Por Cristiane Sampaio.
Aguardando votação pelo plenário do Senado, o Projeto de Lei (PL) 6407/13, que instaura um novo marco regulatório para o setor de gás no país, é visto com cautela por opositores, especialistas e pela Federação Única dos Petroleiros (FUP). Esta última aponta que a proposta, aprovada pela Câmara dos Deputados na terça (31), tem alguns pontos ainda pouco esclarecidos.
A medida fixa, entre outras coisas, a necessidade de uma autorização no lugar de concessão pública para o transporte de gás natural no país. Com isso, simplifica e, portanto, facilita a entrada de atores privados no ramo. A proposta prevê que será concedida uma outorga para liberar a construção ou a ampliação de gasodutos e estipula que a autorização será dada por meio de uma chamada pública conduzida pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
“Não está claro como a ANP se comportará nesse novo cenário, tampouco houve uma discussão mais aprofundada sobre como se reorganizarão as regulações estaduais. Após a aprovação da lei, muito provavelmente se intensificarão as pressões para a privatização das subsidiárias estaduais de gás”, afirma o coordenador-geral da Federação Única dos Petroleiros (FUP), Deyvid Bacelar.
A declaração do dirigente é uma referência à norma constitucional que define o Poder Executivo estadual como responsável pela distribuição de gás, por meio de empresas públicas. Com uma maior participação de atores privados nesse panorama, o entendimento dos críticos do PL é o de que as estatais locais ficariam mais suscetíveis ao lobby privado, que tem expandido seu poder no país por meio do aprofundamento da política neoliberal.
“Por que colocar em xeque o conceito de que o gás é da União? Por que fazer uma alteração de concessão para autorizações precárias para facilitação, inclusive, da exploração do gás pelo setor privado?”, questionou, por exemplo, o deputado Glauber Braga (Psol-RJ), durante a apreciação do PL na Câmara.
De modo geral, os opositores entendem que a medida seria uma espécie de capítulo posterior à redução da participação da Petrobras no mercado de transporte, logística e distribuição de gás natural no país, que vem ocorrendo nos últimos anos, já que o PL sedimenta o caminho para a atuação privada no setor.
A petroleira vem sendo desidratada especialmente desde 2016, a partir da agenda econômica de Michel Temer (MDB). Atualmente, a cartilha é conduzida pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, que mira a venda de várias empresas públicas, como Eletrobras, Correios, bancos.
Alguns parlamentares, como o deputado Daniel Almeida (PCdoB-BA), defenderam a necessidade de mais tempo para esmiuçar o conteúdo do PL, que teve a tramitação de urgência aprovada no ultimo dia 29. Ele mencionou, por exemplo, o interesse em entender melhor como se daria o poder regulatório do Ministério de Minas e Energia diante das mudanças trazidas pela proposta. Agora, o Senado será o palco da disputa, onde ainda não se sabe o nível de atenção que será dado à pauta.
Longe dos holofotes
Na Câmara, a proposta foi chancelada pelo plenário por um placar de 351 votos a 101 e passou longe das prioridades políticas das bancadas. Pouco observado pela oposição e também por segmentos populares, o PL está na periferia do jogo político do Legislativo, em meio à dinâmica acelerada das sessões remotas e às demandas do cenário eleitoral.
O projeto conta com o apoio de entidades do ramo industrial, entre elas a Confederação Nacional da Indústria (CNI), que chegou a apresentar uma carta aberta intitulada “Gás para sair da crise”, para pressionar o jogo político favoravelmente ao PL.
O tecnicismo que envolve o tema também é visto como fator para a baixa capacidade de mobilização de PLs dessa natureza no Congresso. Assim como ocorre com outras medidas do gênero, a atenção à pauta tem se resumido a algumas poucas manifestações públicas.
De autoria do ex-deputado federal Antonio Carlos Mendes Thame (PSDB), o projeto tramita desde 2013 e foi relatado na Câmara pelo deputado Laércio Oliveira (PP-SE), que apresentou parecer pela aprovação do texto. Ele disse que teria debatido o tema com vários setores e defendeu o conteúdo do PL.
