Portos: mais privatização na infra-estrutura

Por Paulo Kliass.

O anúncio oficial do pacote dos portos foi novamente adiado, em razão de algumas divergências entre os diferentes órgãos do governo federal envolvidos na elaboração do projeto. Mas a diretriz geral aponta na direção da continuidade da privatização de nosso sistema portuário. Enfim, tenho a certeza de que, mais uma vez, vai começar todo aquele debate a respeito das diferenças entre “privatização” e “concessão”. É compreensível. Afinal, os que tentam desesperadamente defender o indefensável precisam elaborar melhor seus argumentos e refinar ainda mais sua capacidade retórica. O fato é que conceder a exploração econômica de uma atividade pública ao setor privado é apenas uma das inúmeras formas de se promover a privatização. A venda de uma empresa estatal ao empreendedor capitalista é, com certeza, a modalidade mais carregada de simbolismo. Mas não é a única.

De qualquer maneira, o fato é que o governo da Presidenta Dilma está prestes a concluir a metade de seu mandato e mais uma vez reforça a opção de oferecer ao capital privado a responsabilidade pela gestão e o privilégio de auferir os lucros de um setor estratégico de nossa economia. Muito já se falou a respeito das razões que a teriam levado a trilhar esse caminho. Apesar de todas as indagações a respeito, o fato é que o argumento mais utilizado pelos defensores envergonhados da privatização – a suposta falta de recursos do Estado – não se sustenta.

Tanto é que todas as operações de concessão realizadas até o momento foram acompanhadas de generosas benesses, como as vultosas somas de recursos financeiros do BNDES e do Tesouro Nacional para auxiliar os grupos privados.

Ora, se o dinheiro existe e está sendo oferecido a custo praticamente zero para os novos empreendedores, a única explicação que sobra é a surrada estória da suposta superioridade da eficiência privada em comparação à ação estatal. Não há dúvida de que a gestão pública em nossas terras precisa (e muito) ser aperfeiçoada e que alguns bons passos têm sido dados nessa direção ao longo dos últimos anos. Porém, o mito da superior capacidade do setor privado em oferecer serviços de melhor de qualidade e menor custo ainda está longe de se demonstrar como fato inquestionável em nossa realidade. Basta ver o que ocorre com os planos privados de saúde, com a qualidade das empresas vendedoras de diploma de ensino superior, com as tarifas e serviços nas áreas de eletricidade, telecomunicações e saneamento, entre tantos outros. Assim, a opção de Dilma é de natureza eminentemente ideológica: a crença equivocada de que o agente privado sempre faz melhor do que o setor público.

Os conhecidos gargalos de infra-estrutura estão clamando por soluções urgentes há muitos anos. Não apenas os remendos emergenciais não são feitos, como também as proposições estratégicas vêm sendo adiadas eternamente. E então a dinâmica das decisões governamentais acaba sendo determinada por algum apagão aqui, um congestionamento ali, um atraso no cronograma de exportações acolá, uma ameaça de caos aéreo logo ali na frente. E como não há um plano estratégico e consolidado a respeito de como enfrentar a questão da infra-estrutura de forma ampla, as decisões acabam sendo apresentadas no caso a caso, no setor a setor, sempre estranguladas por alguma pressão de crise conjuntural localizada.

Assim foram sendo anunciados os planos de privatização – por meio de concessão por décadas ao capital privado – das rodovias, depois das ferrovias, em seguida os aeroportos. E agora, mais recentemente, o complexo portuário avança na fila.

Além disso, é importante não esquecer que já operam em regime de concessão e exploração pelo setor privado outras áreas estratégicas – de natureza de serviço público – para o funcionamento de nossa sociedade. É o caso da geração de energia elétrica, o sistema de telefonia, as telecomunicações de forma ampla, a terceirização da saúde por meio dos convênios com as organizações sociais, a operação de banda larga de internet, a complementação dos sistemas previdenciários via fundos de pensão e planos de seguros de previdência privada. Enfim, cada vez a sociedade se vê enredada nas teias da mercantilização generalizada de serviços que deveriam ser oferecidos pelo próprio Estado.

O Brasil tem mais de 8.000 km de costas navegáveis, com potencial de serem utilizadas como espaço de trocas comerciais com o resto do mundo por meio marítimo. O potencial de vocação ultramarina remonta há séculos, desde a chegada de nossos colonizadores em 1500. Ao longo das últimas décadas, o comércio exterior passou a ganhar relevância em nossa grade de atividade econômica. Os números relativos à corrente de comércio (somatório de exportações e importações) são bastante expressivos. Em 1991 o valor total era de US$ 53 bilhões, saltando para US$ 113 bi em 2011 e atingindo a cifra de US$ 482 no ano passado. Isso significa que, a partir do aprofundamento da abertura comercial iniciada com Collor em 1990, a troca comercial dobra de valor na primeira década e depois quadruplica nos 10 anos seguintes. Ou seja, em 2 décadas o valor se vê multiplicado por 8.

