Por Júlio Carignano.
Fazendeiros proibiram o acesso de políticas públicas de moradia em comunidade.
A demarcação de terras em Guaíra, no Oeste do Paraná, voltou ao debate nos últimos dias devido a reações hostis de grupos contrários aos direitos das comunidades indígenas. A Justiça Federal já determinou que as demarcações devem ocorrer, uma vez que a região é historicamente habitada por povos originários. No mês de outubro, o Ministério da Justiça e a Fundação Nacional do Índio (Funai) foram intimados a prestar esclarecimento sobre a paralisação de atividades de grupos de trabalhos que faziam o estudo demarcatório na região de Guaíra.
A Justiça Federal determinou que o prazo para a conclusão do estudo é 31 de dezembro de 2018 e tem promovido audiências entre indígenas, produtores rurais, prefeituras, governos estadual e federal, e empresas públicas, como a Itaipu, em busca de conciliação para a disputa. Nas últimas semanas, técnicos da Funai estiveram em Guaíra e Terra Roxa para fazer o levantamento fundiário da região em estudo, afim de dar sequência no processo. A realização do estudo de identificação e a delimitação da área é somente a primeira etapa do processo de demarcação, que ainda passará pelas fases de contestações e direito ao contraditório, declarações de limites, demarcação física, homologação e registro como patrimônio público da União.
Para compreender a situação envolvendo a questão territorial no Oeste do Paraná, em especial em Guaíra, é preciso voltar ao tempo da colonização forçada na região por meio de empresas colonizadoras, que resulta do esbulho de territórios de comunidades estabelecidas às margens do Rio Paraná.
As terras reivindicadas como ancestrais pelos Avá-Guarani e que estão no processo de demarcação determinado pela Justiça Federal envolvem títulos originais da Companhia Matte Laranjeira e da Fundação Paranaense de Colonização e Imigração (FPCI), datados de 1912 e 1961 respectivamente. Esses títulos foram cedidos irregularmente pelo Governo do Paraná para colonos, como se fossem terras devolutas, ignorando a presença de comunidades indígenas na região. Desde a fundação da cidade, os indígenas foram a principal fonte de mão de obra, responsáveis pelo funcionamento da linha férrea entre Guaíra e Porto Mendes e trabalhando para os colonos que chegaram à região.
Neste caso, o pagamento de indenizações aos proprietários de “boa fé” seria de responsabilidade do Governo do Paraná, que na época repassou de forma irregular os títulos durante o processo de assentamento de colonos vindos de outras regiões do Estado. A Funai realiza o pagamento das benfeitorias, como cercas, construções e plantações permanentes. Os órgãos públicos envolvidos tem procurado encontrar mecanismos para pagamento dos títulos, com intermediação Ministério Público Federal.
Apesar de todo processo histórico, a retomada dos Avá-Guarani de seus territórios tradicionais no Oeste do Paraná acirrou nos últimos anos um conflito fundiário de grandes proporções alimentado por muito preconceito e desinformação. Com o intuito de criar um clima de pânico na população, setores do agronegócio começaram a plantar informações que nunca estiveram no processo de estudos e identificação da Funai, especialmente em relação a área que será delimitada para demarcação.
No início do processo, entidades ruralistas e ONGs que propagam defender o “direito à propriedade” chegaram a afirmar que a Funai pretendia demarcar 100 mil hectares de terra, em uma extensão compreendida entre as cidades de Guaíra e Foz do Iguaçu. Esse número fantasioso chegou a ganhar eco em discursos de políticos do Oeste do Paraná ligados a bancadas ruralistas, como o deputado estadual Elio Rusch (DEM), o deputado federal Nelson Padovani (PSDB) e o senador Sergio Souza (PMDB).
Atualmente, a tática usada pelos grupos contrários à demarcação é de que os estudos da Fundação Nacional do Índio incluem áreas urbanas de Guaíra, em especial nas periferias, como forma de colocar a população mais pobre do município contra os Guarani. O presidente do Sindicato Rural de Guaíra, Silvanir Rosset, garante que “30% de todo o território da cidade será demarcado”.
