A pandemia e a guerra na Ucrânia aceleraram a crise do sistema capitalista a nível global. Agora, governantes em todo o mundo discutem como sair da recessão, mas nem sempre o que se debate nas cúpulas de poder é o que os povos necessitam.
Nesse mês de junho, em Los Angeles, aconteceu a 9ª Cúpula das Américas, o encontro mais importante da Organização dos Estados Americanos (OEA). Em paralelo, a Assembleia Internacional dos Povos organizou a Cúpula dos Povos para questionar o papel da OEA no apoio a golpes de estado e bloqueios contra nações latino-americanas, e também para estabelecer uma agenda de lutas dos movimentos do continente americano.
Para conversar sobre a Cúpula das Américas e sobre a realidade dos Estados Unidos, o Caminhos para o Mundo entrevistou Kenia Alcocer, líder comunitária e copresidenta da Campanha pelos Pobres da Califórnia. Nascida no México, Kenia tornou-se uma das principais lideranças à frente da organização de imigrantes em Los Angeles, além de ter sido uma das organizadoras da Cúpula dos Povos.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Você, que trabalha com pessoas vulneráveis, como a população em situação de rua em Los Angeles, o que poderia dizer sobre a ideia de sonho de vida americano?
Kenia Alcocer: Acho que, por muito tempo, as pessoas migraram aos EUA em busca do sonho americano. Mas notamos que o sonho americano se transforma em um pesadelo. Porque o que se promete não é sempre o que se vê. E porque, com tanta decadência no sistema econômico, que atinge principalmente os pobres, o sonho americano foi arrebatado, como também ocorreu em 2008, quando houve a desvalorização dos imóveis e muitos perderam suas casas. Aqui muitos se referem ao sonho americano como o sonho da casa própria. Comprar sua casa, ter um trabalho estável… Mas, em 2008, vimos que esse sonho desapareceu para muitos quando perderam suas casas por culpa do mercado imobiliário. E pouco a pouco vemos que esse sonho americano deixa de ser uma realidade principalmente para os migrantes. Levamos décadas lutando por uma reforma migratória que não acontece.
Temos um partido político que é muito antimigrante, os republicanos. E um Partido Democrata que não solucionou até hoje os problemas da comunidade. São algumas das lutas que estamos realizando para poder continuar batalhando os direitos das comunidades. Durante a pandemia, esse sonho se tornou ainda mais sombrio. Vimos que vivemos no país mais rico do mundo e ainda assim não temos direito a cuidados de saúde e não temos garantia de moradia, de alimentação, de um salário digno, nem temos garantia de que um empregador nos dê os benefícios trabalhistas de que precisamos. Durante a pandemia, vimos que a comunidade teve que sobreviver sozinha. Porque as infraestruturas que deveriam estar ali, para nos dar apoio em momentos como esse, não existem.
Os Estados Unidos atravessam uma crise profunda. Antes de se recuperar da bolha financeira de 2008, agora o país tem os maiores índices de inflação da última década, desabastecimento, crise energética e 37 milhões de pessoas na pobreza. Esse cenário de decadência poderia favorecer o surgimento de alguma alternativa de esquerda na política nacional?
Sim, estamos nos organizando de forma mais constante, porque estamos vendo que, nós, pobres e desfavorecidos neste país precisamos levantar nossa voz e recuperar a democracia perdida. E que muitos dizem que nunca existiu. Aqui, nos EUA, somos mais de 140 milhões de pobres e desfavorecidos. Notamos, também durante a pandemia, que não se pode separar e não podemos continuar lutando por causas individuais. Temos que nos unir. Na nossa comunidade, não somos apenas migrantes, também somos inquilinos, e também somos trabalhadores. Então todas as questões que afetam a comunidade devem ser resgatadas para começarmos a lutar por elas.
Por isso somos parte da Campanha Nacional de Pessoas Pobres, que é um chamado ao renascer moral. Essa campanha engloba todas as questões. Estamos falando sobre acabar com a pobreza, com o racismo sistêmico, com a devastação ecológica… E de acabar com essa economia baseada em guerras. Mas também acabar com uma narrativa moral distorcida de supremacia branca e cristã. Precisamos ter um impacto em todos esses aspectos para poder realmente gerar uma transformação no país que beneficie os pobres, à comunidade, que foi sacrificada durante a pandemia para que os ricos deste país se tornassem mais ricos. Ao fazer isso, acreditamos que estamos contribuindo e trabalhando para não apenas nos libertarmos no processo, como também começar a libertar o mundo dos tentáculos imperialistas que este país teve até hoje.
