Por Juliana Gonçalves e Bruna de Lara.
“Na minha administração, nenhum espetáculo, nenhuma exposição vai ofender a religião das pessoas”, afirma Marcelo Crivella em vídeo divulgado em suas redes sociais no dia 31 de maio. O prefeito do Rio, bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, se refere à peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, protagonizada por uma mulher trans. Parte da mostra Corpos Visíveis, o espetáculo aconteceria no próximo fim de semana na Arena Carioca Fernando Torres, dentro do Parque Madureira, em Madureira, na zona norte carioca. A peça foi divulgada no último feriado na coluna do Ancelmo Gois, no Jornal O Globo, que foi acusado pelo prefeito de divulgar fake news.
A publicação da nota teria chamado a atenção do prefeito. No vídeo, ele afirma que “estão plantando notas de uma atividade que não vai existir”. No entanto, o evento está sendo articulado com a prefeitura do Rio desde o ano passado, e a divulgação ocorre há mais de um mês. O The Intercept Brasil obteve uma troca de e-mails de novembro de 2017 que comprova que a prefeitura carioca tinha aprovado a realização da peça no local.
A Corpos Visíveis aconteceria como marco do mês da diversidade e tinha como objetivo debater transgeneridade, feminismo e diversidade sexual na periferia da cidade por meio da arte. Agora, todos os eventos que ocorreriam na arena estão cancelados. Além da peça, a programaçãocontava com debates, shows, oficinas e filmes que discutem a visibilidade LGBTQI+, em um esforço de luta contra a LGBTfobia. Até o momento, as atividades ao ar livre, que incluem jogos esportivos e a realização de uma feira com música e poesia, estão mantidas. Essa não é a primeira vez que a apresentação é alvo de polêmica. No último ano, um juiz proibiu que a peça fosse apresentada em Jundiaí (SP). Em Porto Alegre, também houve um pedido de proibição, negado pela Justiça, que considerou que a ação era uma forma de censura e ia contra a liberdade de expressão. Nos dois casos, o poder público municipal passou longe das ações – em São Paulo, a proibição atendeu a pedidos do grupo Tradição, Família e Propriedade e de organizações religiosas. Em Porto Alegre, foi um advogado que considerou a peça um “deboche psicodélico de mau gosto”.
Crivella já usou o vídeo para opinar sobre a programação cultural da cidade em outra oportunidade. Em outubro do ano passado, o prefeito travou a negociação do Museu de Arte do Rio para trazer à cidade a exposição Queermuseu – censurada em Porto Alegre. Na época, o ex-bispo afirmou que “a população do Rio de Janeiro não tem o menor interesse em exposições que promovam zoofilia e pedofilia”. Neste novo vídeo, Crivella explica que a arena encontra-se interditada devido a um “problema na licitação”. O prefeito se refere à ação judicial movida pela Associação Cultural Amigos do Agito, antiga gestora do espaço, que questiona a licitação vencida pela nova gestão, da Associação para Gestão de Unidades Administrativas Sociais. Há um cerca de um mês, a licitação foi suspensa, assim como as atividades da arena, segundo a Secretaria de Cultura. Porém, os organizadores da mostra afirmam que não foi essa a informação que receberam.
“Aconteceu uma mudança de gestão na Arena Fernando Torres, mas a Secretaria de Cultura garantiu que, independente da gestão, nosso evento estava confirmado. Estivemos na arena no dia 30 de maio, e o funcionário da Secretaria garantiu que estava tudo ok. Ou seja, só depois que sai a nota no Ancelmo é que eles cancelam a programação da arena? É claramente um ato de censura”, diz Karla Suarez, uma das produtoras da mostra. No dia seguinte às declarações de Crivella, ocorreu mais um veto sem explicação. A gestão do Parque Madureira anunciou que quatro das 20 fotos que seriam exibidas no espaço durante a mostra não foram aprovadas pela Casa Civil da prefeitura carioca. As imagens – que retratam uma drag queen em sua favela, dois homens idosos em um gesto de afeto, um abraço entre dois homens e uma pessoa caracterizada como uma figura sombria – não contêm nudez ou qualquer cena explícita.
De acordo com a produção, no entanto, em uma reunião realizada nesta segunda-feira, dia 3, a subsecretária de Cultura, Rachel Valença, afirmou ter conhecimento da mostra e ter autorizado sua realização com programação com classificação livre nas partes externas no Parque Madureira e com as atrações para maiores de 16 anos na parte interna da arena. “Fomos aconselhados a procurar outro equipamento da prefeitura, porém lembrados de que seria difícil pela proximidade da data. Eles falam como se o evento tivesse sido inventado pela gestão anterior, mas ele está sendo tocado desde o ano passado. Colocam a gente como mentirosos”, criticou Karla. A produção irá entrar na Justiça para tentar garantir a realização da mostra. Nesta terça-feira, dia 8, o grupo se reúne no Leão Etíope do Méier em um ato contra o cancelamento do evento.