 dias sem ter cometido crime algum.
– Como afeta a população negra do Brasil esta problemática? Tem mais dificuldades por questões raciais que a população branca ou mestiça?
– Aí dá pra ver o problema racial, quando se afeta o direito à moradia. Desde a época da escravidão que se vem alastrando e ao Estado não lhe interessa que uma mulher negra tenha estudos superiores, um diploma, porque esse acesso é negado e o afirmam a estatísticas. Eu passei por essa discriminação quando um empresário pagou minha passagem de avião e a GOL não me deixou viajar porque o cartão de crédito não era meu. Porque era de um homem branco da Bélgica, fizeram especulações sobre onde tinha comprado essa passagem e não consegui viajar e tive que comprar outra passagem com meu dinheiro, porque uma mulher negra não pode viajar no Brasil se adquiriu uma passagem com um cartão que não é dela. Isso é o racismo neste país. É um câncer.
– Você demandou a empresa aérea?
-Não, não que gastar energia nisso, tenho muitas coisas a que me dedicar.
-No, no quise gastar energía en eso, tengo muchas cosas a qué dedicarme.
– As condições dos movimentos com o MSTC pioraram com o governo de Bolsonaro?
-É um governo ditatorial, totalitário, fascista, racista, machista, que exclui e governa para uma torcida organizada. Você vê aí a ajuda à população indígena sendo nega pelo presidente através de um veto. As pessoas dessas populações indígenas e das quilombolas não são gente para ele. Não é o presidente da república, o presidente deve governar para todos, para toda a população do país. Bolsonaro governa para os ricos, eles estão muito bem. O filho dele viu-se envolvido no assassinato da Marielle Franco. Bolsonaro nos mandou a Polícia Federal para prender-nos, Bolsonaro junto com o governador de São Paulo, João Doria. Bolsonaro, Doria e Witzel, o governador do Rio, são três assassinos, três genocidas e hoje estamos vivendo a pandemia enquanto o presidente nega direitos a uma parte da população.
-Você se soma à denúncia internacional contra Bolsonaro por genocídio?
-¿Adhiere a la denuncia internacional contra Bolsonaro por genocidio?
–Sim. Absolutamente. Um presidente que não obriga às pessoas a usar máscaras é justamente para matar essas pessoas, à população carcerária. Um presidente que assina um veto para que as populações indígena e quilombola não tenham atenção médica durante uma pandemia mundial é um assassino. Um presidente da República que sabe que está infectado da Covid-19 e está nas ruas conversando com as pessoas é um assassino. Não são opiniões, são fatos.
-Como acompanhou o que se passou nos Estados Unidos com o assassinato de George Floyd e a resposta que gerou na população?
– Eu acredito que no Brasil devemos valorizar nossas lutas, porque aqui, a cada 23 minutos, morre um George Floyd. Cada 23 minutos um jovem negro é assassinado
Entrevista original no: www.gustavojveiga.wordpress.com
Tradução: Raul Fitipaldi, para Desacato.info
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