Povo Truká: embate com Assembleia de Deus “foi para preservar tradições”, diz cacique

Cacique Gilberto Truká também conversou com o Brasil de Fato sobre luta por demarcação, narcotráfico e transposição

Por Vinícius Sobreira.

O povo indígena Truká tem uma população de aproximadamente 3,5 mil habitantes, majoritariamente no município de Cabrobó, sertão pernambucano. A atual demarcação provisória (2002) do território indígena Truká tem 9.688 hectares, incluindo a ilha de Assunção e dezenas de ilhotas vizinhas.

Os Truká batalham para que a demarcação das terras se estenda também a uma parte do território continental de Cabrobó, onde também vivem indígenas.

No entanto, a Fundação Nacional do Índio (Funai) tenta um acordo que não conflite com os posseiros que vivem nesse território. A região também sofre com atuação de narcotraficantes, o que torna a situação ainda mais complexa.

Após embate com a Assembleia de Deus, ocorrido no final de abril, o cacique Gilberto “Bertinho” Truká concedeu uma entrevista ao Brasil de Fato Pernambuco em que tratou dos temas que marcam o povo Truká: a luta por demarcação, os assassinatos, o narcotráfico, os impactos da Transposição do Rio São Francisco e o quadro de vacinação.

Brasil de Fato Pernambuco: Gostaria que você nos contasse como é a vida dos Truká hoje, território, população, as atividades econômicas.

Cacique Bertinho Truká: A maioria de nós vive aqui na Ilha de Assunção, que tem 6.200 hectares. Temos mais 73 ilhotas que formam o arquipélago. Alguns indígenas vivem na área urbana, porque o espaço territorial que conseguimos demarcar até hoje não comporta todo mundo. Temos um novo processo de retomada já há 10 anos, mas não conseguimos avançar por questões governamentais. É uma área de 6 mil hectares de terra que fica no continente. Estamos nessa luta, mas esse Governo Federal infelizmente impede a demarcação de terras. Vivemos praticamente da agricultura familiar, da piscicultura. Mas o principal é a agricultura familiar, é o cultivo da terra para a nossa subsistência. Somos 2,5 mil dentro da Ilha de Assunção. Mas tem mais vivendo na periferia de Cabrobó.

Sobre o caso do fim de abril envolvendo o pastor Jabson Avelino, da Assembleia de Deus, que resultou numa resposta do povo Truká, você estava presente naquela reação do seu povo? Como está a relação com os indígenas evangélicos?

Sim, eu e outras lideranças estávamos presentes para tentar conter a comunidade, que estava muito revoltada. Esse tumulto está gerando muitos comentários no município – algumas pessoas até achando que os indígenas fomos agressivos. Mas é necessário saber que nós enquanto organização interna do povo procuramos diversas vezes as pessoas que fazem parte dessa congregação Assembleia de Deus para conversar sobre essa construção do templo.

Já tem mais de 10 anos que conversamos, várias vezes, com os indígenas que são parte da Assembleia. Dissemos que não era permitida a construção do templo dentro do território indígena. Falamos com o presbítero Jean e o diácono Adeildo. Explicamos que a evangelização deles desrespeitava os costumes e tradições do povo Truká.

Eles falavam que nós evocávamos o demônio. Consideramos que estavam nos discriminando e nos associando a um termo, o “diabo” ou “satanás”, que não tem nada a ver com a nossa religiosidade. Nós não conhecemos essa figura dentro das nossas crenças e rituais.

A estabilização dos Truká na região se deu em 1722, sobrevivendo a enchentes, ordens de extinção pela Monarquia e tentativas de escravização pelos latifundiários. / Comunidade Truká/arquivo

O pastor Jabson teve a infeliz ideia de gravar uma live, se portando de modo um tanto infeliz. Ele se refere aos nossos encantados de luz como se a luz dos nossos encantados estivesse “cortada” porque quem estava com ele [com o pastor] era maior. São palavras ditas naquele vídeo.

Isso revoltou nossos anciões, nossos pajés, que têm uma relação mais próxima com os encantados. Foi um abalo muito grande, alguns idosos passaram mal ao verem o vídeo do pastor Jabson. Isso levou à revolta dos indígenas. Fomos lá e demolimos a construção que estava sendo erguida sem anuência do povo. Era uma obra ilegal.

No fim do vídeo o pastor ainda se gaba, dizendo que apesar da pandemia a Assembleia de Deus estava conseguindo criar novos polos dentro do município, inclusive citando a Ilha de Assunção.

Demos a resposta que entendíamos como necessária naquele momento para a preservação da nossa cultura, crenças e tradições. A lei fala que o território indígena é demarcado para o seu uso, costumes e tradições e que tem que ser respeitada a organização interna do povo. Mas eles quiseram afrontar as lideranças.

