Por Camila Rodrigues da Silva.
Sem debate e sem comprometimento público, o projeto“Prefeitura no bairro”, criado pela gestão do prefeito recém-empossado César Souza Jr. , é inédito: permite contato direto entre moradores, o prefeito e seus secretários. O primeiro encontro aconteceu dia 5 de janeiro, em Canasvieiras, no Norte da ilha, e o segundo, no Campeche, no sábado passado (19), quando o Desacato esteve presente. Havia mais de 400 pessoas, entre elas os moradores, que são conhecidos por estarem entre os mais organizados e combativos daIilha.
Durante duas horas, todos os secretários municipais e o prefeito, devidamente identificados, sentaram-se em uma mesa em forma de “U”, montada sob uma grande tenda branca. Dentre eles, estava o vice-prefeito da candidatura de Gian Loureiro (PMDB), Rodolfo J. Pinto da Luz, hoje secretário da Educação.
Os moradores, em fila, escreveram seus nomes e o do secretário com quem gostariam de conversar (poderiam falar com o prefeito também) e aguardaram a chamada de um representante da prefeitura. Não havia senha numérica, talvez para tornar a experiência entre político e cidadão mais calorosa. O ambiente era informal, quase descontraído. O objetivo era escutar reclamações e tomar nota de sugestões de moradores daquela região.
Do ponto de vista da publicidade política, o projeto é excelente, já que se apresenta como uma ferramenta de legitimação de um governante que foi escolhido por somente um terço dos eleitores de Florianópolis (não deve ser esquecido o fato de que a soma de abstenções, brancos e nulos indicam que mais de 30% não votou). Entretanto, do ponto de vista da qualificação da discussão política, do empoderamento popular e da afirmação de compromissos de governantes para governados, o formato do evento é desastroso.
Ausência de construção coletiva
“Estou levando para os administradores públicos o absurdo que é a realização de shows privados aqui na praia do Campeche, que mobiliza e imobiliza todo o bairro. Domingo passado, o show praticamente parou tudo: as principais vias ficaram congestionadas, as outras ruas laterais, cheias de carro. E tudo para atender a um show privado da Skol! A areia da praia se transformou em banheiro a céu aberto. O Campeche é uma praia, mas, antes de tudo, é um lugar de moradia com praia. Não pode ser tratado como uma arena de espetáculo a céu aberto. Se quiser que tenha shows, faça em lugares apropriados, como a passarela do samba “Nego Quirido” ou em locais que tenham condições de mobilidade, de acesso e de saneamento. Definitivamente, as praias não são lugares para isso”, disse Glauco Marques, 62, gaúcho de Santa Maria que mora no Campeche há 30 anos. Provavelmente, a questão dele teria uma repercussão muito maior, dentro e fora do evento, se fosse debatida abertamente com todos os presentes.
Por isso, a conversa entre um morador e um secretário municipal não pode ser caracterizada como “participação popular”, já que não há debate e, portanto, não há construção coletiva de ideias, nem repercussão nas esferas de opinião pública da cidade.
O papo intimista, que se parece com a conversa que se tem com um gerente de banco, apenas dá a sensação de proximidade com o governante e alimenta a esperança de, daquela forma, resolver um grande problema. Politicamente, é vantajosa apenas aos governantes.
Anulação da articulação popular
“[O projeto] é uma ideia ótima para quem tem dificuldade de chegar aos gabinetes. Achei bem adequado”, afirmou uma senhora que está solicitando a documentação para a abertura de uma casa de repouso no Morro das Pedras, próximo dali. É evidente que o projeto reforça e se baseia no individualismo, e desestimula a organização dos membros da comunidade.
Talvez o problema mais grave da conversa tête-à-tête é que ela impede que novos moradores do bairro ou pessoas mais jovens conheçam e identifiquem as referências e lideranças locais, se apropriem dos debates, reflitam sobre as reivindicações históricas, e, a partir disso, ajudem a pressionar prefeitos e secretários.
Um dos exemplos mais simbólicos dessa articulação popular é a criação do Plano Diretor Comunitário, desenvolvido há mais de dez anos e ignorado por três mandatos consecutivos. “Entra governo, sai governo, e o Plano Diretor Comunitário não é implementado”, lembra a moradora Angela de Maria, 49. “O bairro está crescendo desordenadamente, os acessos às praias estão sendo fechados pelos condomínios. E cada prefeito que entra faz vistas grossas e não resolve a situação”.
Ausência de compromisso dos representantes
Como as conversas são individuais, torna-se quase impossível cobrar os compromissos que forem firmados nos balcões pelos representantes do povo. A dinâmica também dificulta uma avaliação autônoma de quais foram os principais problemas apresentados pela população. O prefeito disse, em entrevista ao Desacato, que a maior parte das reivindicações estão relacionadas à criação de um parque no terreno onde é o campo de aviação, e questões relacionadas à saúde e segurança. Não havia como escutar todas as conversas e, portanto, não há como questionar a palavra de Souza.
“Acho que nenhum prefeito promoveu (um espaço) como esse. E quero acreditar que realmente se efetivem as reivindicações”, tenta crer Jacó Rocha, 54, que nasceu no bairro e reivindicou ao secretário de obras, João Amin, que houvesse mais calçadas e ciclovias. Ele diz que prefere deixar as críticas para daqui um ano.
Parabéns ao portal Desacato por nos manter informados sobre a cidade, e o mundo, de uma perspectiva oposta à mídia tradicional.