Nas eleições estadunidenses há determinados estados considerados decisivos, entre eles está a Califórnia, com mais da metade da população nascida no exterior, e a Flórida, que concentra 18% da população imigrante dos Estados Unidos. Qual a diferença entre administrações republicanas e democratas para os imigrantes?
Honestamente, não há diferença. Nenhum dos dois partidos fez nada para solucionar o problema migratório. Ambos seguem agendas imperialistas, em vez de frear a emigração de países centro-americanos, por exemplo, os tornam mais vulneráveis, para que continuem sendo países com migração em massa aos EUA. Não vemos diferenças entre os partidos. Vivemos em um lugar onde quem deveria estar nos defendendo, que geralmente defendem a comunidade migrante, batem à nossa porta para conseguir o voto latino e o voto das minorias. Foi assim nas últimas eleições, em que foram feitas caravanas de migrantes para Georgia, Pensilvânia, Nevada, estados que costumam ser “roxos”, nunca se sabe quem vai ganhar lá. Eles conseguem o voto, mas não respondem com benefícios.
Kamala Harris visita a América Central e em vez de buscar uma solução para acabar com a emigração e fortalecer esses países para que não seja preciso migrar, ela diz ao povo: “Não venham mais, as portas estarão fechadas”. Observamos que as deportações, em geral, nunca foram interrompidas. E, se a questão é aquele horror que foi muito comentado durante o período da presidência de Donald Trump de crianças em jaulas, pois saibam que isso continua. Há milhares de crianças em jaulas e estamos sob um governo democrata que não está nos dando soluções.
Agora, o movimento migrante jovem, que começou a se mobilizar, os chamados Dreamers, enfrentaram uma gestão democrata. Pensávamos que Obama seria uma solução e que seria feita uma reforma migratória. Percebemos que ele não só não cumpriu nossas expectativas, dando-nos pequenas concessões, como também foi o líder das deportações naquele período, de uma forma muito massiva. 2,5 milhões de pessoas foram deportadas durante sua presidência. Quando Trump chegou ali, Obama havia deixado uma máquina em funcionamento para que ele só apertasse os parafusos e deportasse ainda mais gente, e continuasse aprovando políticas que afetaram ainda mais a vida dos imigrantes.
Em novembro acontecem as eleições de meio termo para renovar parcialmente o Congresso. Segundo as últimas pesquisas de opinião, o Partido Republicano pode vencer. O que isso impacta na política estadunidense em relação à América Latina?
Bom, se os republicanos recuperarem o Congresso e o Senado teremos, é claro, políticas muito agressivas contra países latino-americanos, principalmente no que se refere à imigração. Nós já vimos este país impondo certas políticas para tentar deter a imigração através da proibição da entrada de um país a outro. Por exemplo, agora é preciso um visto na América do Sul para ir ao México. É preciso um visto em certos países para entrar a outros dentro da América Latina. Vemos isso como uma forma de ataque.
Mas também sabemos que o Partido Republicano, principalmente durante a pandemia, aprovou políticas que fizeram com que não houvesse vacinas no resto do mundo, não só na América Latina, impedindo que nesses lugares pudesse haver comunidades saudáveis. Vimos também o bloqueio à Cuba. As vacinas não foram distribuídas de uma maneira em que o povo cubano pudesse se proteger contra a covid-19. E vemos muitas políticas e tratados de livre comércio que, obviamente, os EUA promovem para continuar se beneficiando dos recursos naturais e da mão de obra barata desses países. Por isso é tão importante para nós lutar estando aqui, porque estamos vendo que nos EUA precisamos, de fato, fazer com que escutem nossa voz, porque quando essas pessoas assumem o poder também ocorrem ataques específicos ao povo norte-americano.
Um exemplo são os ataques aos direitos das mulheres. Nos últimos meses, vimos o ataque a um direito feminino. A Corte Suprema vai discutir novamente se a mulher tem direito ao aborto. A lei que nos dava esse direito pode ser revogada. É algo muito importante. No sul do país, estamos vendo ser constantemente aprovadas leis que tentam tirar o direito ao voto a pessoas não brancas, principalmente pessoas afro-americanas. Então estamos lutando também contra muitas leis reacionárias que querem eliminar votos. Hoje temos menos votos para as pessoas que votam e mais leis de repressão ao voto das pessoas afro-americanas do que havia na época do movimento civil iniciado por Martin Luther King. Então essa volta ao passado, às segregações, e o fato de que até nas escolas estão propondo que não se possa falar sobre a verdadeira história dos EUA.
