Presas de SP criam cooperativa e empreendem da cadeia: ‘Tenho direito de tentar mudar’

O maior sonho de Tânia Rodrigues é pegar toda sua história, virá-la do avesso e, a partir daí, tornar-se um exemplo a ser seguido. Seria uma reviravolta, um "modelo de superação" para seus três filhos que a aguardam do lado de fora da prisão, mas também para outras mulheres que, como ela, dormem diariamente trancadas em algum presídio do Brasil.

Foto: Reprodução

Por Leandro Machado.

“Pensava muito sobre o que eu faria da minha vida quando sair daqui, pois estou marcada, carimbada como uma presidiária”, diz ela, que tem 34 anos e está há três na detenção feminina Tremembé 2, no interior de São Paulo. Foi condenada por tráfico de drogas e receptação.

Retirar o “carimbo” da cadeia é o que ela e outras 29 mulheres estão tentando fazer: com ajuda de uma ONG, elas criaram uma cooperativa de artesanato e costura. Todos os dias, deixam suas celas para produzir material em três salinhas contíguas, em outra área do presídio.

Iniciativas parecidas são raras no Brasil, que tem 42 mil mulheres presas. No total, o país tem 726 mil detentos – a terceira maior população carcerária do mundo em números absolutos.

O projeto em Tremembé foi inspirado na primeira e, até pouco tempo atrás, única cooperativa de presidiárias do país, em Ananindeua, na região metropolitana de Belém.

Há poucos meses, a ONG Humanitas360 procurou o governo e a Justiça de São Paulo para tentar replicar a experiência paraense. “Quando explicamos o projeto, poucas presas quiseram participar. Depois, uma foi contando para a outra e chegamos em 30 pessoas. Hoje, o presídio inteiro quer entrar”, diz Ricardo Anderáos, vice-presidente de operações da Humanitas360.

É comum as presas trabalharem para empresas e fundações que atuam em detenções. Nestes casos, elas recebem um salário e redução de um dia de pena a cada três trabalhados.

No caso da cooperativa, além da remissão de pena, elas vão dividir os lucros dos produtos a serem vendidos. “Tivemos de convencê-las de que são elas que vão construir a cooperativa, elas serão sócias e responsáveis por tudo”, diz Anderáos.

Nos últimos meses, as presas participaram de oficinas diárias de desenho, costura, artesanato e design. A ideia é liberar a criatividade e desenvolver produtos interessantes. Em breve, eles serão vendidos em lojas fora da prisão. O governo de São Paulo se comprometeu a comprar a primeira fornada de criações.

Para Daiane Roberta Fernandes, diretora de trabalho e educação da penitenciária, a cooperativa ajudou a dar noções de empreendedorismo às presas e pode ajudá-las a se recolocar no mercado de trabalho fora da cadeia, movimento difícil por causa do preconceito contra egressos do sistema. “As empresas têm dificuldade de inserir as presas no emprego. O histórico infelizmente pesa”, diz.

Já Anderáos, da Humanitas360, acredita que iniciativas desse tipo podem, no futuro, ajudar a diminuir a violência dentro e fora dos presídios. “Um dos pontos chaves da violência social é a questão carcerária. O encarceramento em massa alimenta as facções criminosas, pois, em geral você coloca pessoas condenadas por delitos não violentos para serem alistadas por grupos de criminosos”, diz.

“Nós precisamos dar uma oportunidade de futuro para os presos, para que eles consigam enxergar um mundo distante do crime.”

Orgulho e vergonha na prisão

Por anos, Tânia trafegou entre pequenos delitos e uso de drogas. Nunca tinha costurado ou bordado na vida, mas hoje vê nas agulhas e linhas uma ponte para um futuro do outro lado das grades.

“Acho que essa cooperativa está mudando minha vida. Estou cheia de planos”, diz à BBC News Brasil, emocionada. “Quero que presas do Brasil inteiro conheçam minha história. Tenho direito de tentar mudar.”

Sua colega, Flavia Maria da Silva, de 41 anos, também pouco sabia da costura, muito menos de empreendedorismo. “Eu não sabia nem colocar uma linha na agulha”, diz, sentada em um dos pátios. Ela também foi condenada por tráfico de drogas.

Na cooperativa, ao menos 19 das 30 mulheres praticaram crimes relacionados ao tráfico. Segundo o Ministério da Justiça, 62% das presas brasileiras se envolveram com o mercado ilegal de drogas – entre os homens, essa taxa é de 28%.

Flavia conta que uma paixão a levou ao crime. Na adolescência, engravidou de um rapaz por quem se apaixonou. “Além do meu filho, o único legado desse grande amor foi o crime. Fiz parte dessa vida por muito tempo”, conta. “Você acredita nesse mundo de ilusões, mas um dia o dinheiro do crime acaba e você se vê na cadeia.”

Há seis anos ela vive na cadeia, enquanto seu filho cresce do lado de fora. “Ele vem me visitar a cada 15 dias. Vê-lo entrando, já grande, é meu maior orgulho, mas também minha maior vergonha”, diz.

Na salinha onde as presas trabalham, Flavia aprendeu a usar a máquina de costura com o objetivo de conseguir, no futuro longe das celas, juntar dinheiro para se formar em Direito. “Vi muitas mulheres sofrerem por causa da Justiça, que nem sempre é justa. Por isso quero ajudar minha colegas”, afirma.

‘O futuro’

Muitas presas acham que o sucesso da cooperativa de artesanato será uma redenção para vidas que foram erráticas ou que caíram em desgraça por uma escolha equivocada. Veem o negócio recém-nascido como uma volta por cima que será contada com orgulho para parentes e, principalmente, para os filhos.

E elas falam muito deles, os filhos.

Segundo o Ministério da Justiça, 75% das presas do Brasil têm um ou mais de uma criança.

Eles foram o assunto preferido de Letícia de Oliveira, de 30 anos, quando conversou com a BBC News Brasil. Ela é mãe de um menino e de uma menina de cinco anos. A garota nasceu na prisão e, aos seis meses, foi separada da mãe após o período de amamentação previsto pela lei.

“Meu pai veio buscá-la. Fiquei tão desesperada que comecei a correr pelo presídio para escondê-la nas celas”, conta, fingindo um sorriso para amenizar o choro. “Só dei o bebê quando meu pai me disse: não se preocupe, Letícia, vocês duas são minhas filhas.”

Reincidente, Letícia foi condenada a 13 anos e seis meses de prisão: um dia, foi atraída pelo dinheiro que ganharia carregando quatro quilos de cocaína. Acabou presa. Não vê os filhos há quatro anos. “Preferi ficar longe, não quero que eles me vejam assim”.

Já Tânia Rodrigues recebe visitas de dois de seus três filhos. O mais velho, de 16 anos, desistiu de visitar a mãe quando ela não conseguiu cumprir a promessa de encontrá-lo fora da prisão no último Natal. “Prometi a ele, porque achava que meu regime semiaberto sairia, mas isso não aconteceu. Nunca mais ele veio”, conta.

Sua outra filha, de cinco anos, faz visitas a cada 15 dias. A menina não sabia que a mãe morava em uma prisão até semanas atrás. “Um dia, ela me perguntou se eu não ia para casa porque as grades não deixavam. Fiquei sem palavras.”

Dias depois, em outra visita, Tânia presenteou a filha com um chapéu feito por ela na cooperativa. “Minha filha olhou para o boné e perguntou: ‘ah, então é isso o que você faz, mãe?'”.

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