“Através da mídia, os grandes proprietários conseguiram mudar a opinião da sociedade e a toda população começou a nos olhar como bandidos. O sindicato rural coloca medo nos pequenos produtores, nas pessoas pobres, espalha mentiras que vamos tomar várias terras. Que vamos invadir a cidade”, diz Ilson Soares, da aldeia Y’Hovy, em Guaíra.
Manifestação anti-indígena
Esse tipo de informação não oficial é alimentada em grupos de Whats app e nas redes sociais e estão sendo utilizadas nos últimos dias como forma de mobilizar os moradores da cidade para uma manifestação que estava programada para acontecer quarta-feira (5), a partir das 13h, no centro de Guaíra. Contrários ao estudo demarcatório, ruralistas, empresários e vereadores da cidade convocaram a manifestação anti-indígena como um “ato pacífico em defesa da propriedade”.
A presidente da Câmara de Vereadores de Guaíra, Elza Romoda (PT), é uma das lideranças que encabeçam esse movimento. Por meio de um vídeo divulgado em sua rede social, Elza conclama moradores, comerciantes e proprietários para o ato. Ela afirma com convicção que “pessoas irão perder suas casas com as demarcações”. Os vereadores Sandro Sabino Borges (PP), Marlene Dallacosta (PTB) e Ligia Lumi Suga (DEM) também gravaram vídeos para o ato anti-indígena.
No fim da tarde de terça-feira (5), a Prefeitura de Guaíra divulgou nota manifestando que está buscando soluções para os conflitos fundiários na cidade, além de apoio à manifestação. “O prefeito [Heraldo Trento] é contra o atual modelo demarcatório e entende que toda e qualquer solução deve compreender modelos que contemplem os interesses, sem prejuízo de ninguém”, diz trecho da nota.
Ruralistas impediram doações em aldeias
Uma demonstração da hostilidade contra os Avá-Guarani aconteceu na segunda-feira (4) quando moradores de Guaíra, liderados por fazendeiros, impediram que políticas públicas chegassem até as comunidades. Cerca de 100 pessoas bloquearam a entrada do tekoha Y’Hovy, aldeia próxima ao bairro Eletrobras. “Eles cercaram as entradas e tentaram invadir a aldeia pelos fundos”, comenta Ilson Soares.
O grupo buscava impedir que um caminhão entrasse na comunidade para entregar madeiras compradas através do Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR), que seriam utilizadas para a construção de casas na comunidade que vive em situação de vulnerabilidade, com moradias precárias. Ao tomarem conhecimento da entrega, grupos contrários começaram a espalhar que tratava-se de um processo de demarcação da terra. Fato desmentido por servidores da Funai, que relataram que os kits móveis fazem parte de um programa que desde 2010 atende comunidades em situação de vulnerabilidade.
Relatório de violações de direitos humanos
Tratados como “invasores” por parte da sociedade que desconhece o processo histórico dessas comunidades, os Avá-Guarani de Guaíra e Terra Roxa, outro município próximo, também sofrem com a falta de acesso aos direitos básicos, preconceito, agressões físicas e verbais e casos de suicídio.
Situações denunciadas e reunidas no relatório “Guaíra & Terra Roxa sobre violações de direitos humanos contra os Avá Guarani”, lançado no dia 9 de agosto, Dia Internacional dos Povos Indígenas, em uma das aldeias do município.
Elaborado pela Comissão Guarani Yvy Rupa, com apoio do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), o relatório traz violações aos direitos humanos cometidos contra os quase dois mil Guarani que habitam a região. A pesquisa foi realizada por uma equipe de oito pessoas – entre indígenas e não indígenas – que visitaram pelo menos três vezes cada uma das 14 aldeias da região com o propósito de fazer entrevistas, reunir dados e documentos que comprovassem essas violências e violações.
“As autoridades locais e estaduais sabem o que acontece aqui nas nossas comunidades, estão cansados de saber e não fazem nada. Por isso queremos que essas denúncias cheguem a autoridades maiores, cheguem até as organizações internacionais para que saibam que no Oeste do Paraná não se respeita a Constituição e os tratados internacionais”, diz Paulina Martines, liderança da aldeia Tekoha Y’hohy, durante o lançamento do relatório.
Fonte: Brasil de Fato.