Porto Alegre agora é uma cidade distópica

Na capital do Rio Grande do Sul, a visão menos protecionista tem prevalecido, como em outras grandes cidades latino-americanas. As leis do mercado imobiliário, tão predatórias quanto as que desmatam diariamente a Amazônia, venceram. A ganância obscena do homem e a corrente do El Niño estimularam a catástrofe ambiental no estado brasileiro que faz fronteira com a Argentina.

Por Gustavo Veiga, Argentina.

Porto Alegre é sitiada por águas barrentas que levam tudo o que encontram pela frente. Hoje é uma cidade distópica. Uma maré incontrolável a deixou submersa em seus bairros mais baixos, às margens do Guaíba. Um rio e um lago ao mesmo tempo, dependendo de como se olha para sua hidrografia. Nesses dois substantivos pode aparecer uma explicação para a tragédia. Um rio exige certas defesas. Um lago nem tanto. Na capital do Rio Grande do Sul, prevaleceu a visão menos protecionista, como em outras grandes cidades latino-americanas. As leis do mercado imobiliário, tão predatórias quanto as que desmatam a Amazônia diariamente, venceram. Outro motivo é a corrente do El Niño. A bacia que circunda a capital do Rio Grande do Sul passou de um mínimo em plena estação seca para 5,35 metros em apenas alguns meses. Uma marca que superou os 4,75 metros da grande enchente de 1941. Oitenta e três anos se passaram. Não houve grandes obras, mas uma negligência criminosa que já custou 143 mortos, 131 desaparecidos, 81.000 evacuados e 441.300 pessoas desabrigadas. Muitos fugiram para cidades do norte do estado e de Santa Catarina.

As imagens dos dois grandes estádios da cidade, a Arena do Grêmio e o Beira Rio do Inter, seu clássico rival, são o cartão postal mais eloquente do desastre ambiental. Parecem dois anfiteatros em ruínas. Seus campos de jogos desapareceram sob a água amarronzada. A prefeitura da capital gaúcha também está debaixo d’água. E debaixo d’água permanecem o centro histórico, a margem do rio Guaíba – que é o equivalente à nossa Costanera de Buenos Aires – e bairros tradicionais como Cidade Baixa e Menino Deus, onde as ruas começaram a escoar porque as estações de bombeamento que estavam inoperantes agora estão funcionando novamente. As chuvas que continuam a cair são a pior ameaça.

O interior do estado vizinho à Argentina está igual ou pior. Os rios Taquari, Jacuí, Caí e Sinos continuam subindo. As previsões são as piores. Só o primeiro subiu sete metros em quase 24 horas. A pequena cidade de Estrela, em uma região colonizada por alemães, foi destruída. É uma das 444 que, de acordo com o Zero Hora (ZH), o principal jornal diário de Porto Alegre, sofreram graves consequências com as chuvas e o transbordamento dos efluentes que desaguam primeiro no Guaíba, depois na Lagoa dos Patos e, finalmente, no Oceano Atlântico. Um sistema de água que não consegue lidar com a situação e se assemelha a um funil em direção ao sul do estado.

As fortes chuvas na região serrana, em cidades turísticas como Gramado e Canela, aumentam as dificuldades. Toda a água que desce em direção a Porto Alegre e sua periferia – Canoas é uma das localidades mais afetadas – fica estagnada e não encontra escoamento.

Alguns especialistas acreditam que o desastre foi causado pela ausência de políticas de mudanças climáticas. Matheus Gomes, deputado estadual do PSOL, mestre em história e ativista ambiental, critica o governador Eduardo Leite, do PSDB: “Ele modificou 480 normas do código ambiental do Rio Grande do Sul, passando-o para o rebanho, em consonância com a política destrutiva do então ministro Ricardo Salles. O projeto foi aprovado em apenas 75 dias. Só não foi mais rápido porque uma decisão judicial o impediu”, escreveu ele em uma coluna de ZH. O prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, também não ficou de fora das acusações.

Salles foi ministro do Meio Ambiente de Jair Bolsonaro, nega as mudanças climáticas e teve que renunciar quando foi suspeito de traficar madeira da Amazônia. Hoje é deputado federal por São Paulo e acaba de postar no X com uma publicação atrevida: “O governo Lula acabou. De agora em diante será apenas o velório de um enterro político já planejado para 2026”.

Outro fato que provoca debate entre ambientalistas e negacionistas como Salles é a falta de proteção do bioma Pampa, o principal bioma do Rio Grande do Sul, que regula os ciclos da água e a absorção de carbono. Possui uma área de 193.836km² (dados do IBGE, 2019), o que corresponde a 69% do território do estado e 2,3% da superfície do Brasil. Segundo o deputado Gomes, “nas últimas décadas, o Pampa foi o bioma mais degradado do país, perdendo 30% de sua superfície”.

O pessimismo dos analistas de mudanças climáticas é confirmado por catástrofes como a atual. Aldo Fornazieri, doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), escreveu na Carta Capital que “os desastres ambientais só vão piorar. Está na hora de a sociedade tratar os políticos negacionistas como criminosos”. O Rio Grande do Sul tem pouco mais de 11 milhões de habitantes e os afetados são 2.039.084, de acordo com as autoridades.

Nesses dias de lama, galhos e lixo, a solidariedade está amparando as vítimas indefesas. Os centros onde as doações estão sendo coletadas superaram todas as expectativas. Toneladas de roupas, alimentos e itens de primeira necessidade estão sendo separados e distribuídos por voluntários que trabalham em escolas, clubes e ginásios. Essa doação altruísta, até mesmo por recém-chegados de outros estados que viajaram para ajudar, contrasta com a atitude de blogueiros, trolls e usuários de mídias sociais que desinformam sobre o que está acontecendo. O bolsonarismo, como foi o caso durante a pandemia, está mais uma vez em alta.

Um médico de Porto Alegre, Victor Sorrentino, acusou a Anvisa, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Brasil, de ser responsável pela não distribuição de medicamentos nas áreas afetadas pelas enchentes devido a questões burocráticas. O ex-presidente de extrema direita o elogiou nas mesmas redes em que esses personagens espalham notícias falsas. Em 2021, Sorrentino foi preso no Egito por assédio sexual a uma vendedora de papiros. Ele foi liberado depois de se desculpar e proibido de retornar ao Egito. A Anvisa negou o fato, mas o estrago estava feito. Um comportamento que mostra o pior do bolsonarismo não tão residual que zombou da pandemia e agora usa o desastre ambiental para desinformar.

A opinião do/a/s autor/a/s não representa necessariamente a opinião de Desacato.info.

 

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