Nós temos uma visão de que quando morremos nos transformamos em encantados. Os que tombaram [morreram] são encantados para nós. Então é necessário respeito. E compreender que vivemos num país com uma diversidade cultural e religiosa linda. Precisamos respeitar os povos de terreiro, que também sofrem muito, mas que por tristes e duras penas contribuiu tanto para o nosso país.

Precisamos de mais contatos inter-religiosos, acabar com a tentativa de imposição de uma religião sobre a outra. Queremos o respeito a nossa Jurema Sagrada e que nossos filhos e netos valorizem essas forças ancestrais que vêm das águas, das árvores, da caatinga, das matas, do ar.

Mas em relação aos indígenas que congregam na Assembleia, temos tentado um diálogo da melhor forma possível, dizer que não existe uma verdade absoluta. Nunca proibimos eles de participarem de qualquer congregação, Assembleia ou outras. Só explicamos a necessidade de você se reconhecer, defender sua cultura, identidade e ancestralidade.

É importante eles perceberem que os ancestrais deles, os avós e pais, morreram lutando pela preservação da nossa cultura para que hoje pudéssemos estar aqui nesta terra. Vale a pena submeter nossos antepassados esse julgo tão pesado que recebemos do pastor?

Fale um pouco da retomada histórica de 1999 e como está a luta pela demarcação das terras hoje?

Em 1981 foi uma das primeiras retomadas de terras indígenas, depois 1994 e as subsequentes. Em 1999, bloqueamos a entrada na ilha e dissemos que a partir daquele momento os não-indígenas não poderiam mais ficar na ilha e era hora de recuperarmos a terra que era nossa por direito.

Foi um marco para nós. Havia posseiros poderosos, com aliados políticos. Foi uma briga grande em que todos se empenharam. E graças aos encantados conseguimos vencer essas barreiras e ter a Ilha de Assunção para o povo Truká.

Hoje já “desintrusamos” toda a ilha. Não tem mais posseiros. Mas essa parte do continente ainda estamos lutando, para garantir que as famílias fiquem devidamente nesse território para desenvolver suas atividades.

Atualmente são 100 famílias nesse território, mas numa área de terra muito pequena que não comporta todo mundo. O território indígena original era de 300 mil hectares. Mas é muito difícil. Lutamos hoje pelo mínimo de três mil hectares no continente conseguiríamos alocar muitas famílias.

Por não ser mais o território da ilha, mas continental, é um entrave. Muita gente, em especial os posseiros, não compreendem que o território indígena Truká não é restrito à ilha.

Na colonização o que nos restou foi uma pequena fatia de um grande território que pertence ao povo indígena, mas que nos é negado esse direito. Não há um conflito direto com os posseiros que vivem nessa área continental, mas indiretamente eles buscam meios, conseguiram legalizar terras [via Incra] mesmo os estudos antropológicos mostrando que aquele território é indígena. Essa legalização dificulta a demarcação.

Os Truká batalham para que a demarcação das terras se estenda também a uma parte do território continental de Cabrobó / Funai

A luta por demarcação é um processo muito lento, com muitos conflitos. Alguns posseiros dizem que se Funai pagar, eles saem. Mas outros não, buscam brechas na Justiça para permanecer no território. E o Governo [Federal, responsável pela demarcação de terras] realmente trata com muito descaso a questão da demarcação de terras. Principalmente nesses últimos anos não temos situações governamentais favoráveis nem aos indígenas e nem a nenhum movimento social. Então está tudo paralisado.

Isso vem se demorando há muitos anos e não conseguimos avançar porque o governo não quer. É muita morosidade nas questões indígenas e outras minorias, que são os que mais sofrem porque esse governo não reconhece a diversidade de comunidades tradicionais dentro do território nacional.

A década seguinte àquela retomada de 1999 foi bastante dura para os Truká. Vocês tiveram ao menos três lideranças assassinadas. Qual o contexto daquelas mortes?

Dena e Jorge [em 2007] foi um episódio muito triste. Jorge era muito jovem. Estávamos comemorando a vinda de um ministro para dar início a construção de uma PE [rodovia estadual] que cortava a Ilha de Assunção e isso serviria para o deslocamento da nossa comunidade. Logo após a saída do ministro chegou um grupo de pessoas e cometeram assassinatos em frente a vários indígenas, crianças, idosos.

Isso trouxe uma repercussão grande, negativa, quando pudemos ver que por mais que tivéssemos ganhado nosso território, também ganhamos muitos inimigos dispostos a derramar sangue no nosso território. Passamos a ter mais cuidado com nossas lideranças.

