Presente do passado, por Rosangela Bion de Assis

Ilustração: Luiz Bion de Almeida

Por Rosangela Bion de Assis, para Desacato.Info. 

Na véspera do dia em que comemoraria 68 anos, não acordei na minha cama. Abri os olhos no quarto escuro e percebi que estava no nosso antigo apartamento e a filha me chamava:

– Mãe, acorda, vamos nos atrasar. Você não vai trabalhar hoje?

Seu olhar cheio de carinho, tranquilizou meu coração. Se era um sonho, era dos bons.

– Mãe, só me responde, se você não está bem, eu vou de ônibus.

E ficou na minha frente aguardando.
Não consegui falar, pulei da cama e a forma como o corpo reagiu foi outra surpresa. Quanta agilidade. Olhei para o lado, e lá estava o meu amorzinho, quase sem cabelos brancos. Parei um instante, eu precisava admirar aquele homem mais um pouco. Dormindo de lado, como ainda hoje faz, as mãos delicadamente fortes pertinho do rosto. A filha chamou e precisei sair do quarto em que vivi 26 anos, no apartamento em que as meninas cresceram e onde vivemos enquanto as duas moraram conosco. Fui para o corredor em direção à luz e aos espaços que haviam ficado no passado. Olhei para o escritório e lá estava a roupa separada para o dia seguinte: vestido, calcinha e sandália separados. Era assim na época em que saíamos antes das 7h para o centro, a filha ficava na escola e eu ia para o Sindicato.

Aquilo definitivamente era um sonho. Vesti a roupa admirando a paisagem na janela, as luzes da ponte Hercílio Luz num fundo azul delicado, com tons amarelados e rosas se desfazendo. Tínhamos inúmeras fotos daquela imagem feitas antes da venda do apartamento. Nenhuma delas conseguia captar a riqueza daqueles detalhes.
Naquele instante, observando as mãos, vi que precisava de um espelho. No banheiro, escovei os cabelos pintados de castanho avermelhado e lavei o rosto. Admirei o meu sorriso e relembrei que não precisava de óculos. Eu ria diante do espelho quando a menina me perguntou:

– Mãe… Dá tempo de fazer uma trança?

– Claro, vem aqui.

Dividi o cabelo dourado com os dedos. Os fios lisos e brilhantes deslizavam e iam formando o desenho entrelaçado na cabeça. Eu adorava fazer tranças nas minhas amigas, em mim e nelas.

Na cozinha, a parede vermelha, os quadros de viajem e a janela com a vista da via expressa. Abri o armário e lá estava o nescafé, o mamão na fruteira, o leite e a manteiga na geladeira, o pão no freezer e o comprimido da reposição hormonal em cima do micro-ondas. Incrível! Tudo ali.

Novamente os pensamentos foram afastados pela menina que sentou na minha frente, vestindo uniforme, olhos sorridentes e eu percebi o tamanho daquele presente. A mulher que agora estuda em outro país estava ali, na doçura da adolescência. Seus grandes olhos verdes perceberam meu assombramento.

– Mãe, aconteceu alguma coisa?

– Não, nada, como você está linda.

– Claro, uma perfeição, com essa espinha nascendo bem no meio da testa.

Foi quando a outra filha entrou na cozinha.

– Posso ir com vocês para o centro?

Ela tinha seis anos a mais que a irmã, estava com um daqueles seus pijamas quase consumidos pelo uso e, como sempre, com os pezinhos descalços no piso. Fazia estágio e finalizava o Trabalho de Conclusão de Curso da faculdade. No ano seguinte tudo mudou, sem o seu quarto bagunçado, suas canecas de café espalhadas pela casa, o jeitinho como cuidava da irmã. Foi nessa fase que eu percebi que tudo estava prestes a acabar e quis segurar o tempo. Passei a olhar a roupa jogada pelo chão do quarto quase com saudade. Ela foi estudar e trabalhar no outro estado e lá encontrou seu cachorro, seu amor e sua vida.

– Claro, vamos todas juntas.

– E amanhã mãe? Já decidiu como vai comemorar seu aniversário de 48 anos?

– Acho que vou dançar. Parece que eu já fui bem mais velha e hoje acordei tão jovem.

– Mãe, você sempre fica assim na semana do aniversário.

Elas sorriam enquanto mastigavam o pão doce, uma tomando café sem açúcar e a outra um iogurte. Olhei para o relógio, desejando que seus ponteiros parassem. Naquela véspera de aniversário, eu tinha conquistado a chance de reviver aquele dia perfeitamente comum, ao lado dos meus amores. Que presente!

 

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