Por Mayrá Lima.*
O papel dos órgãos de controle do Estado e como suas decisões impactam no sistema político ainda são pouco estudados pela Ciência Política. Seja de forma interna, ou externa, estes órgãos têm o papel de fiscalização da administração pública, tal como a aplicação dos recursos federais.
Aqui, falarei sobre o Tribunal de Contas da União (TCU) e um caso que não gerou grandes debates jornalísticos.
Em abril de 2016, o TCU, por meio do acórdão 775/2016, suspendeu a concessão de benefícios do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA) e a seleção de novos beneficiários, após uma auditoria que cruzou dados de pessoas cadastradas neste programa.
O cruzamento realizado pelo TCU é complexo. São dados provenientes da Receita Federal do Brasil, Renavam, beneficiários de auxilio reclusão, sistema do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), Sistema de Controle de Óbitos (Sisibi), Cadastro Nacional de Empregados e Desempregados (Cagede), Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos (Siape), Cadastro Único para Programas Sociais (CadUnico), Relação Anual de Informações do Ministério do Trabalho e da Previdência Social (RAIS).
Não há outros órgãos públicos que tenham tecnologia para realizar cruzamentos deste porte. O levantamento, realizado em oito estados (Amapá, Goiás, Mato Grosso do Sul, Pará, Rondônia, Roraima, São Paulo e Tocantins), concluiu que 578 mil famílias não poderiam ser beneficiárias do PNRA.
Ao manter essas famílias, segundo o TCU, os cofres públicos sofrem o prejuízo da ordem de R$ 2,8 bilhões. No resto do Brasil, todos os processos para novos beneficiários da reforma agrária foram paralisados. Foi a primeira vez que um órgão de controle suspendeu um programa inteiro do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) a partir de análise de casos em amostragem.
As famílias consideradas irregulares, sem nenhuma notificação anterior, ficaram impedidas de acessar políticas de crédito rural, além de outros direitos sociais, tais como a matrícula escolar e universitária, inscrição em vestibulares ligados ao Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) e licença maternidade.
Obviamente, este texto não defende a não fiscalização da política pública. Mas quero destacar pontos do acórdão do TCU que considero passíveis de debate diante de desigualdades sociais – a perpetuação delas – e perspectivas classistas sobre a reforma agrária.
Com pesquisas realizadas apenas nos escritórios das superintendências regionais do INCRA, cuja base precisa de atualizações e reformas no sistema de informação, a análise realizada pelo TCU leva em conta a situação atual das famílias beneficiárias pelo PNRA, e não a condição pela qual elas foram inscritas no programa e assentadas em algum município.
Desta forma, a partir da condição atual de cada beneficiário, perfis foram identificados como não aptos ao PNRA, tais como proprietários/as com área maior do que um módulo rural; aposentados por invalidez; portadores/as de deficiência física ou mental; titulares de mandatos eletivos; pessoas com idade inferior a 18 ou maior que 60; pessoas com renda superior a três salários; pessoas cujo lote recebido fica em local diferente do de residência; servidores/as públicos.
Estes perfis apresentariam, ou restrições para o trabalho no campo, ou “sinais exteriores de riqueza”, conforme o TCU, o que não poderia constar em um beneficiário da reforma agrária. Ou seja, uma pessoa já assentada não poderia ter mobilidade econômica, política e social e deveria apresentar um tipo de condição física e mental determinado.
Em casos concretos, se tomarmos o acórdão do órgão de controle, uma pessoa beneficiária da reforma agrária não poderia vir a ser um/a servidor/a público/a, não poderia concorrer a nenhum cargo eletivo, não poderia ter um automóvel de mais de R$ 70 mil – vale lembrar que tratores e colheitadeiras custam bem mais que isso no mercado.
Dois casos apontados pelo TCU chamam mais atenção: a proibição ao cargo público e a impossibilidade de ascender economicamente. São apontados 145.638 beneficiários irregulares por possuírem algum cargo público, seja ele de caráter administrativo, ou político. Aqui se incluem os professores, agentes de saúde e merendeiras que são beneficiários e atendem ao município, ou mesmo ao estado.
No caso da representação política, o TCU considerou irregular todos os/as assentados/as que passaram a ser vereadores/as, deputados/as, prefeitos/as, etc. Ou seja, seria proibida a estas pessoas a oportunidade da disputa eleitoral, de atuar politicamente em espaços institucionais, o que fere frontalmente o sentido da igualdade de oportunidades para a ação política.
O outro caso se trata da ascensão econômica de um assentado. O TCU considerou irregular os 26.818 beneficiários que possuíam quotas e ações em sociedades empresariais de qualquer natureza. Deste modo, pessoas cooperadas em agroindústrias, ou que possuam algum tipo de estrutura de processamento industrial de sua produção estariam fora do PNRA por ser caracterizado como composição de empresa. Foi também vedado a execução de qualquer outra atividade de complementação de renda, a não ser a agropecuária.
Há uma compreensão sobre a forma de vida do/a assentado/a, onde a referência parece ser a pobreza, não a possibilidade de crescimento econômico e melhoria de vida. A limitação da organização econômica dos/as assentados/as os destina à produção para própria subsistência, ou a uma produção que não possui valor agregado, passível a atender mercados locais, ou mercados maiores.
Ao questionar “sinais exteriores de riqueza”, o TCU nos diz que a pessoa beneficiária da reforma agrária deve ter restrições de ascensão econômica e financeira, o que o destina a um modelo de vida específico para o/a trabalhador/a do campo, fazendo uma segregação a quem tem direito a ter determinados bens e serviços, e quem não tem.
O acórdão do Tribunal de Contas da União ainda não levou em conta situações cotidianas da vida social. Jovens e idosos também são excluídos dos beneficiários, mesmo que eles estejam em condições para o trabalho no campo, ou estejam emancipados, conforme o Código Civil Brasileiro.
Aposentados/as por invalidez, ou portadores/as de deficiência física ou mental, beneficiários do INSS, também estariam fora do PNRA. O órgão considerou irregulares as famílias que permaneceram nos lotes após o falecimento do beneficiário, ponto já pacificado através da lei 13.001/2014, que estabelece direitos sucessórios. Os/as que recebem auxílio reclusão também foram excluídas, por terem “mal antecedentes”.
O INCRA, ainda durante o Governo Dilma, chegou a contestar por três vezes a decisão drástica do TCU com a proposição de correções de possíveis irregularidades por meio de planos de trabalho. Mas os apelos foram sumariamente negados.
No entanto, os ventos mudaram após o golpe de Estado: no último dia 21 de setembro, o TCU suspendeu por 120 dias o bloqueio de 400 mil famílias beneficiárias, o que mostra uma condescendência do órgão com o novo governo. Ficaram de fora os casos que envolvem jovens e idosos, pessoas consideradas sem bons antecedentes, pessoas que apresentam “sinais exteriores de riqueza”, dentre outros.
*Mayrá Lima é doutoranda em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB)
Fonte: MST.