Pouco depois, em 2008, tivemos a perda de Mozeni. Foi muito triste. Todo mundo estava empenhado em ter uma representação na Câmara de vereadores para tentar ter voz junto ao município sem precisar de intermediários não-indígenas. Mozeni era o candidato do nosso povo e ele foi assassinado com um tiro na cabeça.

Ele era uma liderança dentro do movimento indígena não só para os Truká, mas a nível estadual e nacional. Foi uma grande perda para a nossa comunidade. Entendemos que foi algo articulado, premeditado, uma retaliação para não termos essa vaga no nosso município.

Mas em relação a disputa atual com os posseiros, existem ameaças do tipo?

Apesar de ser uma relação pacífica, sempre ficamos receosos para um possível enfrentamento que precisará ser feito. Mas mesmo com esse receio, temos famílias lá [no continente] lutando pelo reconhecimento e demarcação desse território. Não podemos nos calar, já que é uma luta legítima para o nosso povo e a comunidade ter um espaço para viver sem interferências.

Sei que a região tem uma história de atuação forte do narcotráfico, por vezes até envolvendo terras indígenas. Gostaria de saber como está essa relação hoje?

Nos últimos anos reduzimos a atuação dos narcotraficantes no nosso território. Fizemos um abaixo-assinado envolvendo toda a comunidade na época em que os conflitos estavam frequentes. O território indígena, por ser federal, só era permitida a atuação da Polícia Federal, mas o contingente da PF não dava conta de fazer a proteção do território.

Então fizemos um acordo com a Polícia Militar para terem um grupo especializado atuando no nosso território e fiscalizar a entrada nas ilhotas, que são de mais difícil acesso. Isso acabou com mais de 80% do narcotráfico na região e podemos dizer que aqueles conflitos são coisa do passado. O território Truká está livre desse problema.

Em relação a Transposição do Rio São Francisco, como o território indígena Truká foi ou tem sido impactado por esse megaempreendimento do Governo Federal?

Essa obra é dentro do território indígena, numa área pela qual pretendíamos lutar pelo reconhecimento e demarcação no futuro. Agora é uma área em que nem podemos adentrar. E depois da abertura do canal, o volume de água do rio pequeno [braço de rio] deu uma baixada.

Nos últimos anos alguns peixes sumiram. Não tem mais cheia. E vimos que esse projeto ia contra a preservação dos recursos da natureza.

Muitas famílias que vivem a 10 ou 12 quilômetros da margem do rio passam necessidade de água e o governo, não sei se por falta de vontade, não consegue colocar água para essas famílias que moram próximo. Então a Transposição acaba não trazendo benefício para esse povo humilde que está precisando da água, mas um megaprojeto para favorecer os grandes fazendeiros do agronegócio.

Não temos nada contra levar água do rio para ajudar as comunidades de estados vizinhos, mas vemos a necessidade de uma revitalização no São Francisco, um projeto de tratamento de esgoto em todas as cidades que têm margem no rio, para que não seja jogado esgoto sem tratamento direto no rio. Vemos o rio definhar.

Em relação à pandemia, qual foi o impacto no povo indígena Truká e como está a vacinação?

Tivemos 20 casos detectados, dos quais um resultou em morte. Conseguimos vacinar toda a população indígena aldeada e mais de 90% já está vacinada com a segunda dose. O que ainda está faltando é a vacinação dos indígenas que vivem no contexto urbano.

O ministro [do STF, Roberto] Barroso determinou que a vacinação de indígenas se estendesse aos não-aldeados, mas está um pouco difícil, pela conjuntura política e pela falta de doses de vacina. E a prefeitura não tem dados sobre quantos indígenas vivem na área urbana, então ainda vai levar um tempo para termos a vacinação desses indígenas de maneira específica.

A estabilização dos Truká na região se deu em 1722, sobrevivendo a enchentes, ordens de extinção pela Monarquia e tentativas de escravização pelos latifundiários. / Comunidade Truká/arquivo

Em 2022 completa-se 300 anos da chegada dos Truká a essa região que se tornaria Cabrobó. O que você gostaria que o povo comemorasse nesse tricentenário?

Celebrar a resistência, celebrar a vida, apesar das perdas que tivemos. Queremos dizer – não só à população de Cabrobó – que estamos resistindo nesse pedaço de chão há um bom tempo e vamos lutar para o nosso povo se perpetuar aqui por muitos e muitos anos, sendo respeitado, escutado e vivendo em paz e harmonia dentro do nosso território e da nossa organização.

Queremos ter o diálogo com os não-indígenas no sentido de que não invadam nossas terras e não queiram mais nos maltratar, destruir ou nos matar. Já perdemos demais com a colonização, com o genocídio e agora o etnocídio [destruição de uma civilização ou cultura] que tantos povos indígenas têm sofrido por parte de algumas congregações cristãs.

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