Valéria Lúcia dos Santos, mulher, negra, advogada no estado do Rio de Janeiro, em pleno exercício da sua função, durante uma audiência no Juizado Especial Cível da Comarca da cidade de Duque de Caxias/RJ, recebeu voz de prisão de uma juíza leiga [1], sendo algemada por policias militares e arrastada pelo chão porta afora da sala de audiências diante vários colegas, servidores e das partes do processo. Gize-se, não estava armada e não ameaçou a integridade física de ninguém.
Não! Isso não é cena de alguma série produzida para narrar os dias de chumbo da Ditadura no Brasil, mas poderia ser. Isso foi um verdadeiro ato de abuso de autoridade e de ilegalidade. Um escárnio inadmissível e inconcebível que deve ser reparado e punido de forma exemplar e pedagógica.
Segundo o relato da colega Valéria, que não foi desmentido pela juíza leiga que mesmo procurada pela imprensa não se manifestou, após a tentativa de conciliação fracassar, Ela precisava e tinha o Direito de ter acesso à contestação oferecida pela parte adversa para que pudesse se manifestar acerca das alegações contrárias. Como isso lhe foi negado e, por obvio, a negativa de acesso poderia prejudicar sua cliente, recusou-se a sair da sala sem que o Direito da cliente e o seu fossem respeitados, motivo pelo qual teve voz de prisão decretada pela juíza leiga que realizava a audiência.
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O ato mais simples, coerente e dentro da legalidade, qual seja, dar vistas dos autos processuais à procuradora da autora da ação judicial deveria ter ocorrido naquele momento, mas, infelizmente, não foi o que ocorreu.
O que ocorreu foi o ápice do mais profundo desrespeito, humilhação, e desvalorização da advocacia, dos advogados e das advogadas que acontecem todos os dias nos Fóruns, nos presídios e nas delegacias do País, avançando vertiginosamente o esfacelamento do exercício da advocacia, da cidadania e da Constituição da República.
E isso ocorre por que a OAB não cumpre, como deveria, o seu papel!
Aliás, muito ao contrário. Por exemplo, no que se referem às Advogadas, dias atrás tratou de destinar, tão-só, 30% das vagas para as Mulheres no seu Conselho Federal. No que concerne aos criminalistas, não age de forma contundente na defesa das prerrogativas dos advogados e advogadas que são rechaçados e desrespeitados em delegacias e presídios e até “condenados” socialmente pelo exercício muito digno da advocacia criminal. E, também, por não ter posição firme quando atos menores, mas não menos relevantes que afrontam o nosso nobre ofício cotidianamente.
A OAB precisa entender, definitivamente, que a autoestima da Advocacia e a defesa de suas prerrogativas são muito mais importantes que qualquer obra de infraestrutura e que isso exige que embates sejam travados, que enfrentamentos sejam feitos e que desgastes sejam absorvidos pela Entidade, sendo este o papel de uma OAB forte.
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As prerrogativas da advocacia não existem para preservação do advogado, mas da Cidadania e do Estado Democrático de Direito. Elas estão asseguradas pela lei n° 8.906/94 em seus artigos 6º e 7º, o Estatuto da Advocacia, tratando-se de um conjunto de garantias fundamentais criadas para assegurar o amplo direito de defesa dos Cidadãos.
Ademais, o artigo 133 da Constituição da República determina que o exercício da advocacia é fundamental para a prestação jurisdicional, uma vez que cabe ao advogado postular em favor do cidadão que, não sendo conhecedor do arcabouço jurídico, busca no advogado um representante que se manifestará em seu nome e lutará pelo reconhecimento de seus direitos em juízo.
Os advogados e advogadas não exercem apenas uma atividade profissional, eles garantem o exercício da cidadania, uma vez que pela Constituição da República, estão investidos de função pública ao postular em nome do cidadão, provocando o Judiciário no sentido de aplicar o Direito, a partir do debate das teses e dos argumentos jurídicos para a busca de uma prestação jurisdicional em conformidade com a Justiça.
Para o presente caso, para além da defesa das prerrogativas, é imperioso que a Comissão Nacional de Promoção da Igualdade e da Comissão Nacional da Mulher Advogada se responsabilizem por averiguar suposta prática de racismo e misoginia contra a colega Valéria por que, não sejamos hipócritas, se fosse um homem branco, ou até uma Mulher branca teriam tido o mesmo tratamento pela juíza leiga, teriam sido algemados? Pode ser que sim, mas não acredito em decisões, nem mesmo as técnicas, desprovidas de fundamentação ideológica pessoal mínima. E estes conceitos ideológicos que fundamentam o racismo e misoginia estão vinculados ao âmago da nossa sociedade e clamam por serem combatidos diuturnamente pela OAB e por todos nós cidadãos e cidadãs brasileiros.
Agora, sejamos coerentes, não seria muito mais fácil e eficaz a juíza leiga ter dado vistas dos autos à advogada, cumprindo a lei e respeitando as Prerrogativas da Advocacia?
Passadas algumas horas do fato, entendo que todo episódio carece de muitas reflexões. Reflexões estas que deságuam na evolução dos conceitos sociais e do ser humano como agente transformador do nosso tempo e, especialmente, a que se faz mais necessária: o porquê o mais fácil não foi feito, porquê a via escolhida foi a da humilhação e porquê o Direito não foi o protagonista da audiência?
Por ora, minhas conclusões a esta reflexão são, contudo, de cunho antropológico, mas também e principalmente, de cunho institucional, pois enquanto a OAB não exigir que advogadas e advogados, brancos e negros sejam tratados em conformidade com o previsto no texto Constitucional e consoante às prerrogativas do nosso Estatuto, estes episódios pavorosos continuarão a se repetir pelo Brasil.
Somos todos e todas Valérias!
[1] Juiz Leigo no RJ: O Juiz leigo, resumidamente, atua em juizados específicos e causas de menor porte e, também, é considerado um auxiliar da justiça, sendo esta, a principal diferença do Juiz de Direito (ou Juiz Togado), que possui seus direitos garantidos no artigo 95 da Constituição. Como requisito mínimo, os candidatos precisam ter inscrição definitiva na OAB e possuir, no mínimo, dois anos de experiência jurídica. O exercício da função de juiz leigo, sem vínculo empregatício ou estatutário, é temporário. O juiz leigo será designado pelo presidente do TJRJ para o exercício de suas funções pelo prazo de dois anos, admitida a recondução por apenas mais um período, e poderá ser dispensado a qualquer momento, atendendo à conveniência do serviço no Estado do Rio de Janeiro.
*Angelita da Rosa é advogada Especialista em Direito Público, Procuradora Geral do Município de São Leopoldo/RS