“A nova lei do gás vai reindustrializar o Brasil, aumentar a receita dos governos e reduzir o custo do gás nas empresas, nos comércios e até nas residências. Daqui a alguns anos, quando o brasileiro estiver em casa cozinhando com seu botijão, que ele conseguiu comprar mais barato, saberemos que este foi o resultado de uma escolha importante que fizemos neste dia”, disse, erroneamente, na votação.
Contrapontos
Isso porque a proposta não tem relação com o preço do botijão do gás de cozinha, o chamado Gás Liquefeito de Petróleo (GLP). Ela trata apenas de gás natural, produto que resulta de uma mistura de outros derivados. É o que esclarece o diretor técnico do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (Ineep), William Nozaki. Em entrevista ao Brasil de Fato, ele contestou ainda outros pontos levantados pelo relator.
Ele ressalta, por exemplo, a questão logística e de investimentos relacionados ao setor. Dados da ANP de julho de 2019 mostram que o país produz cerca de 124,0 mil milhões m³ de gás natural por dia, sendo a Petrobras a produtora de 75% desse total. Mais de 80% do montante de produção do país vêm de reservas marítimas, o que exige alto custo no transporte do produto para levá-lo das águas do mar até a costa de forma que ele possa ser aproveitado.
Com isso, a logística exige investimentos volumosos, inclusive porque a malha dutoviária está concentrada na costa. “E a utilização de toda a potencialidade desse gás exige investimentos na ampliação da malha de gasodutos pra que isso seja utilizado de modo que a renda petroleira se converta em desenvolvimento econômico industrial”, sublinha Nozaki.
O diretor técnico do Ineep acrescenta que a Petrobras é, historicamente, a maior investidora, mas esbarra atualmente no plano estratégico que vem sendo adotado pela gestão da estatal. O escopo de atuação prevê a retirada da petroleira de diversos segmentos do mercado, incluindo o de gás, o que fez com a empresa vendesse recentemente sua participação em diferentes empresas de gasodutos.
“Na prática, isso significa que a iniciativa privada teria que arcar sozinha com esse investimento, sem a indução da Petrobras. Esse é um primeiro problema que coloca dúvida sobre a geração de investimento privado. Segundo, esses investimentos exigem pacotes de financiamentos significativos e, com a atual política do governo, não há sinais de que o BNDES, que é o grande responsável por viabilizar esse tipo de investimento, vá destinar financiamento de longo prazo pra isso”, aponta Nozaki.
No bojo da discussão sobre o PL 6407/13, surgiu a possibilidade de criação de um fundo pra financiamento de obras, comercialização e distribuição de gás natural, mas o governo Bolsonaro indicou que vetaria esse ponto, caso fosse aprovado.
“Assim, sem o financiamento público da Petrobras, sem financiamento de longo prazo do BNDES e sem um fundo pra viabilização a ampliação da malha dutoviária, é muito improvável que isso se converta em grandes pacotes de investimentos privados, sobretudo num momento de crise política e incerteza como este que a gente vive”, resume William Nozaki, ao rebater os argumentos de incentivo à industrialização e aos investimentos, manifestados pelo governo e pelos defensores do PL.
Preço e oligopólio
Nozaki afirma ainda que a escolha pelo fim da regulação estatal no setor foge à tendência mundial porque os países que são grandes produtores e exportadores de óleo e gás, como é o caso do Brasil, mantêm empresas públicas que atuam com essa tarefa. O especialista não acredita que haverá uma competição capaz de reduzir o preço do gás natural no país.
“A ideia de vai haver uma competição e de que ela vai levar à redução do preço do gás natural não se aplica a esse mercado. Vão se interessar para atuar nesse segmento no Brasil aquelas empresas que já estão comprando ativos da Petrobras e outros que estão sendo vendidos. Sob o argumento de defesa da concorrência, a gente vai desfazer o oligopólio natural da Petrobras pra criar o oligopólio privado”, projeta.
Edição: Rodrigo Durão Coelho.