No caso específico brasileiro, corrente de comércio exterior significa exportações e importações utilizando prioritariamente o transporte marítimo como instrumento de logística. Mais de 90% do volume das referidas trocas comerciais entram e saem de nosso País por portos. Assim, percebe-se como tem aumentado a demanda pela utilização das estruturas do complexo portuário em todo o território nacional. Quando se fala em bilhões de dólares, na verdade as operações se concretizam, fisicamente, em várias centenas de milhões de toneladas de mercadorias. As expectativas para 2012 é que a movimentação total de cargas nos portos se aproxime da marca simbólica de 1 bilhão de toneladas. Tal fato é ainda mais compreensível em razão da natureza primário-exportadora de nosso modelo econômico. Exportar “commodities”, como soja e minério de ferro, implica alta tonelagem e elevado volume, com baixo valor monetário. Basta compararmos o valor agregado diferenciado entre a exportação de uma tonelada de minério e a importação, por exemplo, de uma tonelada de computadores ou celulares. E dá-lhe desindustrialização!

Quase a metade de nossas capitais de estados são cidades com portos marítimos, além dos casos de Santos em São Paulo e de Paranaguá no Paraná, que se destacam entre os portos de maior movimentação do País, ainda que as capitais de tais unidades da federação estejam mais no interior. Nossa estrutura portuária conta com 37 portos públicos e 42 terminais de uso privativo (TUPs). Esse sistema é consolidado em 7 Companhias de Docas, distribuídas regionalmente por todo a território nacional. Como a holding federal do setor, a Portobrás, havia sido extinta em 1990, logo no início do governo Collor, o setor passou por um período grave de indefinição, que só voltou a ser minimamente restabelecido, por meio da Lei n° 8630 de 1993 – conhecida como Lei dos Portos.

Atualmente, o modelo não é nem totalmente público, nem totalmente privado. As chamadas Autoridades Portuárias contam com um grau razoável de autonomia na gestão dos portos e são dominadas pelos setores interessados na sua própria exploração comercial. Na prática, trata-se de mais um fenômeno de apropriação privada do espaço público para usufruto de interesses econômicos, sem que o Estado consiga fazer valer sua função de regulamentação e de preservação do interesse público e nacional na gestão das atividades portuárias.

Frente a esse quadro, nem a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) nem a Secretaria Especial de Portos (vinculada à Presidência da República) conseguem imprimir sua condição de órgãos reguladores do sistema. A maior parte das cargas transita pelos TUPs, em especial os da Petrobrás e da Cia Vale – na verdade, eles respondem por 2/3 da tonelagem total envolvida no comércio exterior. Por ali escoam as exportações em granel sólido (produtos agrícolas e minerais in natura) e em granel líquido (em especial o petróleo). O outro terço circula pelos chamados “portos organizados”, que se caracterizam por sua natureza pública de concessão para exploração privada. Como a composição das exportações é bem distinta das importações, ocorre que a tonelagem das primeiras respondem também por 2/3 do total de volume de comércio, ao passo que as importações representam apenas 1/3 da corrente comercial. É o impacto sobre a dinâmica portuária de sermos exportadores de bens agrícolas e minerais, enquanto importamos bens manufaturados.

Como se pode perceber, trata-se de um setor que apresenta alta complexidade operacional, logística, comercial e financeira. Adicione-se a isso a exigência da presença de órgãos estatais em de sistemas de controle de política sanitária, aduaneira e de segurança nacional para reforçar a natureza pública do fenômeno. E finalmente a delicada sistemática de determinação de tarifas e taxas de retorno para as operações. Afinal, como determinar de forma, digamos, adequada o custo de embarcar um contêiner em um cargueiro? Ora, esse caldo de cultura exige, parece evidente, a firme presença regulamentadora e fiscalizadora do Estado.

Não fosse apenas por isso, a operação portuária se caracteriza por aquilo que a literatura econômica chama de monopólio natural. Não se trata de um simples mercado da batatinha, em que uma multiplicidade de agentes de oferta pode operar como controlador de abuso de mercado. Não gostou do preço e da qualidade da mercadoria? Dirija-se à barraca ao lado e compre ali seu produto em melhores condições. No caso do porto, assim como na eletricidade e no saneamento, não existe essa opção. Daí porque o Estado é o agente natural provedor desse tipo de bem ou então um forte regulador, com o objetivo de assegurar o equilíbrio e o bem estar coletivo.

Se adicionarmos, por fim, o ingrediente atual da necessidade emergente do aporte de dezenas de bilhões de reais a título de investimento para ampliação e modernização da estrutura portuária, aí que não se escapa mesmo da presença estatal. A sociedade brasileira merece, é claro, um sistema de portos ágil e eficiente – a tal fato parece não haver objeção.

Isso significa rever sistemas e processos que contribuem para que nossas tarifas sejam relativamente mais elevadas do que muitos países desenvolvidos, sem a correspondente qualidade da operação. Porém, é essencial escapar da ilusão simplista de que basta transferir a gestão e conceder o direito de exploração comercial, a perder de vista, para o setor privado para que tudo se dê às mil maravilhas.

 Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.

Fonte: Carta Maior

Foto: Porto de Santos http://jornalplanetarural.com.br/

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