Tudo isso é importante, porque estamos retrocedendo em uma escala muito significativa que pode ter um impacto em nossa comunidade. E sabemos que os companheiros e companheiras nos EUA que votam nos republicanos, em gente como Trump, fazem isso porque seus problemas não estão sendo solucionados. É porque são pessoas pobres e desfavorecidas e não compreendem a estrutura dos EUA que os mantém em condições precárias. Vendem a eles a ideia simplista de que é culpa dos migrantes e das pessoas não brancas que sua situação não melhora. Sabemos que não é verdade. O fato de eles não terem trabalhos dignos é porque as grandes corporações não são obrigadas a pagar impostos e pagar salários dignos. O fato de nossas comunidades estarem em decadência também é por isso. Porque as grandes corporações não pagam impostos. Se fossem obrigados a pagar impostos e salários dignos, haveria uma solução melhor para as comunidades. Infelizmente, não é assim.
Há dinheiro para esses bilionários viajarem ao espaço, mas não para pagar salários dignos e seguro de saúde e tempo para tirar férias com a família e tempo para se recuperar de doenças. Para isso não há dinheiro, mas sim para desperdiçar. Então isso também é parte da nossa luta aqui. E vimos ressurgir as mobilizações. Muitos desses trabalhadores estão lutando pelo direito de ter um sindicato. Os trabalhadores da rede Starbucks e Amazon vêm tendo grandes conquistas nesse sentido, mas ainda há muito o que fazer. Porque fomos divididos de tal forma que é preciso conquistar o direito a um sindicato em cada loja. Ou seja, não podemos dizer que todas as Starbucks têm sindicato. Às vezes a forma como somos divididos neste país serve para nos separar em seções. Como diz o reverendo William Barber, se eles são cínicos para se unir, nós temos que ser suficientemente estratégicos e inteligentes para nos unir aqui nos EUA.
A CELAC – Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos – foi criada em 2010 para promover a integração regional como uma alternativa à OEA. Agora, novamente, a comunidade aparece com força nos discursos de governantes progressistas da região, como Andrés Manuel López Obrador e Alberto Fernández. Você acredita que a CELAC poderia substituir a OEA?
É uma grande possibilidade. Temos que criar alternativas a essas instituições. Também por isso foi tão importante para nós fazer uma contracúpula à Cúpula das Américas. Devemos sempre ter alternativas ao que tentam nos impor. Deve haver sempre uma oposição e acho que este é um momento importante para poder começar a promover a ideia de que precisamos abolir a OEA. A OEA não vem trabalhando para os interesses de todo o povo americano em todo o continente. Só vem servindo aos interesses dos EUA. Então espero que este seja um momento de buscar alternativas que funcionem para todos os povos e um espaço onde ninguém seja excluído. Essa também é a importância desses espaços.
Os EUA ainda têm uma mente colonial e acham que podem dizer: “Você pode vir à festa, você não”. Isso não deveria existir. Dessa maneira, querem impor sua lei. Temos que lutar contra isso. Então espaços assim poderiam dar uma voz real a todos os povos americanos. como também ações concretas que possam mudar a vida cotidiana de todas as pessoas pobres em todos esses países.
Considerando a CELAC uma articulação a nível de estados, a ALBA Movimentos e a Assembleia Internacional dos Povos representariam a integração entre os movimentos populares e os povos da região?
Acho que sim. Nós estamos nos organizando no âmbito local, da cidade e do estado. Acho importante termos representação dentro desses processos. Nossas comunidades, que são impactadas diretamente por todos esses problemas, deveriam ser as comunidades que se reúnem para buscar soluções concretas aos seus problemas. E sabemos que já temos soluções concretas para nossos problemas. Por exemplo, no momento, estamos conversando sobre um congelamento total no preço dos aluguéis. As pessoas não conseguem pagar aluguel. Estamos discutindo que o acesso à comida, água limpa e ar limpo deve ser um direito humano. E de que precisamos desmilitarizar nossas comunidades e departamentos policiais que estão matando pessoas nas ruas sem consciência.
Então as comunidades têm soluções concretas para que, ao se reunir com os governos, possam ter os debates necessários para ver como começaremos a caminhar rumo a um espaço onde as necessidades dos pobres esteja realmente no centro de todas as agendas. Seja abolindo a polícia, buscando formas de começar a tirar as bases militares desses países e também daqui. Os EUA têm bases militares em muitos lugares e elas realmente estão contaminando nossas comunidades. Então é importante ver como podemos começar a trabalhar juntos. O governo precisa do povo para guiá-lo.
Onde assistir ao programa
O Caminhos para o Mundo tem duração de 30 minutos e vai ao ar quinzenalmente, às terças-feiras, sempre às 20h, nos canais do Brasil de Fato e da TVT no YouTube.
Na TV aberta, o programa é exibido na TVT, canal 44.1 – sinal digital HD aberto na Grande São Paulo e canal 512 NET HD-ABC.
Edição: Thales Schmidt